terça-feira, 24 de dezembro de 2013

E depois do Natal?


Estivessemos nós no Natal de há três ou quatro anos, quando o Bairro do Oriente estava no seu auge e o seua autor permanecia no anonimato, e as vozes críticas começavam logo a fazer-se ouvir: "Lá está o Leocardo a querer estragar o Natal". Quem, moi? Mas serei eu o "Grinch" que roubou o Natal? "Então porque é que tens uma fotografia do Hitler no cabeçalho do artigo, seu palerma?". E porque não? O führer também comemorava o Natal, ao contrário de Gandhi, por exemplo. Reparem como o tio Adolfo faz tão bem de Pai Natal, distribuíndo prendas pelos pequeninos, que lhe fazem a saudação da praxe? E faz todo o sentido lembrar um homem odiado por tantos, e ainda admirado por outros, nesta quadra natalícia. E no fim já vão ver porquê. Este "post", mesmo que publicado na noite de Natal, não serve para desejar "Boas Festas" aos leitores - já fiz isso ontem. Se tiveram paciência para ficar até ao final deste primeiro parágrafo, então escutem o que me leva a destoar da atmosfera de paz, amor, fraternidade do espírito natalício, essa posta de lamechice com couves de hipocrisia.

Portanto hoje chegamos à noite de 24 de Dezembro, a Consoada. Amanhã é dia 25, dia de Natal, e é suposto durante estas 36 horas que nos separam do dia 26 darmos uma trégua natalícia à amargura que tantas vezes se manifesta durante o resto do ano. Esquecemos os problemas, perdoamos os nossos inimigos - ou melhor, ignoralo-mos por um dia, e depois retomamos o azedume - e lembramo-nos dos mais pobres, dos mais desfavorecidos, daqueles que não têm Natal. Lembramo-nos mesmo deles? Como assim, levamo-los para a nossa casa e sentamo-los à mesa da ceia natalícia com a nossa família? Nada disso. Na melhor das hipóteses contribuimos com uns trocos para uma caridade qualquer, damos uma esmola, colocamos umas moedinhas no mealheiro da ajuda médica ao lado da caixa do McDonald's, qualquer coisa que não nos faça sujar as mãos que esta noite vão servir o bacalhau ou trinchar o perú. Mesmo os que fazem trabalho voluntário com os mais pobres e desfavorecidos, com os sem-abrigo, com as famílias em dificuldades financeiras que não têm uma ceia de Natal este ano, fazem-no dias antes do Natal, e hoje partilham com os seus as graças que os impediram de estar na mesma situação. Os que se mantêm ao serviço dos pobres na noite de hoje são normalmente religiosos, e se há voluntários da sociedade civil, é porque eles próprios não têm onde passar a Consoada.

No fundo a Consoada, o cerimonial da ceia, da família reunida à volta do bacalhau, do perú e dos doces, as prendas junto à árvore de Natal e tudo isso é uma espécie de celebração pelo sucesso das colheitas deste ano. É um "Oktoberfest" ou um S. Martinho revistos e aumentados. O chefe de família, deparando com a esposa, os filhos, os irmãos, cunhados, sogros, sobrinhos e etcetera, sorri, abana o copo de "brandy" e sente a satisfação do dever cumprido. Não falta lá um dos pais, que em alguns casos foi buscar nessa tarde ao asilo da terceira idade onde o acometeu há anos, com a promessa de o devolver no fim de dia de amanhã. Na hora de abrir as prendas, que lhe custaram uma pequena fortuna, regozija-se com a alegria dos mais pequenos, que se apressam a ir exprimentar os jogos electrónicos que ganharam este ano, fazendo algazarra até de madrugada. E lá fora, os pobres, os mendigos, os sem-abrigo, deixados ao frio e sem bacalhau, doces e presentes? Eles que não chateiem, que o Natal é para passar em família, e não me estraguem a noite com a miséria alheia. É assim que se assinala a Natividade, a vinda de Cristo ao mundo, tal e qual como ele quis. Mas foi assim que ele quis?

O mundo cristão comemora o Natal, o nascimento do seu Salvador, a 25 de Dezembro de cada ano. Não vou apresentar aqui as mil e uma evidências que provam que Jesus não nasceu no dia 25 de Dezembro, de como esta data estipulada para assinalar a vinda do messias é "emprestada" das festividades pagãs do Solstício de Inverno, ou dizer que os cristãos cairam num grande logro. Não se trata de logro nenhum, pois pouco importa que fosse a 25 de Dezembro, 6 de Janeiro ou 11 de Março, esta data reveste-se de uma aura de positividade, transmite a mensagem do bem, da partilha, da solidariedade, e só é pena que seja passageira. Mas olhando para o Presépio cristão, e reflectindo sobre a própria cena da Natividade, o que encontramos em comum com o Natal que celebramos hoje? O que nos diz a imagem do menino deitado nas palhas, rodeado dos pais, do burro e da vaquinha? Onde está o pinheiro com os presentes? Onde está toda a ostentação com que nos gostamos de rodear na noite em que se comemora o humilde nascimento de Cristo? Onde é que entra nesta história o Pai Natal?

"Mas é essa mensagem de partilha que torna o Natal tão especial, Leocardo. O Pai Natal representa a bondade; um velhinho que nos traz uma prenda", dirão os mais apaziguadores. Pois é, mas este tal Pai Natal só traz uma prenda a quem tenha dinheiro para pagar por ela. O que pensarão do tal Pai Natal as crianças que não vão ter uma prenda no sapatinho esta noite? E como se sentem as que nem um "sapatinho" têm? E foi este espírito mercantilista que demos ao Natal que leva até os não-cristãos a comemorá-lo; é fácil convencer alguém a trocar prendas, independentemente da sua religião. Jesus? Quem é? E quando chega o Pai Natal? O pior é que transmitimos aos nossos próprios filhos esta ideia de que Natal não é Natal sem prendas, sem uma mesa farta, sem a família toda viva e sorridente à volta da mesa da Consoada. Quando crescerem vão ter todos os anos esta pressão de dar um Natal em condições aos seus, e caso o consigam, esse é um sinal de que estão do lado dos bons, que o bébé Jesus os abençoou. Caso falhem, é porque o Pai Natal não gosta deles. Melhor sorte na próxima reencarnação.

Mas e os pobres comerciantes, coitados, que um mês antes do Natal começam a exibir os seus produtos, acompanhados de imagens do Pai Natal que parecem estar a passar a mensagem subliminar: "comprem, comprem, é Natal, portanto comprem"? Para esses também é Natal, e esta é a sua época alta. São como as floristas que desinteressadamente cobram os olhos da cara por altura do Dia dos Namorados, "em nome do amor". Não nos resta senão obedecer e comprar, para mostrarmos ao mundo que este ano a colheita foi vantajosa - mesmo que isso não seja bem verdade. Em Janeiro estamos cá para acertar as contas, haja saúde. Se este é o espírito natalício, então calo-me já. Obrigado à Sony, à Nintendo, às Toys'r'us, perfumarias, lojas de roupa e todos os restantes mercadores em nome de Jesus que nos trouxeram mais este Natal. E como é que Adolf Hitler entra nesta história afinal? Ah sim, foi ele quem disse "Uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade". E parece que esta é uma mentira que já contamos mais que mil vezes. Vai já para duas mil, e hoje acreditamos nela.

1 comentário:

Anónimo disse...

Leocardamigo

Essa de trazeres o Adolfo para a noite de Natal é um espantoooo como diz o Jô Soares. Mas no Natal ninguém leva a mal e por isso coisa e tal...

BF & abç