segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

...E há 13 anos, chegou o Sebastião


Passam hoje 13 anos desde que me tornei pai, pela primeira e pela única vez até hoje - que eu saiba, mas estou confidante que sim, foi a única. Não sei se voltarei a ser pai, mas tenho sérias dúvidas. Nestas coisas da paternidade sou marinheiro de uma viagem, e nem fui eu quem andou enjoado. Nessa madrugada do dia 16 de Dezembro de 2000 veio ao mundo o meu primeiro e único filho, e a partir daí tudo mudou. Naquele momento lembrei-me do velho provérbio "filho és, pai serás", e que diabo, é mesmo verdade, não estavam a brincar! Quando somos miúdos pensamos por vezes que os nossos pais são um mal inevitável, uma espécie de guia de apresentação à vida, onde a não ser que tenhamos muita sorte, fortuna e talento, seremos sempre o pau-mandado de alguém. Agora ficava eu nessa mesma posição. Como foi possível?

Bem, todos sabemos como foi possível chegar pai, é escusado entrar em detalhes sórdidos. Alguns meses antes recebi a notícia da minha jovem esposa, sendo que também era eu apenas um jovem, do alto dos meus 26 anos, e fiquei feliz. Quer dizer, já agora, porque não? Vamos lá ver como é esta coisa da paternidade. Estávamos no virar do milénio, era o louco verão de 2000, do "triple-zero", e um filho a chegar em Dezembro, às portas do século XXI, vinha mesmo a calhar. Se o moço viver pelo menos até aos 102 anos - e Deus queira que sim - pode dizer que atravessou três séculos, e é entrevistado no Telejornal. Bem, do seu primeiro século não se deverá lembrar muito bem, pois só viveu 15 dias, mas não deixa de ser uma curiosidade engraçada - e oficial, que é o mais importante.

Há homens que se vão estrear como pais, e são piores que as mulheres. Lêem livros de puericultura, tratam a esposa como uma doentinha, procuram informação detalhada na net, enfim, parece que são eles que estão grávidos. Meus amigos: a nossa única função neste verdadeiro "milagre" da gestação é a sementeira. Do resto tratam a mãe, os médicos, os enfermeiros, enfim, os profissionais. O pai é o pacote, a mãe o terreno no meio da horta, e o restante fica a cargo dos engenheiros agrícolas da maternidade. A gravidez da minha mulher foi a minha despedida de solteiro, por assim dizer, e à medida que se aproximava o "dia D", ia sentindo que a "festa" chegava ao fim. Nesse mesmo ano, 2000, os Doçi Papiaçam levavam a cena a peça "Papi tá ferado" , ou "Pai, estás lixado", e quem se preparava agora para ser "papi" era eu. Tô ferado!

Muitos dos que são pais pela primeira vez preocupam-se demasiado quando se aproxima o fim do tempo de gestação. Preparam tudo em detalhe, dormem mal, deixam o nº das emergências no "speed-dial", entram em pânico se a mulher arrota, um autêntico estado de sítio. Mas para quê? Quando o miúdo quiser sair, avisa, e depois disso ainda têm umas boas duas horas pela frente até se darem as contracções. Como estamos em Macau e não no meio do Deserto do Gobi, e se não tiver o azar do trabalho de parto se iniciar num elevador parado no meio de dois andares devido a avaria, não há nada a temer. Até dá para ir a pé até ao partuário mais próximo.

Comigo foi sopa. Era sexta-feira, dia 15, e fui à Festa de Natal do serviço, levando comigo um telemóvel emprestado, para as emergências. Não sei porquê mas tinha um "feeling" que ia ser nesse fim-de-semana. Depois do jantar fui a um bar de karaoke no NAPE com alguns colegas, e poucos minutos depois da meia-noite, a minha mulher liga-me, dizendo que as águas rebentaram. Acabei a cerveja, despedi-me de todos, e fui calmamente a pé até à Rua Central, onde a parceira deste empreendimento já me aguardava com uma pequena mala, onde levava as suas "petit-choses", e uma barriga enorme prestes a esvaziar. Perguntei como se sentia, disse que "bem", e apanhámos o táxi ao Hospital Kiang Wu, onde tinha sido acompanhada durante a gravidez. Tivemos sorte, foi no tempo em que dava para apanhar um taxi em Macau - pensará o leitor mais amigo-da-onça. Ora, naquelas circunstâncias dava até para ir a pé, se necessário.

Chegados ao hospital e atendidos com prontidão, foi feita a observação, e confirmavam-se as suspeitas: vinha um bebé a caminho. Cansara-se do útero, e queria saber o que mais havia para ver nesta excursão que é a vida, e só agora tinha o seu início. O pior é que nem tinha ainda nascido, e já manifestava a sua característica timidez; as contracções demoravam, o liquido amniótico estava a acabar, e começava-lhe a faltar oxigénio. Era preciso proceder a uma cesariana. Claro que isto são piores notícias para a mãe do que para o pai. Limitei-me a dizer "ora bolas", mas a minha mulher não disse nada. E porque havia de dizer? Passaram-se 13 anos a ainda me continua a cobrar essa "conta". Pelo menos não ia doer tanto, pois com a quantidade de opiáceos e anestéticos que lhe iam injectar, era como ir dormir e acordar menos pesada, e com um bebé ao lado.

Enquanto levavam a vitela para o matadouro, perdão, a parturiente para a sala de partos, ia-se preparando o berço, e uma enfermeira faz-me a pergunta mais difícil daquela noite. Aliás, a mais difícil desde há muito tempo, uma das mais difíceis da minha vida: como se vai chamar o bebé? E agora? Esta é uma nova pessoa que vem ao mundo, e pedem-me a responsabilidade de lhe dar o nome que carregará consigo toda a vida? Sou o responsável por lhe atribuir uma identidade? Ele vai precisar de assinar com o nome que eu lhe quiser dar? Senti-me como um misto de Deus e um funcionário do Registo Civil. A enfermeira foi simpática q.b. para me passar um papel e uma caneta para a mão e dar-me algum tempo para pensar. Quando me decidisse era só devolver-lhe o papel com o nme escrito.

É mais fácil escolher nomes de meninas: Sónia, Sílvia, Susana, Dulce, Patrícia, Andreia, Beatriz...tantas carinhas larocas que conheci na minha vida com estes nomes. Para um menino é mais difícil; não lhe queria dar um nome simples, como Manuel ou Joaquim, nem nada de muito extravagante, como Angus, Igor ou Jupiter - e é nestes momentos que alguns pais exercem a sua veia poética, para mal dos pobres filhos, que nunca os perdoarão. O mais importante era não lhe dar um nome que me fizesse lembrar algum palerma que conheci no passado. Ia ser chato chamar o meu próprio filho e lembrar-me de alguém que preferia esquecer. De "Crespo" como apelido já ele não se livrava, portanto que nome próprio escolher para a desgraça não ser tão grande?

Pensei em Sebastião, em fiz a análise em 20 segundos: o nosso rei "desejado", o mártir romano padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, o Marquês de Pombal, e claro, o imortal Sebastião Antunes, vocalista dos Quadrilha, que ainda há poucos dias esteve por Macau. Sebastião ficou. Mais tarde a minha avó, que ainda teve a felicidade de conhecer dois bisnetos, este e o meu sobrinho, disse-me que um dos irmãos do meu avô se chamava Sebastião. Juro que não sabia, mas fica então registada a involuntária homenagem ao tio-avô que nunca vi, e nem sabia que existia. Hoje pode-se dizer que o miúdo teve sorte, pois Sebastião está na moda. Quem é campeoníssimo mundial de Fórmula 1? E de ralis? E antes desse? Ah, bem...

Durante a hora e pouco que demorou a cesariana, fiz o mesmo que qualquer pai que espera conhecer pela primeira vez o filho faria: fumei. Fui fumar para as escadas de incêndio do Hospital Kiang Wu, e devo ter consumido uns 30 ou 40 cigarros. Nem sei ao certo, e nem me lembro se tinha levado aqueles cigarros todos comigo ou se precisei de sair por instantes para comprar mais. No intervalo de cada cigarro, que incinerava em dois ou três minutos, vinha até à sala de espera, onde já se encontravam duas amigas da minha mulher, tão encantadas que estavam, pois do grupo a sua amiga era a primeira a entrar no clube das mamãs. Não há notícias? Toca a voltar para a escadas e acender mais um cigarro. Uma curiosidade: o que fazem os candidatos a pais que não fumam enquanto esperam?

Enquanto fumava pensava em mil e uma coisas. Nada de especial, e nem me passaram pela cabeça quaisquer dos pânicos típicos destas horas, do tipo "o que estou eu a fazer" ou "será que estou preparado para tamanha responsabilidade?". Nada disso. Uma das coisas em que pensei foi neste dia, 16 de Dezembro, que significado tem? Olhando para os anos anteriores a este, vejo que em 1515 morreu Afonso de Albuquerque, e em 1770 nasceu Beethoven, em 1707 deu-se a última erupção do Monte Fuji, e em 1944 teve início a Batalha das Ardenas. Mas vendo bem, exactamente nesse Sábado, o antepenúltimo de 2000 e do segundo milénio, não se registou nenhum evento com grande significado. Quer dizer, no Alabama um tornado deixou 11 mortos e 125 feridos, e no Japão foi lançado o jogo de video Godzilla vs. Megaguirus, mas pode-se afirmar com segurança que o nascimento do meu filho foi a coisa mais importante que aconteceu a 16 de Dezembro de 2000!

Num dos meus regressos à tona deste mergulho no mar do alcatrão e da nicotina, eis a boa nova: o menino chegou, e tanto ele como a mãe estão bem. Sim, sim, e agora, onde está o meu herdeiro? Nem tinha acabado de produzir este pensamento, e chega uma enfermeira empurrando uma incubadora. Lá dentro estava uma criatura roxa, enrugada, tão chorona que nem se viam os olhos, abanando os braços e as pernas. A enfermeira, com um ar de quem faz isto tantas vezes que já nem consegue fingir uma gota de emoção, diz então: "your son". Não foi como tinha idealizado, este primeiro encontro. Sempre pensei que me iam pôr nos braços um recém-nascido já lavado e com as pilhas do choro gastas, eu dava-lhe um dedo, ele segurava, e desatava a sala toda a chorar. Bem, foi tudo muito mais clínico. Afinal estávamos num hospital, e não numa telenovela.

A enfermeira afastou a incubadora daquele antro de vírus que eu e as amigas da minha mulher tinhamos produzido ali na sala de espera naquela madrugada de Sábado, já passava das três. Naqueles segundos que me detive a olhar para ele pensei: aqui está um ser que antes não existia, e agora graças a mim, existe. Ou sempre existiu, só que noutra forma, acreditando no senhor de Lavoisier. O que teria sido ele antes desta nova metamorfose? Um espermatozóide, talvez. Mas qual? Dizem que a frutose estimula a produção dos espermatozóides...seria ele fruta? Foi aí que pensei naquele dia de Verão em Albufeira, tinha 15 anos, e apanhei a minha primeira grande bebedeira. Já na fase de "ressaca", lembro-me de ter comido um melão inteiro. Sim, era o que aquela criatura me fazia lembrar naquele momento: o melão verde e docinho que comi naquele início de noite em Albufeira onze anos antes.

E no dia seguinte lá estavam todos os parentes, amigos e cia. para ver o bebé, deitado no berçário, numa caminha onde se lia SEBASTI ÃO. Bom, atendendo que estávamos no Hospital chinês, a intenção é que conta. Ao fim de alguns dias, levámo-lo para casa, não nos tendo sido dada outra alternativa. Os dias que se seguiram, tanto o Natal como o Ano Novo, foram marcados pela monotonia do bebé. Bebé para aqui, bebé para ali, fraldas, biberons, noites a acordar de três em três horas para dar o leite, em suma, o miúdo não fazia lá muita companhia. Ou dormia, ou acordava e chorava por leite, ou porque tinha a fralda húmida, e dormia outra vez. Mas era enquanto dormia que olhei para ele e tive aquele sentimento narcisista recalcado que todos os pais têm: é o bebé mais bonito do mundo. O meu anjinho. E quando lhe dava o dedo, ele segurava, e eu sorria. Até que enfim. Valeu mesmo a pena.

Foi há 13 anos, Sebastião, e hoje estás um homenzinho, e olha, um dia a tua vez também vai chegar. Faz só para que seja daqui a muitos e bons anos, pois uff, sem te querer desconsiderar, é uma trabalheira do caraças, meu filho. Agora que entras oficialmente na adolescência, nos "teens", deixa-me que te abrace, e quando os nossos braços se encaixarem, ambos vamos saber como tudo correu bem naquela noite que descrevi ali em cima. Parabéns, homem!

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