sábado, 7 de dezembro de 2013

Identidade: alguém a viu por aí?


Terminou hoje mais um Encontro das Comunidades Macaenses, e a esse propósito, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Continuação de um bom fim-se-semana!

Todos nascemos com uma identidade, por mais pequenina que seja. Temos pelo menos o nome próprio, mesmo que órfãos ou abandonados à porta da igreja, e com a graça de Deus dois braços que mexem, duas pernas que andam e alguma massa cinzenta entre as orelhas que nos permitem ter consciência disso mesmo: da nossa identidade. Somos um todo inédito e único, que tal como todos os outros que vieram antes, ao mesmo tempo e depois, nascemos debaixo do mesmo sol. Quando procuramos saber mais sobre nós próprios ou sobre a nossa identidade, abrimo-la, tiramos as peças uma a uma e olhamos para elas demoradamente, procurando entender como foi aquilo ali parar e porquê. Há traços da nossa identidade que são muito nossos, não damos nem emprestamos a ninguém, e os que partilhamos com os outros e queremos partilhar, como a cultura, a língua, a religião ou as tradições, e até o próprio local de origem. Ninguém gosta de ser o último dos Moicanos ou de qualquer outro caso perdido. É fácil imaginar o desespero do último falante de Latim como língua materna antes de passar a língua morta. Deve doer, quando nos morre a língua.

Na semana que decorre em Macau mais um Encontro das Comunidades Macaenses, debate-se mais uma vez a identidade macaense. Poucos são os que insistem em debater tantas vezes a sua própria identidade. É sinal de algo vai mal no reino da identidade. Como já referi neste espaço a semana passada, é complicado definir o que é um macaense, e quem é verdadeiramente um macaense. As origens são tão remotas e por vezes tão obscuras que debater a identidade torna-se um exercício de metafísica. É demasiado abstracto para adquirir uma forma, para se chegar a um consenso, para que se defina uma espécie categorizada de “homos macaensis”. Os macaenses podem ter características que são comuns a todos eles, mas têm uma definição muito própria de cada uma delas, muito pessoal. Pode ser que todos gostem de minchi, mas não concordam sobre qual deles o faz melhor. Do seu lado português herdaram um certo pessimismo, um pouco de “laissez faire, laissez passer”. Se dá muito trabalho, o melhor é esquecer: “Isso da identidade é para já? É que logo à noite tenho um jantar e não posso ficar até tarde”. Se dá muito trabalho, “süen-ah”, como dizem os chineses. Deixa para lá. E neste mundo materialista em que vivemos, existe sempre a componente comercial. Muito bem, identidade? Quantos são, estes macaenses, vinte milhões? O quê, tão poucos? Então peço desculpa, mas a Nike acabou de retirar o patrocínio. Paciência. Sociedade de consumo-1 Identidade Macaense-0.

O problema do macaense, além da ambiguidade da sua definição, é o facto de nunca terem tido sede própria. Foram em tempos súbditos de um império que ia do Minho a Timor, e de repente encontraram-se a bater a pala ao gigante vermelho, a sua outra metade. Ao contrário dos crioulos africanos, dos brasileiros, e até dos timorenses, nunca tiveram uma horta onde cultivar a identidade. Os mais velhos ainda se devem lembrar do tempo em que não se falavam de “handovers”, de declarações conjuntas, de integrações e de desintegrações. Um belo dia, os senhores do tal império chegaram junto dos macaenses e deram-lhes duas opções: querem continuar portugueses ou querem ser chineses? Ora bolas – disseram eles – e logo agora, que estávamos a gostar tanto disto. Vamos encontrar uma identidade, ficar sentados no muro, pelo sim, pelo não. Os ingleses entregaram Hong Kong, foi uma questão de tempo até que Macau seguisse o mesmo caminho, e de um dia para o outro uma comunidade inteira de gente nascida em Macau, terra dos seus pais e avós, ficou confrontada com um dilema: partir ou ficar? Para os antigos senhorios foi fácil falar: vocês aí querem ir connosco que temos lá lugar para vocês, ou querem ficar? Olha, se quiserem ficar a gente lava as mãos, mas se quiserem abandonar a vossa terra, renunciar às vossas origens, largar as vossas raízes, a gente recebe-vos de braços abertos, lá a milhares de quilómetros de distância.

Os que optaram ficar debaixo das saias da mãezinha, Portugal, partiram para longe, bem longe, e isso deixou marcas. Alguns arrependeram-se e voltaram, mas esses não querem saber lá muito disso das identidades. Foi um peditório para que já deram. Outros ficaram e casaram com o matulão que lhes bateu à porta a pedir-lhes a mão, a China. Estes continuam a ser quem são, tudo bem, falam português, sentem-se um bocadinho portugueses também, nem que seja só às vezes, quando comem bacalhau ou quando joga a selecção, mas os seus filhos, esses, falam chinês, vão paras as escolas chinesas ou internacionais, porque isto da identidade é uma coisa “para maiores de 18”. O melhor é juntarem-se ao rebanho, que o pão comido no passado não enche a barriga a ninguém. Os que ficaram porque sim, porque não quiseram partir, nem quiseram juntar-se aos novos donos da terra, ficam a falar de identidade. São uns resistentes, têm pelo na venta. Defeito ou feitio, não me cabe a mim julgar.

Haja pelo menos quem fale de identidade, mesmo que seja sazonalmente, e que a iniciativa parta sempre dos mesmos. O pior é que ficam a falar sozinhos, para uma plateia de curiosos destas coisas de Macau e do Oriente, os carolas da História, os apaixonados da miscigenação, dos crioulos, da marca indelével deixada pelos portugueses no mundo, da nossa pegada genética. Perguntem aos chineses de Macau qual é a sua identidade, e eles respondem “chineses”. Só isso? “Sim, chineses…de Macau”. E o que significa ser chinês de Macau? “Nada…é ser chinês na mesma”. Pobre Macau que ninguém te quer como identidade. Ainda a semana passada vimos uma natural de Macau, chinesa, é certo, mas nascida em Macau, a proferir um discurso xenófobo, completamente antagónico à matriz deste território e à própria razão pela qual ela está aqui e não na terra dos seus pais, avós e bisavós. E ainda por cima é deputada, eleita por outros naturais de Macau.

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