quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Doci Papiá di Macau - a herança de Adé


Uma das prendas que me ofereceram este Natal foi este CD, "Doci Papiá di Macau". Muito atencioso da parte da pessoa que me ofereceu esta preciosidade, e que para o efeito se terá dado ao trabalho de investigar os meus gostos. Este CD contém 12 récitas e canções, uma valsinha e o excerto de uma opereta, todos da autoria de Adé dos Santos Ferreira, e por ele interpretados. A edição ficou a cargo da (extinta?) Tradisom em conjunto com o Instituto Cultural, decorria o ano de 1997, a recolha foi feita por Hélder Fernando e José Môças, com prefácio do primeiro e agradecimentos finais da autoria do último, que também teve a seu cargo a coordenação executiva. A sonoplastia e a pós-produção esteve a cargo de Paulo Paz, e a masterização digital de Francis Way, no Ultimate Studio, em Hong Kong. As coisas que se aprendem numa contra-capa, e esta foi imprimida na Tipografia Mandarim.

Agora estarão alguns leitores a pensar: "ó Leocardo, acordaste agora? esse CD tem barbas". Pois é, tenho a plena consciência que 1997 não foi no ano passado nem no anterior, e tinha conhecimento da existência do disco, que tive na mão várias vezes e nunca dei o passo seguinte, que seria comprá-lo. Não sei bem porquê; tenho a certeza que ia gostar, e estava familiarizado com algumas das faixas, mas 200 paus pareceu-me um preço excessivo. Aconteceu a mesma coisa com o CD dos Thunders, que era ainda mais caro, e que também me ofereceram. Talvez 16 anos depois devessem repensar o preço e tornar a aquisição deste autêntico documento mais convidativa. Fazendo este "Doci Papiá di Macau" a 100 patacas, ou até menos, estariam a divulgar o patuá, quem sabe? Pelo menos não perdiam nada. Acreditem: dificilmente alguém paga 200 patacas por um único CD nos tempos que correm.

O aliciante deste CD é óbvio: é patuá, e é Adé. Não vou aqui entrar em discussões sem cabimento sobre quem é o dono do patuá, se este acabou quando Adé acabou, ou se Adé era melhor ou pior, estou-me nas tintas para tricas entre comadres. O que posso dizer é que gosto de ouvir patuá, de preferência "castiço", quer venha ele de Adé, dos Doçi Papiaçam di Macau, a cujas apresentações anuais assisto religiosamente desde há alguns anos, ou de alguém que oiço conversar na rua ou no café. Pode ser uma expressão, uma frase, uma palavra apenas, que é algo que me faz sorrir, que me torna dia melhor. É pena que quem ainda fala ou pelo menos "dá uns toques" seja tão reservado em demonstrar os seus conhecimentos do dialecto, ou que fale patuá apenas "inter pares", onde se sente mais à vontade. Quem sabe se em vez de candidatar o patuá a património cultural da humanidade, seria melhor inclui-lo na lista de espécies em vias de extinção? Adiante.

Como faço com todos os CDs, comecei por escutar a primeira faixa, uma récita em duas partes: "Unde ta vai quirida/Divera saiám". Interessante, não desiludiu, e serviu de aperitivo para o que vinha a seguir. Saltei para a faixa nº 6, "Bote-Dragám", um dos temas que já conhecia, e o meu favorito. Este poema é dedicado às regatas dos Barcos Dragão, e atentem ao talhe doce do crioulo de Macau, tão evidente nesta passagem:

Ah! Tudo ta gritá,
Sã bote-dragám! Sã bote-dragám!
ôlo lustro, bocá ispumá,
Rabo bulí, fêto coscorám,
Dragám ubí tambôr di "kusau",
Ligêro core na mar di Macau.


Genial, sem dúvida. A este ponto alguns leitores menos familiarizados com o patuá podem pensar que vão ficar um pouco "perdidos" ao escutar este disco, mas o livro do CD contém as letras completas, além de uma pequena nota prévia que nos fala de cada tema, da data da sua gravação e ainda algumas curiosidades. O livreto inclui ainda uma biografia de Adé, portanto quem desconhecia tudo isto por completo e em promenor, fica completamente esclarecido - e ainda aprende qualquer coisa.

Os temas debruçam-se sobretudo sobre a vivência de Macau, desde as festividades, como o Ano Novo Chinês ou o Carnaval, a gastronomia macaense, em "Petisquêra di Macau", e até a quadra que agora atravessamos, em "Natal! Anôte Santo!". Não falta o humor, é claro, patentes em "Dale vôs" ou "Unga estória de ôlo-deco", onde é evidente a apetência maquista para a "chiste" mais brejeira, denotando um sentido de humor muito particular. Adé era poeta e declamador, mas não era cantor. Mesmo assim dá um ar de sua graça cantando a solo ou na companhia da sua tertúlia. Destaco de entre estes "Aqui bôbo", o tal tema dedicado ao Entrudo, ou ainda uma versão de "Casa Portuguesa" adaptada à realidade local, "Casa Macaísta".

O tema que encerra o disco é "Adios di Macau", que a nota em anexo nos diz ter sido o último que o autor gravou, em Setembro de 1992, poucos meses antes da sua morte. Nele Adé toca na alma de Macau, confessando a sua apreensão quanto ao futuro da terra que o viu nascer, a sete anos que estávamos da entrega da soberania para a RP China. Tocante e profundo, declamado de forma apaixonada, assim como é todo o patuá de Adé dos Santos Ferreira. É um legado que nos deixa, e havendo mais além desta compilação, devia ser divulgado sem mais demora. Porque tem muita qualidade, antes de mais nada.

"Doci Papiá di Macau" é uma hora bem passada a ouvir patuá, para quem gosta, e quem no conhece ainda ou conhece pouco vai com toda a certeza gostar. Se já tinham ouvido falar tanto de Adé e não sabiam porquê, aqui está a razão. Só é pena ver este CD anos a fio nas prateleiras da Livraria Portuguesa, e talvez uma das razões do desinteresse seja o preço proibitivo que referi acima. A cultura deve estar acessível a todos, e no caso do patuá, a divulgação deve ser feita com carácter de urgência. E isso serve tanto para este disco como para todo o resto. Só com boas intenções não chegamos lá.

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