O programa da Rádio Macau "Paralelo 22" do último Domingo, com repetição hoje de manhã, abordou a temática do consumo de "Ice", a droga da moda em Macau. Confesso que fiquei curioso quando consultei a página electrónica da TDM, e deparei com o título "Paralelo 22 - A idade do Ice; o novo livro de Carmo Correia", que me induziu em erro por instantes; pensei que que a fotógrafa Carmo Correia se tinha dedicado à investigação do consumo de drogas sintéticas. Afinal tratavam-se de duas partes distintas do programa, o que fiquei a saber apenas hoje após a retransmissão do mesmo, que até ontem se encontrava indisponível na internet. Para quem perdeu a oportunidade de ouvir tanto no Domingo como hoje, pode fazê-lo
aqui, na íntegra.
É interessante a abordagem que se faz a um problema desta natureza em Macau. A ketamina era a droga de eleição entre os jovens com menos de 21 anos, mas foi agora destronada pelo "ice", com metade dos jovens a preferir a última de deterimento da primeira. Isto para quem não percebeu nada do que eu disse na última frase, é igual ao litro. Quem não quer saber de drogas e não está interessado em aprender, ketamina e "Ice" são a mesma coisa, e ao mesmo tempo coisa nenhuma. Para a população de Macau, conservadora e desinformada, "é tudo droga". Não importa que uma seja mais consumida que a outra, ou qual delas faz o maior mal. Todas fazem mal. Numa última instância, acabam por provocar a morte - mesmo que isso não seja verdade - e são ambas "droga", portanto nem falar disso é bom.
Mas falemos, porque não? O que é a ketamina? E o que é o "Ice"? Porque é que os jovens deixaram de preferir uma delas e abraçaram a outra? Bem, para quem acha que "é tudo o mesmo" vai pensar que existe alguma razão económica, porque uma é mais barata que a outra, porque os mercados ditaram as modas, porque a Ketamina Inc. está menos cotada que a Ice S.A.R.L. na bolsa de Tóquio, etc.,etc. Um dos intervenientes na reportagem do Paralelo 22 fala de uma campanha nas escolas que chama a atenção para os perigos da ketamina, nomeadamente o risco de infecções do tracto urinário. Ora quem anda metido na droga pouco se importa se faz chichi melhor ou pior. Quem já ouviu dizer que vai mudar de uma droga para outra "mais saudável"? Devem existir outras razões, com toda a certeza.
A ketamina, em primeiro lugar. Esta substância é basicamente um anestésico, commumente usado pelos veterinários nos cavalos de corrida para aliviar as dores musculares dos animais, ou como anestesia geral para gatos e cães, antes das operações. Um dos nomes pelo qual a ketamina é conhecida é "cat valium", ou "valium dos gatos", por essa mesma razão que mencionei. O uso nos seres humanos limitava-se ao tratamento dos bronco-espasmos - a contração súbita dos bronquíolos - mas o uso recreativo reporta-se aos anos 70, nos Estados Unidos, e rapidamente se espalhou por todo o mundo. Existe uma banda desenhada pouco conhecida, datada de 1968, que glorifica o uso da ketamina com fins recreativos: "The Fabulous Furry Freak Brothers". Em Macau era uma droga popular nas discotecas em finais do século passado e inícios deste, e era consumida abertamente, nas casas-de-banho ou num canto qualquer do recinto.
A administração é feita pela via nasal, através da inalação da droga em pó, e metabolizada pelo fígado. É uma droga dissociativa, noutras palavras, um "downer". Os efeitos psicotrópicos incluem analgésia, anestesia ou alucinações, outros efeitos são a dialatação dos brônquios e elevada pressão arterial. Em doses reduzidas a ketamina provoca tonturas, uma sensação de bem estar semelhante à ienebriação pelo álcool, mas sem a mesma sensação de euforia. Em doses maiores provoca visão distorcida, dificuldades em manter o equilíbrio, voz arrastada, e em última instância um estado de letargia consciente, acompanhada de uma incapacidade de responder a estímulos ou interagir com os outros, mas ao mesmo tempo uma maior sensibilidade à cor ou aos sons, aquilo que se chama de efeito psiconaútico - uma experiência em que a mente navega fora do corpo. Um indivíduo que esteja sobre os efeitos da ketamina dificilmente consegue disfarçar, uma vez que o seu comportamento é nitidamente erróneo.
A ketamina para o uso recreativo é sintetizada na forma de cristais, e depois reduzida a um pó fino que pode ser inalado. O produto raramente entra no mercado na sua forma mais pura, e para rentabilizá-lo os traficantes misturam-na com bicabornato de sódio, pó de talco, e em alguns casos vidro em pó, que facilita a abertura das fossas nasais e absorção dos ingredientes activos da substância. Um pacote de 100 mg pode custar entre 100 e 200 patacas nos circuitos habituais, mas na sua forma mais pura é produzida por qualquer coisa como 50 patacas a grama - falamos aqui de um lucro de 2000% e 4000%. É um negócio lucrativo, nos meandros do tráfico. A droga pode provocar habituação, e o seu uso diário leva à tolerância, o que por sua vez pode resultar num consumo mais frequente. Se uma dose custa 100 patacas, pelo menos, e os efeitos duram apenas uma ou duas horas, é o mesmo que dizer que são 100 patacas de despesa várias vezes ao dia. A "ressaca" é muito mais moderada que as da heroína e da cocaína - ansiedade, tremores e palpitações são alguns dos sintomas mais comuns. Ao contrário destas duas últimas, um pouco de força de vontade é suficiente para deixar a ketamina.
O "ice", apesar da sua actual popularidade, não é nenhuma novidade. As anfetaminas têm um longo historial, que remontam aos finais do século XIX, e as metanfetaminas, uma versão das primeiras que foi sintetizada da efedrina, começaram a ser produzidas pouco depois. A própria efedrina tem um uso que nos leva até aos tempos remotos dos inícios da dinastia Han, na China, onde era usada no tratamento da asma, e como estimulante. A sua forma actual, a cristalizada, começou a ser produzida em 1919 no Japão, e teve as suas primeiras aplicações no tratamento da doença de Parkinson's. O seu uso generalizou-se durante a II Guerra Mundial, especialmente entre os soldados alemães. Consumida em pequenas doses, a metanfetamina leva a um estado de alerta, focalização e desinibição. Era uma substância de uso recorrente entre pilotos da força aérea, mas tinha um senão: inibia a concentração, deixando os pilotos mais vulneráveis ao erro.
Metanfetamina é uma forma abreviada do composto
Metil
alfa-
metil
feniliti
namina. Se repararmos na combinação das letras a negrito, ficamos com "Metamfenamina", mas na versão inglesa dá-nos "metamphetamine". O nome "ice" foi popularizado na Austrália e no Hawaii: os cristais da substância são derretidos numa folha de alumínio, altura em que adquirem uma forma semelhante à da geada, antes de ser inalada. Quem toma pela primeira vez esta droga passa por um estado de insónia, acompanhado por uma falta de apetite que pode durar até mais de 24 horas. O uso mais frequente tem efeitos sobre a mente que incluem um maior estado de alerta, acompanhado de uma actividade mental com efeitos no raciocínio e na expressão verbal e escrita. É uma droga que torna os seus usuários mais "inteligentes", e é popular entre estudantes universitários em época de exames. A vertente da falta de apetite é atraente para quem procura perder peso e ficar mais elegante, e de facto é possível ficar uma semana sob os efeitos das metanfetaminas sem ingerir alimentos sólidos: o apetite desaparece e para calar o estômago basta beber leite magro ou sumos de fruta.
Mas tratando-se de uma substância ilícita e não de um medicamento maravilhoso, existem efeitos adversos. O uso contínuo provoca a descalcificação dos ossos e dos dentes, e no último caso os efeitos são mais evidentes nos consumidores de "crack" ou de "crystal meth", dois parentes do "ice" mais perigosos e com um risco muito maior para a saúde, quer pelo seu maior grau de pureza, quer pela adição de substâncias como a heroína e a cocaína, que provocam uma dependência elevada. A "ressaca" do "ice" é mais intensa que a da ketamina, e incluí espamos involuntários, sensação de inquietude e desconforto, suores frios e ansiedade. Em alguns dos casos verificou-se um aumento exponencial do apetite, que acaba por levar à obesidade às complicações inerentes a essa doença.
O "ice" é uma droga popular nas Filipinas, e em Macau é comum encontrar muitos imigrantes originários desse país entre os consumidores mais habituais. O uso a longo prazo tem efeitos negativos sobre o desempenho, e a alteração dos padrões de sono levam a que muitos percam o emprego. Os efeitos que provoca no líbido, que são variáveis de pessoa para pessoa (pode aumentar ou inibir o desejo sexual) conduz a comportamentos de risco, nomeadamente contactos sexuais sem o uso do preservativo. Uma dose diária pode ficar pelas 300 patacas, ou mais, dependendo de factores como o estabelecimento de contactos com os traficantes ou a dose requerida - escusado será dizer que quanto mais tempo livre, maior é a tendência para consumir "ice". O estado de alerta, que mesmo entre os utilizadores frequentes pode ir até às 10-12 horas, leva a procurar ambientes e formas de diversão como os casinos. Se 300 patacas por dia significam 9000 patacas por mês, o que só por si é uma grande despesa, juntar a isto os jogos de batota torna a experiência muito cara. Ao contrário do tráfico, pois uma grama de "ice" pode ser adquirida do outro lado da fronteira por 300 patacas, e revendida em Macau por um preço que pode variar entre as 1000 e as 1500 patacas.
Perante estes factos, é fácil perceber porque o "ice" destronou tão facilmente a ketamina como droga recreativa de eleição. De um lado temos a ketamina, que se inala, provoca um sentimento de letargia, e que apesar de uma dose ser mais barata, são necessárias várias doses diárias. Do outro lado temos o "ice", que se fuma, é inodoro, provoca sentimentos de euforia, e com efeitos mais prolongados, apesar da dose ser ligeiramente mais cara. Qual é a que pensam que os jovens vão preferir? No programa Paralelo 22 um "especialista" falou dos efeitos de ambas para justificar a preferência pelo "ice". Certo, até aqui tudo bem, mas depois diz-nos que a ketamina "provoca sonolência", e os jovens "precisam de trabalhar", e por isso preferem o "ice" porque "ficam alerta". Só que depois de dois ou três dias "sem conseguirem dormir", optam por "tomar comprimidos", e ao fim-de-semana ou nos dias de folga "voltam à ketamina". O quê? Estamos aqui a falar de pessoas e de droga ou de um esquentador onde se regula a temperatura? No tratamento e prevenção da toxicodependência em Macau, continuamos a reinar com a tropa. Com a honrosa excepção da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes (ARTM), estamos nas mãos de amadores e de brincalhões encartados.
Hon Wai, o tal director do Gabinete de Prevenção e Combate à Toxicodependência do Instituto de Acção Social (IASM), diz-se "preocupado" com o aumento do consumo de "ice" entre os jovens. Sim senhor, bom menino. Depois diz que é difícil detectar os novos utilizadores, uma vez que a tendência é que "consumam em casa", e "não é possível entrar em todas as casas para saber quem precisa de ajuda". Livra! Ainda bem, só nos faltava mais essa, que entrassem pela nossa casa para saber se precisamos de ajuda. Obrigadinho pela preocupação mas a gente dispensa. E sabe qual é o maior problema? Os jovens não assumem que são consumidores nem procuram ajuda porque sabem que estão a cometer um crime. Se o sr. Hon Wai está mesmo disposto a "ajudar", talvez fosse melhor abandonar esse discurso que defende o agravamento das penas como solução para combater o consumo de drogas. E já agora, vamos esquecer o "ice", a ketamina e tudo mais. Sabe porque é que os jovens em Macau se iniciam na droga? Porque não têm nada melhor para fazer. O entretenimento resume-se praticamente aos casinos, mas para passar lá uma noitada sabe o que é que se recomenda? O "ice". Muito "ice". Não me diga que ainda não sabia...
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