quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A greve é grave


Começo a ficar seriamente preocupado: os portugueses começam a perder a fé nas greves. É verdade. Não que alguma vez tenham depositado a sua fé nelas, mas começam a vocalizar o seu descontentamento. Na véspera de Natal houve greve dos transportes públicos em Lisboa e Porto, e apesar da adesão não ter sido significativa, deu para aborrecer alguns cidadãos que esperavam pelo autocarro, e ainda por cima enquanto esperavam tinham a companhia do lixo e dos ratos, devido à greve dos cantoneiros, também nesse dia. Um utente desabafava: "eles fazem greve mas não chateiam o Governo, só chateiam é o povo". Pois é, paralisar os transportes colectivos não vai colocar muita pressão sobre o Governo, a não ser que a greve se extenda aos motoristas particulares das viaturas do Estado. Mas com este Executivo, mais greve menos greve tanto faz: perdidos por cem, perdidos por mil. E se aquela ideia dos seus motoristas fazerem greve fosse para a frente, era mais uma desculpa que encontravam para não fazer nenhum.

As greves são uma arma que os trabalhadores encontraram para combater as injustiças e pressionar o patronato, que sem força laboral que fizesse funcionar a máquina produtiva, esta ficava parada, resultando em prejuízo. O direito à greve foi uma conquista dos sindicatos para poderem usá-lo como forma de negociar de igual para igual com os patrões, e assim exigir melhores condições de trabalho, uma carga horária menos pesada e um pagamento mais justo. Agora deixemo-nos de papo comuna: a greve foi uma forma que os gajos encontraram para trabalhar menos e ganhar mais. E em boa hora! Não sei se sabem, mas até há qualquer coisa como 100 anos as pessoas trabalhavam 12 horas ou mais por dia, sem descanso semanal (sim, nem Domingo), faltas ou férias pagas, e sem remuneração suplementar em caso de horas de trabalho extraordinárias. Ufa, ainda bem que tinham a greve. Já pensaram?

Foram muitos os que cairam que nem tordos para que pudessemos ficar mais tempo na cama ao Domingo e mandar o chefe à fava o mais tardar às 6:30 da tarde. Bravos heróis, cuja memória não conseguimos honrar. O valor da greve foi completamente subvertido. As greves não foram feitas para se ficar em casa, ou ir passear no parque com a família, ou ir às comprinhas no Euromarché. E logo na véspera de Natal e tudo, como convém. Há greve, certo, não se trabalha, pois não, mas é para ir ajudar no piquete e impedir que os "fura-greves", esses traidores dos "amarelos" peguem ao serviço e mantenham a linha de produção activa, e o patrão sorridente. E no processo há que contar com cargas policiais, mordidas de pastores-alemães e jactos de canhão de água, enquanto se seguram cartazes com palavras de ordem, de preferência atingindo a cidadania da mãe do patrão. Sim, meus amigos. Uma greve não é um piquenique.

Não é um piquenique, um BBQ ou sequer um chá-dançante, mas há quem goste de pensar que é. Há malta que chega a casa toda contente e começa a fazer planos para um dia em que o seu sindicato marcou uma greve, tendo apenas em atenção o seu próprio lazer e diversão. O sentido da greve fica completamente desvirtuado quando os únicos sindicatos que as organizam representam sectores profissionais que trabalham directa ou indirectamente para a máquina do Estado. Exprimentassem os operários de uma fábrica de cortiça ou os trabalhadores de uma obra fazer greve, e no dia seguinte tinham lá outros parvos no seu lugar. Enquanto uns comem o pão que o diabo amassou com um sorriso no rosto e ainda ficam a fazer cruzes para a empresa no falir e irem jogar para o Olho da rua futebol clube, outros têm o pilim a cair lá todos os meses com relativa segurança e ainda querem fazer greve.

Os professores da rede de ensino público, os enfermeiros do sistema de saúde nacional ou os motoristas das empresas públicas de transportes fazem greve, marcam-lhes falta, os sindicatos emprenham o Governo pelos ouvidos, e tiram-lhes a falta. Assim é fácil. Em Macau o direito à greve está contemplado na Lei Básica, mas não está regulado por lei, portanto aqui ninguém sabe o que isso é. A única excepção são os funcionários do Consulado-Geral de Portugal, que estão sob a alçada do Estado Português, mais precisamente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e como tal aderem frequentemente às greves das embaixadas e postos consulares. Durante uma dessas greves, um dos meus colegas chamou a atenção para esse facto: a falta injustificada, revelando-se bastante preocupado com essa consequência. Expliquei-lhe então que o Estado justifica eventualmente a falta, porque a greve "é um direito". Caso contrário nem eles se atreviam a cometer tamanha ousadia. Podem estar descontentes com qualquer coisa, mas ainda não estão malucos.

Isto das graves é tudo uma questão de perspectiva: depende de quem está do lado do receptor. Pode-se estar nas tintas para as reivindicações dos vendedores de gelados na praia, mas se eles estiverem de greve num dia especialmente quente na Caparica e estiver a apetercer-lhe um "frutóchocolate", vai a resmungar irritado a caminho do café mais próximo, enquanto queima os pés na areia a escaldar: "chulos, não querem trabalhar". O sentimento é um misto de egoísmo com indiferença; por nós os funcionários das portagens podem estar de greve todos os dias, menos no dia em que precisemos de usar a ponte. Mas parece isto das greves foi chão que já deu uvas. Atente-se ao primeiro parágrafo: "...apesar da adesão não ter sido significativa". Hoje em dia nunca é significativa. A greve perdeu o seu impacto, e hoje está para as lutas laborais como a sangria através de sanguessugas está para a medicina moderna. Os portugueses não querem fazer grave. Então isso é muito grave.

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