quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ó famélicos da terra (filhos da Buda)


Ontem foi feriado em Macau, Dia do Buda, em que se comemorou o aniversário (?) do fundador de uma das maiores religiões pagãs do mundo. Por "pagãs" entenda-se as que não seguem o Deus abraâmico, o tal que é o "único" do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, e que por Sua causa andam à bulha - mesmo entre as diferentes confissões derivadas dessas três principais. O Budismo, e apesar disto ser bastante discutível, é a religião "da paz", e para os ocidentais é algo considerado de bastante exótico, pois obriga, ou pelo menos convida, a funções como a meditação, o vegetarianismo, e outras coisas muito chiques, que para alguns são uma grande caturreira, e sabem quem anda lá nisso do Budismo? É o tio Richard Gere, 'tá a ver? Que é um giraço? Mas pronto, aquilo tem piada durante uns tempos, mas a meditação, paz interior e tal é tudo muito bonito até nos dar vontade de berrar com os miúdos ou com a empregada, e o vegetarianismo "passa-nos" quando nos encontramos nas redondezas de uma churrasqueira ou de um rodízio, e depois começa-nos a dar uma larica acentuada por aqueles bocados de papel de jornal ensopado que andámos a comer durante uma semana e que chamam "proteína de soja", que dizem que substitui a proteína animal mas isso é treta. Além do mais, para aquelas posições muito giras durante a queca, que fazem lembrar as contorcionistas do circo de Bucareste, parece que a religião não é aquela, mas sim o hinduísmo, que é ainda mais complicado.

Ora bem, em Macau, como já referi, é feriado, o que vale por dizer que não se trabalha, os serviços públicos, os bancos e muitas outras empresas estão encerradas. Fossem em Portugal fazer um feriado alegando que era para comemorar o nascimento do Buda, e a tal "troika" que ainda há dias nos virou as costas mandava-nos era para o Buda que nos pariu. Uma das actividades que caracteriza este feriado é a festividade do dragão embriagado, que é uma grande treta. Pronto, antes que me caiam em cima e me acusem de não respeitar a cultura dos outros, passo a explicar: o festival, ou o que lhe quiserem chamar, do dragão embriagado tem uma origem que remonta aos pescadores, blá, blá, blá, uma lenda, e chama-se "lenda" e não facto histórico porque não aconteceu, e entretanto é comemorado em Macau por algumas daquelas associações que nos tiram da cama com um pulo quando desatam a rebentar panchões às seis da madrugada e a fazer aquelas danças do dragão e do leão de chácara, e por vezes são vistos por aí nas traseiras de uma carrinha a bater pratos. Só que desta vez bebem vinho de arroz, o famoso "maotai", só que daquele mais baratucho, que se pode enfiar numa bisnaga de "spray" e matar as baratas com ele, e ao fim de dois ou três goles já estão para lá de Bagdá (passo o brasileirismo), e como já nem sabem o que estão a fazer, toca a cuspir bagaço uns em cima dos outros, ou em cima de quem tiver o azar de se encontrar nas redondezas a filmar ou fotografar o evento, que é "very typical".

E de facto é tão "typical" que na hora de escolher uma tradição para constar no património imaterial da humanidade em nome de Macau, toca a escolher este. Os irlandeses mais afoitos, os "drunken paddies", roeram-se se inveja por não terem a sua sinfonia do vómito reconhecida, mas estes da dança do dragão alcoólico consta da lista das "coisas que deve ver antes de morrer", fosse a VH1 organizar. Foi-me dito que este espectáculo do dragão pinguço coincide sempre com o dia do Buda, ou seja, o oitavo do quarto mês do calendário lunar. Quem se interessa mesmo por estas coisas e não vive em Macau, fique atento ao calendário lunar, conte um mês - que também tem 30 ou 31 dias, e 28 em Fevereiro (29 se for um ano bissexto), portanto não há nenhuma mística. Para enganar os "gwei-lous" os tipos inventam mais meia dúzia de dias lá para o fim do ano, ou como no caso do ano do Cavalo, actualmente em vigor, há "dois nonos meses" - era como se tivessemos dois Setembros. Ia ser chato para os putos que voltam às aulas e para o comércio tradicional, que aguarda ansiosamente pelo Natal. E arrumado que está este assunto do dragãoi bêbado, passemos a outra tradição própria deste dia, esta mui nobre e caridosa: a distribuição de arroz e vegetais. Pelos pobres? Não, por quem quiser. É o "arroz abençoado", que leva a que se formem filas à porta dos restaurantes que distribuem gratuitamente estas refeições, patrocinados pelas associações de culto ao Buda. E onde há comida de borla, ainda por cima abençoda, há porrada. Mas vamos ver porquê.

Portanto, é dia do Buda, há distribuição de caixas de arroz e vegetais cozidos, que são praticamente intragáveis - pelo menos para o meu gosto e o da maioria dos ocidentais, e até de muitos locais, que aderem a esta correria por tradição, e sobretudo por superstição. Quem venha de fora e seja completamente ignorante da realidade local, fica com a ideia de que em Macau há fome, daquela mesmo negra, e que aquilo é alguma fila para o racionamento, como sucedia nos tempos das grandes guerras, vai para um século uma delas, e para lá caminha, a outra. Mas na realidade trata-se apenas de "tradição", como já disse. Dá sorte receber aquela dádiva do Buda, que não é do próprio Buda, pois isso inserir-se-ia no âmbito do sobrenatural e do impossível, mas dos seus "representantes terrenos". Mas como não chega para todos, pois o Buda é gorducho e também come, e se calhar fica com a maior parte, dá-se uma espécie de "jogo das cadeiras", e é necessário policiamento para evitar que arranquem as goelas uns aos outros por causa de uma caixa de alimento gratuita, e que num dia normal custaria qualquer coisa como quinze ou vinte patacas. São os mistérios da religião, meus amigos, que não nos cessam de surpreender; os católicos degladiam-se por causa da Irlanda do Norte, enquanto os judeus e os árabes esfolam-se pelos territórios da Palestina. Aqui manda mais o arroz. Não é fome, portanto, não se assustem: é apenas "vontade de comer".

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