Esta imagem foi recolhida a semana passada em Nanchong, na província de Sichuan, no interior da China. Um menino de oito anos faltou às aulas, o pai descobriu, amarrou-o semi-nu a uma árvore e espancou-o com um pau. A criança berrava do alto das goelas, implorando ao pai que parasse, pedindo desculpa dezenas de vezes. O pai agredia-o com cada voz mais força, quase enloquecido de raiva, e pelo meio ainda bradava uns insultos contra o pequenote, que recorde-se, faltou às aulas. Não roubou nada, não enforcou o cão, não queimou a colheita de sorgo da família, não se esqueceu de dar milho às galinhas, nada disso. Faltou às aulas, mais exactamente a uma aula. Para ir brincar. As crianças gostam de brincar - pelo menos acho que ainda gostam. Até as crianças na China, que são crianças iguais às outras.
Terminado o arraial de porrada, uma equipa de reportagem ali levada pela comoção perguntou a alguns transeuntes o que pensavam da cena que tinha acabado de assistir, e a resposta foi unânime: o pai agiu bem. O quê? Agiu bem? Um homem não identificado que viu tudo doprincípio ao fim é soberbo no seu julgamento: “Algumas crianças são muito malcriadas e os pais têm que ensinar esse tipo de lição” - mesmo que isso implique agressão e humilhação pública, aparentemente. Uma senhora, quem sabe também uma mãe, é peremtória: "“Ele está a chorar porque o pai bateu com força, mas eu aposto que ele não se vai esquecer dessa lição quando pensar em falta outra vez às aulas” - nunca se sabe, se calhar até gostou e quer repetir. Entre os que se identificaram, um tal Xiu Ping foi mais pragmático: “Eu acho que a maioria das pessoas simpatizam com o pai. Na China de hoje não se chega longe sem educação, e se o rapaz sair da escola...” - bem, se sair da escola leva tanta porrada que fica sem pernas, e por muita educação que se tenha, sem pernas também não se vai longe.
Agora para nós, pais Ocidentais, isto é chocante. Ainda há alguns dias surgiu
este vídeo no LiveLeak que mostra uma mãe a espancar uma filha que não teria mais que três anos, no meio da rua, e insiste mesmo depois da pequena se agarrar às suas pernas e implorar perdão. Criticada por dois agentes da autoridade que passavam ali perto, ainda berrou com eles, reafirmando o direito "de educar a sua própria filha". Foi aqui perto, em Dongguan, província de Cantão. Estas notícias infelizmente frequente dão a entender que na China as pessoas são "cruéis", mas se estamos aqui a falar do maior país do mundo em termos populacionais, cada problema comum a outros pontos do globo serão também os maiores do mundo. Se na China temos 1300 milhões de alminhas, enquanto na Zâmbia, por exemplo, há apenas 13 milhões, ter mil malucos que pensam que são Napoleão na China não é mais nem menos que ter dez na Zâmbia com uma psicose idêntica: é a mesma coisa. O que dizer daquela professora primária de Mértola que fazia filmes pornográficos na sala de aula? Será este um problema exclusivo de Portugal?
É claro que não apodemos aprovar estes "métodos" utilizados pelos pais chineses para educar os filhos. É preciso ter em conta que o mercado de trabalho na China é cada vez mais competitivo, que as escolas seguem critérios mais exigentes, que não há lugar para os engraçadinhos, e ainda menos tolerância para actos de indisciplina, mas nada desculpa os abusos físicos a que algumas crianças são sujeitas, às vezes muito além do ponto ter ficado provado pelos pais. Não aprovo, não adopto o sistema para mim próprio, nem em parte, mas compreendo. A sério, um pouco de porradinha, de "comida de urso", como lhe chamava o meu pai, nunca fez mal nenhum a ninguém. Não que o meu pai me batesse, pois para ele bastava fazer uma cara séria para eu me borrar de medo, e além disso eu era um bom menino (75% das vezes, pelo menos). Uns bons safanões bem dados em jeito de aviso até podem desempenhar um papel educativo - desde que não se abuse, claro. Até o escritor/académico/pensador Rui Zink, que é alguém que qualquer um de nós confiaria os nossos filhos um dia inteiro, recomenda umas palmaditas para nivelar algumas falhas, "desde que não se bata na cabeça". Palavras do mestre Zink.
É possível que no Ocidente tenhamos deixado de lado os castigos corporais e adoptado uma perspectiva mais científica no que toca aos métodos educacionais, e que na China ainda estarão um pouco atrasados. Mas estarão assim tão atrasados? Perguntem aos vossos pais como era com eles, e se ainda tiverem avós, inquiram-lhe sobre como se "educava" no seu tempo (vou avisando que é melhor guardarem um tarde inteira para ouvi-los). Garanto que vão ficar chocados. A minha mulher, por exemplo, ainda "disciplinava" o meu filho com métodos que não me agradavam, usando cabides para agredi-lo ou castigos bizarros, como fazê-lo ficar de joelhos e segurar as orelhas durante uma hora. A mãe batia-lhe mais à irmã dela com um espanador, quando se portavam mal. E os da minha geração, lembram-se como era a professora da primária? Distribuía reguada e outro tipo de fruta como se estivesse com comichão, e com ou sem autorização dos pais. E estou a falar de algo recente, que acontecia ainda há qualquer coisa como 30 anos. Não estou a falar de factos reportados à II Guerra ou à Grande Depressão.
Vou contar uma história que se passou comigo há uns dois anos. Estava numa loja do Mercado da Mitra, vulgo "cheok chai yun", à espera do meu almoço, e atrás de mim estava uma senhora na casa dos seus 50 anos a dar uma respeitável sova a um jovem que assumi ser o seu neto, e para o efeito recorreu a um guarda-chuva. A velha batia enquanto berrava profanidades, e a força era tanta que era possível ver as varetas a desprenderem-se do pano. Quanto mais batia, mais profanidades bradava, com tanta raiva que começava a espumar dos cantos da boca. A este ponto gostava de vos dar a minha palavra de honra que não estou a exagerar. O rapaz defendia-se das investidas da idosa como podia, encolhendo-se como uma tartaruga. Já se tinha juntado uma multidão considerável, e foi aí que lhe exigi que parasse com aquele espetáculo - tarde demais, eu sei, mas estava hesiatante em usar o meu melhor chinês, que mesmo assim é mau, para interferer naquele "assunto de família". Olhou para mim exibindo os molares inferiores e com os olhos bem abertos, como se estivesse possuída, e disse-me para "me meter na minha vida". Respondi-lhe que adorava fazer issso, mas a minha vida naquele momento era aquela triste situação, e que podia interromper a sessão de tortura por uns instantes, e depois podia resumi-la em casa, quando eu já não estivesse a trinta centímetros do epicentro do terramoto. Acalmou-se por uns instantes, e já não fiquei para ver o epílogo, pois o meu almoço chegou e eu fui à minha vida - e nem é preciso me mandarem, que eu vou por vontade própria.
É claro que este é um exemplo extremo, e um bom exemplo do que não se deve fazer. Há pais que descarregam as suas frustrações pessoais nas crianças, e não me digam que é só na China. Todos conhecemos de casos na nossa comunidade, no nosso bairro, na nossa rua, e quem sabe até a paredes meias connosco. Quantos são os casos de mães neuróticas, pais alcoólicos, irmãos insanos ou madrastas vingativas que provocam lesões que em alguns casos requerem assistência ambulatória, e no hospital os adultos dizem que "o miúdo caíu das escadas...é um trapalhão". Quem optar por recorrer ao método do castigo corporal, e terá as suas razões - e já explico porquê - não deve usar instrumentos como cordas, correntes, cintos, objectos contundentes ou pesados; não deve ir além do ponto em que faz entender - se a criança está a chorar, já entendeu a lição; deve abster-se de aplicar os castigos em público, e assim humilhar o menor. Qualquer estudo de pacotilha vai demonstrar que as crianças vítimas de castigos corporais têm mais probabilidades de se tornarem adultos agressivos, e aplicar o mesmo tratamento aos seus filhos, prepetuando um ciclo de violência. Mas quem disse que uma palmadita no rabo é necessariamente "violência"?
Portanto quando e porquê se devem recorrer aos castigos corporais? Não sabem? Não me digam que o Pavlov andou a perder aquele tempo todo com o cão para nada. As crianças, ao contrário dos adultos, respondem a estímulos, e desconhecem a esmagadora maioria dos perigos que temos como garantidos serem perigos, e só os identifica através da experiência. Uma criança pode ter o instinto que saltar de um sítio alto lhe pode provocar a morte - isso também um cão ou um gato, ou qualquer animal irracional - mas só depois de meter os dedos na tomada sabe que dá choque, só depois de provar a pimenta sabe que é picante, só depois do gato a arranhar sabe que não lhe deve puxar a cauda, e finalmente só depois de levar uma palmadita dos pais sabe que agiu mal. Uma palmadita, reparem, um pequeno sinal de reprovação para lhe demonstrar que agiu mal, e que não deve repetir a mesma conduta. Ele fica consciente da reprovação dos pais, e sabe que se repetir leva outra palmada. É Pavlov, pura e simplesmente.
Um pequeno exemplo: imaginem que o Joãozinho, o vosso mais que tudo, uma criancinha angélica mas na plena inconsciência e estupor dos seus dois anos de idade, quer enfiar os dedos no Chantilly que vai vestir os morangos que servirão de sobremesa para toda a família. Mete-se em cima de uma cadeira, e quando se prepara para se lambusar todo, dizemos-lhe que "não não", dando a entender de imediato que não nos agrada a sua iniciativa. Se mesmo assim ele insistir - e garanto que vai hesitar e olhar para vocês, esperando uma reacção - damos-lhe uma pequena palmada na mãozinha, como quem diz "não mexe aí, já avisei". Se mesmo assim ele quiser enfiar as mãos cagadas de andar a mexer na terra, no cão, nas próprias fezes, etc. no Chantilly, aumenta-se a intensidade da palmada. Se depois disto ele insistir, então temos aqui uma criança problemática, o Joãozinho das anedotas. Mais uns anos e vai andar a espreitar por baixo da saia da professora. Pode-se aumentar a intensidade até ele desistir, mas se por acaso a criancinha já tem a mãozinha roxinha e mesmo assim não desistir, o melhor é procurar a ajuda de um pedopsiquiatra.
Este exemplo serve para provar como não é possível lidar com uma criança da mesma forma que lidamos com um adulto. Não nos passa pela cabeça agredir outro adulto porque este tomou uma atitude que reprovamos (desde que não seja outra agressão, lógico), ou disse algo que nos desagrada. Podemos explicar a um filho adolescente que deve usar o preservativo para se proteger de doenças sexualmente transmissíveis, mas como vamos apelar à consciência de uma criança de dois anos, falando-lhe da colónia de bactérias que transporta nas mãos sujas, ou de como a sua ambição afecta a integridade das natas batidas e coloca em risco o sucesso do projecto de Morangos com Chantilly que todos podem disfrutar depois do jantar? A via do diálogo é a ideal, sem dúvida, mas também se esgota, e por vezes nem tem lugar. Onde é que estávamos hoje se os Americanos tivessem optado por "dialogar" com os Nazis nas ardenas, ou com os japoneses no Pacífico? A levar todos os dias tareias de guarda-chuva, ou pior que isso. Palavra de pai.
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