sábado, 28 de dezembro de 2013

Gosto sim, e depois?


Já fomos passear...e agora, onde vamos comer?

Apesar de todos os defeitos cada vez mais evidentes, uma das vantagens de Macau é a varidade em termos de opções gastronómicas. Só come sempre a mesma coisa quem quer, e se temos lojas de sopas de fitas praticamente porta sim-porta não em alguns locais do território, a culpa é do preconceito e da falta de imaginação dos nossos residentes. Revolta-me escutar alguém dizer que "não há mais nada para comer" quando opta por massas com bolas de sei-lá-o-quê ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Dói-me a alma quando vejo os McDonald's cheios praticamente a qualquer hora do dia. Em Macau temos uma Babilónia de sabores, uma cornucópia de especialidades de países e regiões vizinhas, uma oferta tão vasta que nem quatro estômagos chegavam para provar tudo numa semana. É verdade que não somos tão cosmopolitas como os nossos vizinhos de Hong Kong, e que temos sofrido muito com o inflacionamento do preço das rendas nos espaços comerciais, mas procurando bem, andando pela cidade percorrendo becos e travessas, encontramos surpresas muito agradáveis, e para os mais desinibidos e venturosos, o paladar descobre novos limites, caminhos alternativos para se chegar ao ponto G culinário - "G" de "gourmet" neste caso.


Pegando nisto tudo, fazemos o quê?

Temos uma longa tradição de restauração portuguesa, e apesar das aldrabices e das limitações em termos de frescura dos ingredientes, ainda é possível encontrar uma mão cheia de locais decentes onde provar a comida lusitana. Para quem quer usufruír da experiência de viver em Macau a sério, da cabeça ao estômago, existe a comida macaense, um mundo novo a descobrir que nunca nos deixa de surpreender; e com uma vantagem: é possível encontrar 100% dos ingredientes. Nos últimos anos têm aberto um pouco por todo o território um sem número de restaurantes especializados em gastronomia ocidental, desde espanhóis a mexicanos, passando por franceses, brasileiros, argentinos ou americanices como os "hot-dogs", "burguers", "chips", "and shit" - só falta mesmo um restaurante russo, e já agora porque não um grego ou turco, alargando a oferta à cozinha mediterrânica, reconhecidamente uma das mais equilibradas e saudáveis do mundo. Mesmo a cozinha italiana, outrora monopolizada pela família Acconci, tem brotado um pouco por toda a parte, mesmo que timidamente. Felizmente já é possível encontrar uma ou outra tendinha que vende "shawarma", "kebab", "falafel" e outras delícias da comida arábica.


Comida filipina: a melhor da Ásia, e uma das melhores do mundo.

Da cozinha asiática não faltam os restaurantes japoneses, sempre uma garantia de bom negócio e casa cheia, assim como alguma cozinha regional chinesa de fora da região de Cantão, sendo a de Xangai ainda a mais apreciada. A gastronomia coreana, de que não sou grande adepto, tem aparecido a espaços, assim como algumas pequenas tascas de comida indonésia, resultado da cada vez maior comunidade daquele país a trabalhar em Macau; o mesmo acontece com os restaurantes vietnamitas, mas em menor escala. O caminho contrário têm feito os restaurantes tailandeses, em tempos uma alternativa muito requisitada, mas que tem ficado reduzida a alguns locais mais selectos, ou ao hotéis-casinos, numa versão menos económica. A comida indiana, uma das minhas favoritas, continua a sofrer de uma gritante falta de interesse, sendo o velhinho Indian Garden, na Taipa, a sua maior referência. Mas para mim o melhor dos sabores regionais, além da comida macaense, claro, é a riquíssima gastronomia que nos chega das Filipinas.


Pancit palabok: nunca umas massas foram tão bem tratadas.

A comida filipina, e muita gente desconhece este facto, é muito semelhante à nossa, à portuguesa, e ainda com o aliciante de combinar o exotismo asiático com o "salero" mexicano (estranhamente filipinos e mexicanos são povos muito parecidos, apesar de se encontrarem em pólos opostos do planeta), com os seus pratos coloridos com o amarelo, vermelho e verde dos pimentões e malaguetas - e a comida filipina é tudo menos picante. Outra coisa não seria de esperar de um país tão etnicamente heterogéneo e um dos mais populosos do mundo. Assim temos a cozinha de Pampanga, com o seu Sisig, a de Cebu, com os seus pratos de "lechon" (o nosso leitão), ou a influência islâmica de Mindanao, no sul. Depois há ainda os pratos comuns a todo o país: a kaldereta (caldeireada), o menudo (semelhante à jardineira), o mechado, o adobo, o kare-kare (com um delicioso molho de amendoim) e o sinigang, a versão filipina do Cozido à Portuguesa. Não podia faltar ainda a influência asiática por excelência, com as massas: o pancit canton, semelhante ao "chow mein" ou o pancit palabok, o meu prato favorito, que consiste numa massa fina branca (sotanghon) com molho de chicharon (pele ou gordura de porco frita), carne de porco picada, camarão, ovo cozido e cebolinho, ou o lumpia, algo muito semelhante aos crepes chineses.


O famoso e controverso balot.

Existem alguns pratos filipinos que não são para todos os gostos, claro, mas quanto mais se conhece a gastronomia desse país, mais apaixonante e interessante se torna. Por exemplo, existe um prato chamado dinuguan, que consiste de vísceras de porco (pulmões, fígado, coração, entre outras) cozinhadas no sangue do próprio animal - algo semelhante à nossa cabidela, com excepção de que não se trata de coelho ou aves. Dizem os filipinos que este prato, que faz torcer o nariz aos estrangeiros, deve ser apenas consumido quando se tem confiança na pessoa que o confecionou. Há uma versão do balichão chinês, a pasta de camarão seco, conhecida por "bagoong", existindo algumas variantes. Este bagoong entra em pratos como o ginataang, um prato de carne com leite de coco, do próprio kare-kare ou do dinengdeng, um tipo de sopa. O mais controverso será com toda a certeza o balot (que literalmente significa "embrulho"), um ovo cozido com um feto de uma galinha ou de um pato, apanhado entre os 11 e os 15 dias de gestação.


Tortang talong: quando a beringela tem mais encanto.

Gosto de tudo isto e muito mais, e dou por mim a gostar de coisas que não gostava antes; exemplo disso é a tortang talong, uma beringela cortada de modo longitudinal e frita com ovo, vegetais e carne de porco picada. É mais fácil contar o que não gosto. Os pequenos-almoços por exemplo, que consistem sobretudo de bangus (peixe frito), tocino (toucinho frito com mel), longganisa (soa a linguiça, mas assemelha-se mais a uma salsicha) ou lugaw, uma espécie de canja. Isto são tudo coisas que até se comem bem, mas um tanto ou quanto agressivas para se consumir como primeira refeição do dia. As sobremesas são também uma desilusão, com excepção talvez do halo-halo, uma bola de gelado com nata de coco, feijão, frutas de conserva e leite, servida com gelo raspado, ou o gelado de keso royal, com pedaços de queijo. A pastelaria é também bastante fraquinha, salvando-se talvez o otap, que lembra os nossos "palmier".


Umami: restaurante filipino com nome de hamburguer japonês.

Em Macau existe um excelente restaurante filipino, o Umami, situado na Rua de Coelho do Amaral, ao lado do Hospital Kiang Wu, bem como algumas lojas que vencem comida para fora. Estas últimas são um enorme sucesso junto da comunidade filipina e não só. Pela módica quantia de vinte patacas pode-se adquirir uma caixa de arroz com uma escolha de duas porções de alguns dos pratos que referi acima (e muitos mais, não dá para falar de todos), e em doses generosas. Onde mais se almoça assim por duas notas de dez? Pode ainda aventurar-se a cozinhar você próprio estas iguarias, adquirindo os molhos de pacote e seguindo a receita impressa no verso. Nestas lojas é possível encontrar também "snacks", bebidas, conservas e outros produtos originários das Filipinas, e para quem não conhece vai ficar positivamente surpreendido.


Bagoong: um produto que se pode adquirir em qualquer loja Filipina de Macau.

Muitos dos locais rejeitam a culinária e os produtos filipinos, e isto deve-se sobretudo - até alguém produzir uma teoria mais credível - ao preconceito: são filipinos, são as empregadas, têm a pele escura e portanto são "sujos", um polícia maluco matou aqueles turistas de Hong Kong, portanto a comida deve estar envenenada, tudo serve de desculpa para manifestar a ignorância. Os mesmos que dizem que a comida filipina é "uma porcaria" (sem nunca terem provado, lá está) são os primeiros a ir depois comprar massas feitas por um indivíduo sem camisa que põe os pés em cima da bancada da cozinha e mexe na comida com as mãos, ou petiscos fritos em óleo preto que nunca é mudado. Às vezes quando me vêem a almoçar comida filipina perguntam-me "você gosta disso?", com uma expressão de parvinhos. Dá-me logo vontade de responder "não, não gosto, mas estou com vontade de sofrer e dá-me gozo vomitar aquilo que comi". Outras vezes chegam à cozinha e perguntam o que "cheira tão bem", mas quando lhes digo o que é mudam de opinião e dizem que "não presta". Os mais diplomáticos ainda dizem que é uma gastronomia que "não se adapta ao paladar local". Até são capazes de ter razão: não se adapta ao mau paladar local.


Faça você mesmo, em casa.

O pior é quando a discriminação parte dos próprios filipinos. Muitas vezes entro nas suas lojas e compro alguns produtos, e os restantes clientes olham para mim como se estivessem a olhar para um extra-terrestre. Mesmo os filipinos da caixa (os que ainda não me conhecem) ficam um pouco desconfiados. Quando compro o almoço num desses tais "take-away" e está mais alguém à espera exclamam muito admirados (às vezes na própria língua): "ah...ele gosta disto". Se chamo os pratos pelos nomes, levam às mãos à boca de espanto, como se estivessem a ver uma lontra a falar. Se perdem a timidez ainda me perguntam se gosto de comida filipina, e respondo sempre que sim senhor, é óptima, a melhor coisa que inventaram desde o pão de forma, mas estou tão farto de tanta admiração, que se não fosse eu um cavalheiro dizia-lhes que "não gosto, é para o meu cão".


Chinoy Express: uma das cadeias de mini-mercados filipinos em Macau.

Qual é a razão de tanta surpresa meus amigos? Estas lojas não estão abertas para todos? Que "apartheid" alimentar é este? Não ficam contentes que os estrangeiros apreciem a vossa gastronomia e os vossos produtos? Imaginem que só os portugueses iam comer nos restaurantes portugueses. Existiam só dois ou três ou iam todos à falência. Estamos aqui a falar de comida onde entram ingredientes como carne de vaca, porco, galinha, ou peixe e marisco, e legumes como as batatas, cenouras, tomates ou hortaliças. Nada de esquisito ou do outro mundo. Deixem-se lá de parvoíces pá, Deviamos todos provar tudo o que Macau tem de oferta gastronómica antes de emitir juízos de valor. E se acham mal que eu goste de comida filipina, birmanesa, esquimó ou Zulu, eu respondo apenas "gosto sim, e depois?". Mesmo que não gostasse, provava antes de dizer que não gostava. E pelo menos assim não vou morrer estúpido.

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