domingo, 8 de dezembro de 2013

O estado da nação: existe vida além da identidade


O tempo voa enquanto a malta se diverte, mata as saudades da terra que o viu nascer, reencontra os familiares e amigos há muito deixados, e mesmo esquecidos. Pode-se resumir assim mais um Encontro das Comunidades Macaenses, que teve o seu início em 30 de Novembro último, e terminou ontem, com muitos beijos e abraços, promessas de um até mais ver, que isto foi giro e devíamos fazer o mesmo outra vez. No meio de tanta brincadeira, chalaça, "má-lingu" e outra buburiça (epá, isto do patuá pega-se), debateu-se a identidade macaense. Esperem lá, debateu-se? Em que termos, exactamente? Da procura da identidade? Não existe e faz-se um "brainstorming" no sentido de arranjar uma, ou sempre existiu e anda por aí perdida, algures entre o Restaurante Riquexó e os casinos do COTAI, onde foi parar depois de ter apanhado um táxi que por acaso parou? Porquê falar de algo tão sério e tão pouco consensual quando o tempo é de festa, de convívio e de nostalgia? Côza? E lá estou eu outra vez a meter-me em terrenos que desconheço.

Abordei esta tema da identidade no artigo da última quinta-feira do Hoje Macau, mas sinto que ficou muita coisa por dizer. Aliás sensação idêntica à dos participantes do debate sobre a identidade macaense, pois dificilmente se chegará a uma conclusão depois de uma par de horas de três em três anos, com tantos pontos de vista divergentes, cada um com o seu próprio conceito de identidade, e ainda a divisão entre os que dizem sim, há identidade, os que defendem que não, isso não faz sentido, e os que optam pelo "nim" - vim cá para o Encontro das Comunidades, portanto que conversa de chacha é esta? No fundo isto da identidade é como a consciência; que diz a toda a hora que "tem a consciência tranquila", é porque tem macaquinhos no sótão (isso seria, assustador; mal por mal, prefiro o sr. rato), da mesma forma que debater a identidade com tantas questões em cima da mesa, dá a entender que essa identidade não passa de um mito, por muito boa vontade que haja. Se existe, afirma-se, reafirma-se, parte-se para algo mais tendo a identidade por base. Debatendo se há ou não há identidade, e onde está ela, é um exercício infinito e infrutífero.

Abordar este tema significa mexer com algumas sensibilidades, e andar num campo minado onde a escolha das palavras pode dar azo a mal-entendidos. Que o diga Manuel da Silva Coelho, director dos Serviços de Educação de Macau nos anos 80, ainda em plena Administração Portuguesa, que cometeu a ousadia de considerar os macaenses "eunucos culturais". Apesar da escolha infeliz de palavras, trágica até, aquele ex-responsável irresponsável tinha identificado o problema: perdidos entre duas culturas díspares, separadas por meio globo, aos macaenses era dado a escolher optarem por uma delas, e olhado com desconfiança por ambas. Para a cultura chinesa eram os descendentes dos colonizadores, para os portugueses eram outros portugueses, certo, mas uma espécie de "primos distantes". A exiguidade do território, a indefinição política e a confusão da linguística fizeram o resto.

Começando por esta última, que foi sempre um "problema", e ao mesmo tempo um traço distintivo. Sendo eu pai de um macaense, o que não me dá nenhuma autoridade especial no assunto mas permite-me observar alguns aspectos "ab ovo", entendo como não foi fácil às gerações anteriores reforçar uma eventual identidade com uma das suas components essenciais: a língua materna. Existiram sempre algumas excepções, lógico, mas a tendência era para que os macaenses estudassem no ensino em língua veicular portuguesa. Localizados na China, rodeados de um ambiente chinês, muitos deles falavam chinês em casa com os pais, com os vizinhos e até entre eles, enquanto a formação académica era dada em Português, uma língua de um lugar lá distante, que viam como uma vantagem, no fundo, mas que levou a um fenómeno conhecido por "duplo-semilinguismo", ou seja, a fluência em duas línguas, mas sem dominar por completo uma delas.

É mais fácil notar este fenómeno nos macaenses nascidos nas décadas de 50 e 60, e até alguns depois disso. Além das condicionantes já referidas, não existia nenhum tipo de apoio extra-curricular; não existia um canal de televisão em língua portuguesa até meados dos anos 80, e mesmo depois disso era pouca ou nenhuma ajuda, a imprensa em português não chegava, ou chegava muito pouco e muito tarde, e da literatura e da música nem se fala - e é preciso não esquecer que a internet era ainda uma miragem. Muitos deles da classe média ou média-baixa nunca visitaram Portugal, ou foram uma vez, no máximo, e a comunidade portuguesa foi sempre muito reduzida até aos últimos anos da administração. Para piorar as coisas, nunca lhes foi dada a oportunidade de aprender a escrever chinês, o que aos olhos da comunidade chinesa local era visto como uma forma de analfabetismo. A comunidade portuguesa, composta praticamente por expatriados que trabalhavam no território para a República Portuguesa a prazo, olhava-os com algum desprezo - as afirmações de Silva Coelho "canalizaram" algum desse sentimento.

Só os portugueses que ficaram depois de 1999 ou que gostariam de ter ficado a partiram com mágoa entendem um pouco da "banha" da cobra que foi vendida à comunidade macaense, isto apesar de existir ainda alguma animosidade entre os dois lados. Os macaenses foram os peões de brega de duas partes que negociaram o futuro de Macau; a parte portuguesa deu sempre a entender que ficar no território depois do "handover" estava longe de ser uma opção completamente segura, enquanto a parte chinesa sugeriu que para ficar, era preciso não esquecer que agora a música é outra, e a médio prazo não há espaço para quem não domine a língua chinesa, falada ou escrita - a não ser que se tratem de empresários, técnicos estrangeiros requisitados ou profissionais liberais, claro. Como era possível criar uma identidade onde não existia sequer um lugar para que ela medrasse?

Se a união faz a força, como se diz e tantas vezes e com razão, uma putativa união da comunidade macaense ficou comprometida com as massas migratórias dos anos 60 e 70. Macau não era o que é hoje, não havia dinheiro, e a China continuava fechada, a macerar lentamente na panela da Revolução Cultural. Foram aos milhares os macaenses que partiram para o Canadá, Estados Unidos, Austrália ou Brasil. Muitos foram trabalhar aqui para o lado, na então colónia britânica de Hong Kong, pois além de falarem o cantonense, reconheciam o "abc", mesmo que não dominassem o inglês. São estes que fizeram a diaspora, e que recebemos esta semana em mais este encontro das comunidades macaenses. Basta escutar o que disseram quanto ao Macau de hoje. Não ouvi um único a dizer que é o mesmo do seu tempo, de quando o deixaram. Isto pode parecer normal para alguns, uma vez que passaram 40 ou 50 anos, e estranho seria se o território continuasse na mesma. Mas a mudança não foi apenas física: se alguma vez um tempo houve para germinar a semente da identidade, foi aquele. Não vai ser hoje e agora que se vai fabricar uma.

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