sábado, 21 de dezembro de 2013

Será que eu ouvi...democracia?


A India é a maior democracia do mundo. Porquê? Simplesmente porque é o país mais populoso do mundo onde existe sufrágio directo e universal. E é só. Se quisermos chamar à India uma democracia, sem dúvida que é a maior do mundo, em quantidade, e também a pior do mundo, em qualidade.

Assinalou-se na última segunda-feira um ano desde que uma jovem Indiana foi violada por um grupo de homens num autocarro em Nova Deli, vindo a morrer poucos dias depois em Singapura, vítima dos ferimentos causados pela brutalidade do acto. A India passou então por uma onda de violência sexual contra as mulheres, com as notícias de abusos sexuais e sucederem-se em catadupa. A imagem do país ficou beliscada aos olhos da comunidade internacional. O que se passa com os homens indianos, afinal?

O país que contribuíu para a humanidade com o famoso Kama Sutra volta agora a ser notícia por causa do sexo. O Supremo Tribunal indiano invalidou uma decisão de 2009 deliberada pelo Tribunal Superior de Nova Deli, uma instância inferior, que abolia o artº 377 do Código Penal, que punia os "actos sexuais contra a natureza" com penas até 10 anos de prisão. Os "actos" em causa referem-se obviamente às relações homossexuais, e a decisão que volta a criminalizar o sexo entre pessoas do mesmo género causou a indignação dos grupos de defesa dos direitos "gay" - e não só.

Numa altura em que muitos países discutem a questão do casamento "gay" e das uniões civis dos casais homossexuais, a tal "maior democracia do mundo" ainda decide se a intimidade dos seus cidadãos é ou não um crime. Esta democracia de arenque só descriminalizou a homossexualidade há 4 anos, e como se isso não fosse já por si embaraçoso, volta agora atrás nessa decisão. E como em democracia que é democracia existe a separação de poderes, o Governo não está de acordo com o Supremo, e faz agora pressão para que reconsiderem esta decisão. Mas com cautela e sem grandes alaridos, pois há eleições gerais em Maio, o eleitorado é tendencialmente conservador, e o Partido Nacionalista Hindu, na oposição, espera tirar dividendos da questão. Aí está a democracia indiana no seu melhor.

Como se isto não fosse já suficientemente embaraçoso, vêm os três líderes religiosos das principais confissões do país congratular-se com a restituição do artigo que proíbe os tais actos contra a ordem natural das coisas. São estes os únicos que têm razões para festejar, pois foram eles que interpuseram o recurso à decisão de 2009, formando para tal um grupo colectivo. Na hora de expressar o ódio às minorias, hindus, muçulmanos e cristãos dão as mãos. Não me recordo de tamanho consenso entre as religiões na hora de condenar a onda de violações deste ano. Parece que são eles que decidem o que é e o que não é "natural".

O responsável por uma associação de caridade islâmica que fez parte da "troika" que apresentou o recurso agora dado como válido diz que "as três maiores confissões do país estavam contra a decisão do Tribunal Superior", acrescentando que "o sexo contra-natura é condenado por todas as religiões do mundo". É já ousadia que o senhor fale em nome de mil milhões de indianos, mas vai mesmo ao ponto de falar em nome de todas as religiões do mundo. Além de existirem cultos destinados a minorias "marginais" como os homossexuais, o Budismo, por exemplo, não condena as suas práticas amorosas. E falamos aqui de uma das maiores religiões do mundo.

A India não é um país, é um grupo de países colados uns aos outros. Não é à toa que se chama "União Indiana", mas quando a India foi unida deixou à mostra as ligaduras, os pensos, as cicatrizes, as rachas entre os cacos. Em suma, é um autêntico "saco de gatas". Com 1200 milhões de habitantes de 2000 grupos étnicos, distribuídos por mais de 27 milhões de cidades (!), duas línguas oficiais e 22 dialectos reconhecidos (fora os outros) e um quarto da população analfabeta, como é que se vai pensar em democracia? Como é que uma massa humana tão numerosa, e ainda a crescer 2,3% por ano, e tão heterógenea vai concordar com um só líder, com um só sistema politico, e ainda ser obrigado a aceitar conviver debaixo da mesma bandeira com outros que não têm nada a ver com a sua cultura, etnia, crença ou costumes?

Olhemos para a India de hoje e tiremos as nossas conclusões: o crescimento económico exponencial registado nos últimos anos levou a acentuar o fosso entre ricos e pobres; os progressos na medicina elevaram a esperança média de vida, mas isto só levou a que os pobres vivessem mais, e portanto quanto mais gente, mais pobres; apesar desses "progressos", quase um milhão de indianos morrem todos os anos devido à poluição ou à água contaminada, e taxa de mortalidade infantil continua a ser uma das mais elevadas do mundo, acima dos 3%; e last but not least, vigora em pleno século XXI um sistema de castas, que determina o destino dos indianos desde que nascem, e inclui que escolas podem ou não frequentar, que profissões lhes são permitidas ou vedadas, e até com quem devem casar. Expliquem-me lá como é que isto se insere no conceito de democracia, que eu não estou a entender muito bem.

A solução para India tinha que sair de uma destas duas: ou desagregava-se a união e dava-se independência às federações e territórios que a compõem actualmente (os que se quisessem juntar podiam fazê-lo), ou estabelecia-se um regime semelhante ao da China, autocrático e de partido único, que governasse obedecendo a critérios científicos e com mão-de-ferro, para colocar alguma ordem naquela barafunda. República Democrática Socialista Soberana e Secular, com um sistema parlamentar e multipartidário? Essa é boa. Contem outra.

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