Mais uma noite de Natal, troca de prendas e não sei que mais, tudo muito giro, as crianças adoram, os adultos vêem o subsídio de Natal a ser desembrulhado, nasceu o Menino Jesus. Se para as crianças já é difícil escolher prendas - e ele há crianças difíceis de contentar, uns pequenos monstrinhos - para os adultos é ainda mais difícil. No caso dos familiares, namoradas e amigos íntimos existe a vantagem de conhecermos os seus gostos, mas mesmo isso é uma faca de dois gumes. Há pessoas que têm já tanta tralha que se torna complicado ser original, ou há ainda aquela coisa que sabemos de certeza que ela vai gostar, e temos que competir com os restantes familiares e/ou amigos que vão querer com toda a certeza oferecer a mesma coisa.
Entre os "prendáveis" nesta quadra festiva estão os parentes em linha recta ascendente: pais, mães, avós (se os houver); em linha paralela (irmãos/irmãs); e em linha recta descendente (filhos, netos). E o cônjuge, claro, se bem que isso pode ser combinado entre ambos - afinal vivem juntos. Desculpa-se se não ofercermos nada aos tios, primos, cunhados, etc., mas pelo sim pelo não é melhor dar uma coisinha à sogra, para ver se esta não passa o resto desse ano e próximo inteiro a reclamar. Uma caixa de bombons com recheio de estriquinina são (ou deviam ser) o presente ideal. Se sabemos que há crianças, mesmo que não sejam nossas e não tenhamos a obrigação de agradar a quem nunca nos valeu uma queca, é melhor oferecer uma porcaria qualquer: um carrinho, uma bola baratucha, uma caixa de chocolates de marca branca, sei lá, alguma coisa para que os cabrões dos putos não fiquem a pensar que somos alguns unhas-de-fome, ou que no regresso a casa vão a perguntar ao pai: "quem era aquele senhor esquisito amigo do tio?".
Destes "prendáveis" que referi, alguns gostam de deixar pistas sobre o que lhes oferecer no Natal, e nisto as donas-de-casa são especialistas. Estamos em inícios de Dezembro, ainda não fizemos as compras e o Natal está próximo, faltam ideias e a mãe está na cozinha a fazer um bolo. E enquanto bate as claras em castelo com um garfo desabafa: "ai como eu gostava de ter uma batedeira...era tudo muito mais fácil". Bingo, já está. Se a família for numerosa, pode ainda acrescentar: "...e um conjunto de facas de cozinha, que estas já não cortam nada...olhem para este avental, uma lástima" e por aí em diante. Se o marido e os filhos fizerem uma vaquinha, podem comprar um Bimbi e matam uma data de coelhos com uma cajadada só.
Para deixar o agregado familiar feliz na noite de Natal, basta ser um bom observador. Se o avô teima em ouvir os seus discos naquela garfonola à manivela, se calhar é altura de lhe comprar um leitor de CD, por exemplo (e já agora alguns CDs de música que ele gosta, que normalmente se vendem nos hipermercados por um euro a dúzia). Mas cuidado ao ler os sinais: se a irmãzinha pequena teima em brincar com aquela boneca a que já faltam vários dedos e com um olho perndurado, é porque se calhar tem afeição a ela; pode ser decadente, mas é a sua boneca. Podemos oferecer-lhe outra, mas nunca com a intenção de substituir aquela. O melhor mesmo é dar-lhe uma coisa diferente, e nova, e os mercadores do Natal dão-lhe sempre um vasto leque de escolhas.
Faça o que fizer, nunca pergunte directamente às pessoas o que elas querem, que elas podem dizer mesmo o que querem (um cruzeiro nas ilhas gregas, uma Harley-Davidson). Especialmente os mais velhos, que nunca levam nada a sério e andam sempre mal dispostos: "o que eu queria? olha queria livrar-me destas malditas cataratas que ainda no outro dia fui parar à urgência porque fui mordida por uma ratazana a que fui dar uma festinha porque pensava que era uma gatinha". Ou então pedem coisas abstractas que nunca lhes podemos dar, como "saúde". O melhor é nem perguntar indirectamente, do tipo:
- "Ó avó, o que gostava que o Pai Natal lhe deixasse este ano no sapatinho?"
- "Eu? Nada, filho...olha gostava era que ele me levasse desta vida de uma vez por todas, que já não posso mais com estas dores nas costas. Há dias em que nem me posso levantar, e além disso custa-me a urinar, e...".
E pronto, bem feito. Quem lhe mandou dar corda à velhota, e ainda para mais insinuar que ela é senil e acredita no Pai Natal? Queriam senilidade? Então aqui têm.
Os avôs e as avós são previsíveis: oferecem camisolas, meias, luvas ou qualquer coisa "quentinha". Tivessem feito o Natal no Verão, e ofereciam bonés e protector solar. Quanto ao que lhes oferecer a eles, bem, um xaile ou chapéu daqueles que os velhos usam seria responder à letra, um saco de água quente seria uma vingança saborosa, uma bengala podia ser considerado ofensivo, e um caixão podia ser ir longe demais. Façam o que fizerem, não convém oferecer tecnologia muito avançada, que eles começam a dizer que são muito velhos, que aquilo já não é para eles, em suma, começam a manchar o Natal com o espectro da morte. Mesmo que queira oferecer ao avô o tal leitor de CD que mencionei em cima, terá que ensiná-lo a usar o aparelho...umas trinta vezes. E mesmo assim até ele atinar vai ser preciso alguém para lhe mudar os discos durante os primeiros tempos, e aturá-lo enquanto se lamenta das saudades da grafonola, que é "melhor que esta porcaria".
A família já está. Agora, e com a família fora destas contas? Em Macau dá-se vezes o caso de alguém ficar sozinho no Natal. Não porque seja orfão ou pobre (esses têm a igreja) ou tresloucado (esses nem devem saber que é Natal), mas porque está cá sem a família, em trabalho, e por motivos de agenda não lhe foi possível passar o Natal no seu país de origem. Estes costumam "encostar-se" a um casal amigo e passar a Consoada na casa destes juntamente com outras almas solitárias. Mesmo nestas circunstâncias convém sempre apalpar terreno, e já que estamos em Macau, vou apresentar duas situações em que "pôdi", e "naum pôdi":
Cenário nº 1:
- "Lélé, onde é que tu, o Carlos e os miúdos vão passar o Natal?"
- "Aqui em casa...vamos fazer um jantar, comer uns doces, trocar as prendas, uma coisa simples. Queres vir?".
- "Parece bem...quem vem mais?"
- "Somos só nós, mais a irmã do Carlos, e depois da meia-noite vem cá um casal amigo".
- "A irmã do Carlos é gira?"
- "Os homens dizem que é boa cumó milho, é solteira e sem namorado, e acabou agora o curso de veterinária."
PÔDI: compre qualquer coisa de simpático, útil e de bom gosto para os adultos, coisas de crianças para as crianças, e se tiver oportunidade arraste a asa para a irmã do Carlos. Quando chegar a meia-noite, pisgue-se antes que chegue o tal casal amigo.
Cenário nº 2:
- "Lélé, onde é que tu, o Carlos e os miúdos vão passar o Natal?"
- "Aqui em casa...vêm os meus pais, os pais deles, os irmãos e irmãs de ambos com os respectivos cônjuges e criançada - alguns deles adolescentes. Se quiseres podes vir, vamos ter alguns casais amigos e os filhos deles, e mais três ou quatro pindéricos como tu, colegas do Carlos. Cinquenta pessoas no total, nada de muito formal."
- "Ah...vou pensar nisso."
NAUM PÔDI: diga-lhes que vai passar o Natal com a namorada, ou que à última hora vai sair de Macau. De seguida telefone a outro casal amigo a quem possa cravar a ceia e ter pelo menos um pouco de calor humano na noite de Natal. Caso nada mais resulte, junte-se a outros pindéricos, quer dizer, "solitários" como você e vão afogar as mágoas no álcool.
Agora as compras de Natal. No caso de precisar de comprar qualquer coisa para alguém que não conhece ou conhece mal, evite comprar coisas que você gosta, especialmente se tiver um gosto esquisito. Não lhe posso dizer o que pode ser considerado desagradável, mas assim de repente não é boa ideia oferecer objectos pesados e inúteis, como cães de loiça ou jarras para pôr flores. No caso de querer oferecer livros, convém não serem muito especializados, sobre filatelia, jardinagem ou ponto-cruz (ou pornografia, claro). Se quiser oferecer música ou filmes, evite. "Mas ó Leocardo, toda a gente gosta da Mariza e dos Gato Fedorento". Toda a gente? Realizaram uma sondagem da Universidade Católica e o resultado foi de 100% com uma margem de dúvida de 0,0%? No caso do perfume ou das eau de toilette masculinas, pesa também o factor do gosto pessoal, mas algo de discreto é sempre bem recebido.
Entre as pessoas que fazem compras de Natal, há aqueles que levam essa tarefa muito a sério, inquirem as esposas sobre os gostos dos maridos e vice-versa, ou ambos sobre o que é que os filhos gostam, consultam listas nas livrarias, entrevistam os amigos sobre o que lhes faz falta, do que gostam de fazer, etc, etc. Quando se tem um orçamento fixo para prendas de Natal, a lógica determina que quanto mais prendas se oferecem, pior é a qualidade das mesmas. Tenha sempre em mente que os familiares e amigos próximos têm prioridade, e para os outros uma mera lembrança já é uma prova de afecto. Quem teima em ser materialista no Natal, nunca devia ter sido convidado.
Falando por mim, não me considero uma pessoa difícil de contentar. Agradeço tudo o que me ofereçam, contando que não seja com o propósito expresso de me irritar, agredir ou provocar-me a morte. Uma caixa com uma piton viva lá dentro não será uma prenda bem intencionada, certamente. Se fôr um objecto decorativo, contando que não me ocupe metade da sala, arranjo um lugar para ele. Se é um filme, vejo, se é um CD, oiço (desde que não sejam ranchos folclóricos), se for comida e não contenha durian ou wasabi, como. E agradeço sempre. Se gostar mesmo muito, posso agradecer mais efusivamente, mas nunca me vão ver a fazer cara de mete-nojo ou fazer algum comentário cínico do tipo: "o que é isto? está a tentar livrar-se do lixo que lhe deram o ano passado?". E não se esqueçam do essencial: é Natal, e o mais importante é que estamos ali todos vivos. No ano que vem isto pode ser menos verdade. Salut!
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