terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O meu trânsito (da sala para a cama)


Hoje deu-me para falar do trânsito. Eu não queria, e como tem feito frio, chove desde Sábado e estou de férias, o que menos quero é aborrecer-me com coisas como o trânsito de Macau. No outro dia fui almoçar com a família, que teve a gentileza de vir buscar perto de casa e levar-me de carro. Pelo caminho alguém se lamentava de "como o trânsito em Macau está cada vez mais impossível". De facto, parece que a única hora em que pode conduzir na peninsula e ilhas sem partilhar a estrada com os cartados desastrados da tribo é depois das 10 da noite. Nos dias de semana em que chove, como hoje e ontem, é o caos, uma cidade sem rei nem roque, engarrafada e a transbordar de água da chuva. É esta a obra prima de Wong Wan, que um dia estava a brincar com os carrinhos da Matchbox e pensou com os seus botões: "um dia vou f... estes gajos dos pópós". Uma pergunta: Wong Wan tem carta? Até onde se consegue puxar para trás o assento do condutor? Perguntar não ofende.

Nos últimos cinco dias remeti-me à condição de ermitão. Isolei-me do mundo, não fiz a barba, e o meu raio de acção limita-se aqui ao bairro, à zona do Tarrafeiro. Não me lembro da última vez que apanhei um táxi, e evito andar de autocarro se a distância se pode fazer em menos de meia-hora a pé. E mesmo andar a pé começa a ser uma tarefa espinhosa. Ontem (segunda-feira) à noite fui à caixa ATM mais próxima, na Rua 5 de Outubro, e de regresso, já na "safezone" da Rua dos Colonos, tinha um palerma a apitar-me aos ouvidos, porque eu "estava andar no meio da estrada". Bem que gostava de deixar o sr. motorista passar, mas acontece que estão pelo menos quatro outros automóveis estacionados em cima das linhas amarelas, o que me impede de circular num dos lados. Estava lá um também da PSP. Devia ser para se certificar que ninguém gamava os auto-radios dos veículos em nítido incumprimento da lei. Mas esperem lá, esqueci-me: isto não é "ilegal" de todo. É típico.

Cada vez que saio de casa tenho a sensação que acordei de um coma de vinte anos, e já não conheço o mundo. Não sei se estou a ficar velho, mas fico com os nervos em franja cada vez que passa ao meu lado um autocarro, e me deixa a ressonância do motor a ecoar-me nos ouvidos pelo menos durante dez segundos. E a propósito, não tinha proibido os motociclos com motor de arranque? Já agora que tal inspecionar algumas dessas camionetas de turismo que por aí andam, recuperados dos tempos da guerra da Coreia, que até pingam óleo na estrada e tudo? E quem são aqueles palermas que vão a conduzir com o rádio aos berros, ansiosos por mostrar ao mundo o seu excelente gosto musical? Estou a considerar apanhar uma daquelas doenças não-letais mas altamente contagiosas, e tornar-me no primeiro "rapaz da bolha" em Macau. Sim, quando não estou em casa, apetece-me ir para casa.

O meu protesto individual, silencioso e simbólico foi hoje interrompido com uma consulta de rotina marcada para as 16 horas. Ingenuamente, resolvi sair de casa às 16:35, com esperança de apanhar o autocarro nº 6A na paragem em frente ao silo Pak Kong, que me deixaria à porta do hospital público, no topo da monte que é atravessado pela Estrada do Conde S. Januário. Passaram o 3, o 33, o 26A, o 19, o 33 outra vez, depois o 1, mas o 6A, nem vê-lo. Eram já 16:55, e resolvi verificar a tabela, para me certificar que o tal 6A parava ali. E de facto pára, e segundo a informação atenciosamente pela TCM, entre as 15:53 e as 19:03 de segunda a sexta (excepto feriados públicos), passa um de dez em dez minutos. Bem, se calhar os dois últimos atrasaram-se, ou tiveram um furo. Vamos mais longe, perderam-se no triângulo das bermudas e das cuecas "boxers" do Wong Wan. Perdidinhos, ali, no meio daquela chicha suada toda.

Eram cinco em ponto, e era necessário mudar de estratégia. Apanhar um táxi? Impossível. Ir a pé? E se o autocarro chegar? Mesmo que não chegue, é um bom esticão dali ao meu destino, e corria contra o relógio. Podia optar por outra carreira, mas os meus conhecimentos sobre qual vai para onde são escassos, e no há tempo para estudar os itinerários. Era preciso passar à acção. Verifiquei que o trânsito estava engarrafado no cruzamento em frente ao Circle K da Ponte 16, onde funcionam os semáforos mais demorados de Macau, e tive uma ideia luminosa: faço um "forcing" a pé até à próxima paragem, e acaso o autocarro apareça, tomo-o logo ali. E qual era a próxima paragem, mesmo? Av. Almeida Ribeiro/Rua dos Mercadores; é quase ao virar da esquina. 'Bora lá.

Fiz o percurso num ápice, em menos de cinco minutos, olhando para trás frequentemente, para ver se via o malfadado 6A. Nem sombre dele. Pensei que podia fazer disto um jogo divertido. Qual é a próxima paragem? Praia Grande/Si Toi. Um grande desafio, e arriscava-me a perder o autocarro a meio da jornada. Seria mesmo assim? Olhei para o estado do trânsito, e pelo estado lastimável em que se encontrava, pensei que indo a pé ainda apanhava aquele primeiro 33 que passou por mim meia-hora antes, às 16:35. As buzinas eram tantas que se estivessem sintonizadas ao ritmo do "Jarabe Tapatío" era só juntar-lhes uns mariachis, mandar vir uns tacos e festejar o 5 de Mayo com quatro meses e meio de antecedência.

Mesmo assim preferi não arriscar, e aumentei a cadência do meu passo. O percurso prometia ser um misto de corta-mato e obstáculos. Primeiro foi preciso "fintar" alguns transeuntes baralhados. Continuo sem entender porque é que as pessoas optam por passar debaixo das varandas para evitar a chuva, e mesmo assim mantêm o guarda-chuva aberto. É preguiça de o fechar e depois abrir outra vez? À porta do Hotel Central ia "perdendo uma vida", quando um simpático turista do continente, acompanhado de outros dois, quase me acertava com o guarda-chuva, que usava para apontar não sei para onde. Digo "simpático" porque se apressou a pedir desculpas, e como sobrevivi, não faz mal. Entretanto ia prestando atenção à estrada, para ver se aparecia o 6A. Nem rasto dele.

E lá estava eu no Edifício Si Toi, em plena Avenida da Praia Grande, e o relógio marcava onze minutos depois das cinco. Boa media, a minha, e boa merda, a TCM, que apesar de prometer autocarros 6A de dez em dez minutos, não conseguiu produzir um único em mais de meia-hora. Bem a última paragem é o Jardim de S. Francisco, mas daqui já dá para ir a pé. Cheguei ao hospital eram exactamente 17:20, mais os cinco minutos para chegar à especialidade, e não houve atraso de todo. Antes das 6 já estava cá fora, a caminho de casa...a pé, claro. Lembrasse-me eu de me meter num desses amaldiçoados transportes públicos, e se calhar ainda lá estava. Passo o exagero. Agora com licença que me vou trancar em casa durante uns tempos. Pelo menos até o Wong Wan se aposentar...

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