Um dos tópicos do relatório da situação dos Direitos Humanos na RAEM entregue pela Associação do Novo Macau (ANM) à ONU foi o patuá, o dialecto maquista, tratado aqui como um dos aspectos culturais do território. Segundo o ANM, o patuá "ameaça extinguir-se", pois é actualmente falado por "cerca de 50 pessoas", isto apesar do seu estatuto de "património imaterial de Macau", e o sonho que ainda mexe de incluir o dialecto maquista na lista de património cultural intangível da humanidade, com o carimbo da UNESCO. Sonhar ainda é grátis, mas com 50 pessoas a falar o dialecto, de acordo com o ANM, parece ser uma tarefa complicada, senão mesmo impossível.
Quando falamos de patuá, há muita coisa para dizer, e muito mais que fica por ser dito. Dá pano para mangas, isto do patuá. A sua origem remonta aos finais do século XIX, quem sabe até antes, e tem origem nas famílias macaenses das classes baixas ou media-baixas, menos escolarizadas, que comunicavam entre si numa espécie de criolo do português semelhante ao que existe hoje em Cabo Verde, e muito semelhante ao "kristang" que ainda é falado por alguns resistentes do "Portuguese settlement" de Malaca. Note-se que em Cabo Verde o criolo é praticamente língua oficial, e em Malaca, passados 400 anos desde a saída dos portugueses, ninguém se preocupa com o desaparecimento do "papiá kristang".
O patuá macaense resulta da desarticulação entre as duas línguas mais faladas em Macau: o português e o cantonense, este ele próprio um dos dialectos da grande China, onde a língua oficial é, como se sabe, o Mandarim. É um fenómeno que apaixona os linguistas; existem muitos sons da língua portuguesa, como o ditongo "ão" ou o duplo "erre" que não têm um equivalente no cantonense, e quem era obrigado a dialogar nas duas línguas - como é o caso dos macaenses - encontrou uma espécie de meio termo: "são", Terceira pessoa do plural do indicativo do verbe "ser" ficou "sân". Fascinante, e este é apenas um de muitos, muitos exemplos.
Além dos sons, é fácil observar outras preciosidades do dialecto em patuá, mesmo entre os macaenses que falam correctamente português. No fundo são o mesmo tipo de preciosidades que encontramos em várias regiões de Portugal continental, desde Trás-os-Montes ao Alentejo, passando pelo Minho, Madeira e Algarve, obtendo um clímax de contraste linguístico na ilha de S. Miguel, nos Acores, onde o sotaque mais carregado se torna praticamente imperceptível. Temos exemplos de palavras retiradas de dialectos locais praticamente sem qualquer expressão no presente em Angola, Moçambique, Timor-Leste ou Goa, e para acabar com chave de ouro, o que dizer do português do Brasil? Terá Camões alguma vez comido um abacaxi?
Os anteriores arrendatários deste pequeno território no Oriente catalogaram o patuá como sendo "português mal falado", o que tocou no orgulho na comunidade macaense, que vetou o patuá ao abandono, empacotando-o como uma mera curiosidade, graçola para entreter ao serão, uma espécie de "minstrel", do tempo em que na América a arte do teatro era vedada aos negros, e os brancos pintavam a cara de preto para desempenhar o seu papel. É muita arrogância virmos julgar uma comunidade, para mais tão distante de Portugal, criticando o português que eles falam. O que ouvi de português mal tratado em Portugal continental, que na sua forma falada, quer escrita, dava para escrever uma "enciclopeida" de dez volumes. "Epá deslarga-me keu tô com ómorroidas nas nalgas".
E que diferenças são estas, que para mim são deliciosas, e que eu próprio abracei? Não me esqueci de falar português, pois nasci e cresci em Portugal, mas a minha convivência levou-me a adoptar algumas expressões da malta de cá, uns "tiques" linguísticos, se quiserem. Eis alguns exemplos:
Vamos limpar no gajo = vamos bater no gajo.
Não é! = Impossível!
Tem, não é não tem = lá haver há.
Dar pissada na malta = chatear o pessoal.
Tem não pode = existe um condicionante.
Vais subir para cima/Vais descer para baixo? = Vais subir/descer?
Putas de animado = muito divertido.
Bafo comprido = falador.
Não tem chiste = não tem piada.
Chuchumeco/a = tagarela, coscuvilheiro/a.
Estes são apenas alguns que me lembro, mas existem muitos mais, e mesmo quando vou a Portugal, dou comigo a utilizar algumas expressões locais, o que causa estranheza aos meus amigos ou familiares. Mas eles compreendem; no fundo é o mesmo que acontece com os portugueses que emigraram há décadas para o Brasil, os que viveram ali ao lado em Espanha durante muitos anos, e que inevitavelmente apanham uma "musiquinha".
Mas voltando ao patuá como o conhecemos hoje. Depois de um período de desencorajamento da parte do sistema de educação colonial, sobraram alguns resistentes, e o apogeu do dialecto deu-se nos anos 60 com Adé dos Santos Ferreira, que levava anualmente, por altura do Carnaval, as suas récitas ao teatro D. Pedro V. Adé, considerado ainda o grande e imortal poeta do patuá, deixou um reportório de récitas, poemas e canções, observando de maneira ímpar a realidade de Macau, quer do lado português, quer do lado chinês.
No mesmo ano do desaparecimento de Adé, 1993, surgiu o grupo "Doçi Papaçam di Macau", ideia original de Miguel Senna Fernandes, filho do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes. A intenção inicial era apresentar uma pequena peça por altura da visita do presidente Mário Soares, mas o sucesso da iniciativa foi ao mesmo tempo o lançamento da primeira pedra de um projecto que comemorou este ano o seu 20º aniversário, e que apresenta com regularidade um novo trabalho original em patuá, por altura do Festival de Artes de Macau - de que é sempre o seu ponto mais alto.
Existe um certo ressentimento quando se fazem comparações entre o patuá de Adé o os "Doçi Papiaçam", uma situação perfeitamente normal, um confronto de egos. Como em tudo na comunidade macaense, não existe um consenso: qual o melhor Minchi, qual a "nhonha" (menina) mais bonita, ou quem detém a pureza do patuá original. Quanto a este último ponto, a resposta é fácil de encontrar: ninguém tem o monopólio do patuá original. Diz-se que cada casa falava o seu patuá, criava o seu próprio criolo do português falado, e depois transposto para a escrita. Hoje é Miguel Senna Fernandes e os seus "Doçi", antes dele foi Adé, e antes de Adé foram as famílias macaenses menos elitistas, as criadas chinesas baptizadas, os meninos mandriões que não se aplicavam na escola, as costureiras, as donas de casa, as esposas dos oficiais que passavam o dia a criar um outro património macaense: a gastronomia.
Este é o exemplo de um caso em que concordamos em discordar. Não interessa a qualidade do patuá, ou a origem, desde que não se deixe cair, que não se deixe morrer. Morte aos puristas, abaixo as regras. Já ouvi e li patuá que consegui entender, e outro que me é completamente indecifrável. Não precisa de ser acompanhado de um dicionário, uma gramática, um léxico que o validem. É só preciso que exista. Henrique Senna Fernandes, contemporâneo tanto de Adé como do seu filho Miguel, bem como dos falantes de patuá desde as Portas do Cerco à baía da Praia Grande, deixou uma mensagem essencial nas suas obras: Macau e os macaenses são tudo, e não são nada; são aquilo que quiserem. "Isto é Macau" - palavras do mestre. Porque devia o patuá de ser diferente?
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