segunda-feira, 19 de maio de 2014

A caminho do Brasil: Orfãos de Maradona


Os orgulhosos argentinos, mais do que o seu tango, adoram futebol. Isto fica fácil de perceber sempre que nos chegam pela televisão imagens de confrontos entre adeptos em estádios daquele país, ou notícias sobre rixas causadas devido a discussõees sobre aspectos clubísticos - mesmo entre familiares. A Argentina, ou "albiceleste", como é conhecida pelos seus adeptos, tem um currículo respeitável em campeonatos mundiais, apesar de ambos terem sido envoltos em alguma polémica - ou bastante, dependendo da perspectiva. Já falei dos mundiais da era Maradona, vamos agora olhar para os restantes.


Guillermo Stábile, o "artilheiro" do primeiro campeonato do mundo.

A Argentina impôs respeito logo no primeiro campeonato do mundo, realizado no Uruguai, e viria apenas a perder na final para a equipa da casa. Inseridos no grupo 1, o único com quatro equipas, estrearam-se com uma vitória por 1-0 frente à França, e de seguida demonstraram um futebol mais ofensivo, com goleadas por 6-3 frente ao México, e 3-1 contra o Chile. Como vencedores do grupo, passaram às meias-finais, onde fizeram mais uma vítima, desta vez os Estados Unidos, que sairam vergados por uma goleada de 6-1. Na final em Montevideu, chegaram a estar em vantagem por 2-1, mas os uruguaios acabariam por se impôr, vencendo por 4-2. Luis Monti entrou para a história como o autor do primeiro golo argentino em mundiais, frente aos franceses, mas seria Guillermo Stábile a merecer honras de destaque, ao apontar 8 golos, tornando-se o melhor marcador do torneio. Quatro anos depois em Itália, as coisas na correram tão bem, e num torneio sempre a eliminar, os argentinos não passaram da primeira ronda, perdendo por 3-2 frente à Suécia.


A Argentina de 1958.

Seria apenas 24 anos mais tarde, em 1958, e exactamente na Suécia, que voltariamos a ter os argentinos num mundial de futebol. Depois de desistirem durante a fase de qualificação em 1938 e depois em 1950, não participaram sequer do apuramento para o torneio final na Suíça, em 1954. Não se pode dizer que tenham sido muito felizes neste seu regresso, pois ficaram logo pela fase de grupos; derrotados pela Alemanha por 3-1 no primeiro jogo, venceram a Irlanda do Norte pelo mesmo resultado na segunda ronda, mas ficariam afastados após uma humilhante goleada de 6-1 frente à Checoslováquia.


Em 1962 a viagem foi mais curta, até ao Chile, mas a prestação voltou a ficar aquém das expectativas. Integrados no Grupo 4, com uma oposição inteiramente europeia, venceram a Bulgária na primeira partida por uma bola a zero, e perdendo o segundo jogo frente à Inglaterra por 3-1. Obrigados a vencer a Hungria na partida decisiva, não foram além de um nulo, permitindo aos húngaros a vitória no grupo, com os ingleses em 2º lugar. A primeira demonstração de força seria quatro anos depois, precisamente em Inglaterra. Numa equipa onde a grande estrela era o avançado Luis Artime, do River Plate, a estreia foi contra a campeã da Europa, a Espanha, e o mesmo Artime apontava os dois golos da vitória por 2-1. Bom presságio, e depois de um empate sem golos contra a Alemanha, os "albicelestes" voltavam a vencer, desta feita a Suíça, por 2-0, mas os alemães venciam o grupo na diferença de golos marcados. Nos quartos-de-final o adversário foi a equipa da casa, a Inglaterra, e num jogo duríssimo disputado no Estádio de Wembley, os ingleses levariam a melhor, com um único golo apontado por Geoff Hurst, decorriam 78 minutos. A Argentina dava boa conta de si, e as contas com os ingleses ficariam para ajustar vários anos mais tarde. No entanto os ânimos arrefeceriam com o falhanço da qualificação para o mundial de 1970, no México.


O saudoso "Chirola", antiga glória do Sporting e da selecção argentina.

Em 1974, e já com a organização do mundial seguinte atribuída a si, a Argentina apresentou-se no mundial da Alemanha com uma maioria de jogadores mais experientes, acima dos 25 anos, que "faltaram" ao exame do México quatro anos antes. Destes destacava-se o nosso conhecido Hector Yazalde, que nessa época tinha apontado 46 golos em 29 jogos pelo Sporting, campeão da liga portuguesa. No entanto o treinador Vladislao Cap apostava num jovem de 19 anos, jogador do Rosario Central, de seu nome Mario Kempes, que viria num futuro próximo conduzir a Argentina à tão desejada glória. Nesse ano a passagem por terras alemãs foi pouco mais que discreta, com uma derrota inicial frente à Polónia por 3-2, seguido de um empate frente à Itália a um golo. Valeu a goleada por 4-1 sobre o modesto Haiti para assegurar a passagem à segunda fase, com uma melhor diferença de golos que os italianos. Na "poule" que decidia o finalista, os argentinos não tiveram qualquer hipótese frente à Holanda de Cruijff, saíndo derrotados por expressivos 4-0, perdendo de seguida para o Brasil por 1-2, e ficando definitivamente afastados de qualquer pretensão. Enquanto holandeses e "canarinhos" decidiam quem ia estar em Berlim, Argentina e Alemanha Democrática empatavam a um golo, num jogo "a feijões".


Em 1976, dois anos antes do primeiro mundial na Argentina, dá-se o golpe de estado onde o general Jorge Videla impõe uma ditadura militar. À medida que a competição se aproxima, o regime vai aproveitando para se auto-promover, e em vésperas do torneio final, alguns países começam a ter dúvidas sobre a participação. O protesto mais mediático vinha da Holanda, finalista em 1974, e apesar dos "artistas" da "laranja mecânica" virem a participar, a sua maior estrela, Johann Cruijff, recusava-se a viajar para a Argentina, alegando "questões de princípio". Anos mais tarde
viria a saber-se que o jogador holandês e a sua família teriam sido alvo de uma tentativa de rapto, e que Cruijff não queria deixar a mulher e os filhos sozinhos em Barcelona. Com Kempes a liderar as operações, a Argentina ia justificando o favoritismo, vencendo a Hungria e a França por 2-1 na primeira fase de grupos, garantindo desde logo a passagem ao segundo "round". O primeiro lugar do grupo foi negado pela Itália, que surpreenderia a equipa da casa com uma vitória por 1-0, com golo de Bettega. Na segunda fase, a maior das polémicas: a Argentina jogava sempre depois dos seus adversários, sabendo assim o resultado que mais lhes interessava. Isso ficou evidente depois do empate a zero frente ao Brasil, depois de na primeira ronda os argentinos vencerem a Polónia por 2-0, enquanto os brasileiros faziam melhor, vencendo o Perú pr 3-0. Com o Brasil a bater os polacos por 3-1, a Argentina precisava de vencer os peruanos por quatro golos ou mais de diferença. Perante um adversário muito permissivo, a equipa de Menotti acabaria por golear por 6-0, passando assim à final. E quem iriam eles encontrar na partida decisiva do Estadio Monumental de Buenos Aires, senão os rebeldes da Holanda? Mesmo sem Cruijff, as "laranjas" obrigaram os "albicelestes" a um prolongamento, depois de 1-1 ao fim dos 90 minutos. Kempes e Bertoni marcavam nos últimos cinco minutos, deixando o placard em 3-1, e Videla a sorrir com o tão aguardado título mundial para a Argentina.


Seguiu-se a era de Maradona, um título, uma final, e uma desilusão, e a partir daí nunca mais a Argentina passou dos quartos-de-final de um mundial. Em 1998 na França, a antiga glória Daniel Passarella estava encarregado de mudar a página e fazer esquecer 1994. Com jogadores de altíssimo "pedigree", como Javier Zanetti, Gabriel Battistuta, Juan Verón, Diego Simeone, Hernan Crespo, Claudio Lopez, Ariel Ortega ou Roberto Ayala, todos a alinharem em grandes ligas europeias, os argumentos eram mais que suficientes para poder sonhar alto. A fase de grupos decorreu tranquila, e os argentinos qualificaram-se, se me permitem, "com uma perna atrás das costas". Depois de uma vitória algo complicada sobre o estreanto e ultra-defensivo Japão por 1-0, veio a goleada por 5-0 frente à Jamaica, e outro 1-0 frente à sensacional Croácia, que mais tarde viria a terminar no pódio. O jogo dos oitavos-de-final frente à Inglaterra, marcado pela dureza e pelo episódio envolvendo Simeone e David Beckham (de que falarei quando chegar vez da Inglaterra), e decidido apenas nos pontapés da marca de grande penalidade, terão desgastado a equipa, que nos quartos não resistiu a uma fortíssima Holanda, e a um golo fantástico de Dennis Bergkamp a um minuto dos 90, que ditou a derrota por 1-2 e o regresso à América do Sul, sem glória.


A falta de "raça" da selecção de 2002 foi motivo de chacota.

Mais confiança ainda em 2002, com os argentinos a confiar na equipa liderada por Marcelo Bielsa, que combinou novo talento, como os casos de Pablo Aimar, Walter Samuel ou Diego Placente, com a experiência dos regressados José Chamot ou Claudio Caniggia, que apesar dos seus 35 anos, tinha feito uma época brilhante nos escoceses do Glasgow Rangers. A uma vitória pouco convincente no jogo de abertura frente à Nigéria por 1-0, seguiu-se uma derrota contra os eternos rivais, os ingleses, pelo mesmo resultado, e obrigados a bater a Suécia, o empate a uma bola contra os nórdicos mandava a "albiceleste" mais cedo para casa. Os adeptos não pouparam os jogadores, que acusaram de falta de empenho. Mas a realidade é que as épocas nos clubes tornavam-se cada vez mais longas e desgastantes, e as pernas ressentiam-se.


Em 2006, na Alemanha, a Argentina aparecia de cara lavada, com José Pekerman a contar com novas estrelas como Esteban Cambiasso, Javier Saviola, Javier Mascherano, Juan Riquelme ou Fabio Coloccini, liderados por Carlos Tevez, a estrela da companhia, e ainda com a irreverência de um jovem de 18 anos que começava a dar que falar no Barcelona, Lionel Messi. As comparações com Maradona eram inevitáveis, e o próprio Maradona, recuperado do seu calvário, torcia das bancadas. A estreia com vitória por 2-1 sobre a Costa do Marfim não deixava ver onde poderia chegar a Argentina, mas a goleada por 6-0 frente à Sérvia e Montenegro - uma nova versão da antiga Jugoslávia - deixava a "afición" nas núvens, e revelava um Tevez em grande forma. O empate sem golos frente à Holanda foi quanto bastou para vencer o grupo, mas nos oitavos-de-final, a "albiceleste" encontrou dificuldades inesperadas frente ao México, sendo obrigada a um prolongamento onde Maxi Rodriguez marcou, fazendo o 2-1 com que seguiam para os quartos. Aí a oposição era de respeito, a Alemanha, e apesar de ganharem vantagem no marcador por Ayala aos 48 minutos, Klose levaria o jogo para prolongamento com um remate certeiro aos 80, e nos "penalties" a Argentina voltaria a falhar o "final four".


Quatro anos depois, com a África do Sul como palco, Maradona no banco e Messi afirmado como uma nova esperança, os argentinos partiam mais uma vez com a confiança em alta - isto apesar da fase de apuramento problemática (ver peça em baixo). A fase de grupos foi 100% vitoriosa, com 1-0 sobre a Nigéria, 4-1 sobre a Coreia do Sul e 2-0 frente à Grécia, mas apesar do à vontade com que a Argentina de Maradona dominava os adversários, parecia faltar algo que os levasse mais longe desta vez. O México voltou a aparecer no caminho na fase seguinte, e desta feita não foi necessário recorrer a tempo extra, pois o 3-1 ao fim dos 90 minutos valia o "rematch" com a Alemanha. O "dejá vu" era evidente, só que desta vez frente aos alemães vinham ao de cima todas as fragilidades da Argentina, e a derrota por esclarecedores 4-0 valiam não só o regresso a casa, mas o fim de mais uma era Maradona, desta vez como treinador. Resta agora saber se o desconhecido Alejandro Sabella, há dois anos e meio no comando da equipa, vindo dos Estudiantes de La Plata, consegue finalmente dar início a um período novo, de uma Argentina "desmaradonizada".

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