terça-feira, 20 de maio de 2014

O pecado da carne (e das aves domésticas)


Ah, nada como publicidade paga, especialmente quando se trata de uma lista de infrações com a descriminação do nome completo dos infractores, a data da infração, a sua natureza, e a coima a aplicar. Já sei que há quem prefira os editais judiciais de apreensão, penhora, autos de divórcio litigioso ou declaração de incapacidade mental, e ainda os que se pelam pela lista de campas cujo prazo de exumação foi ultrapassado. Eu pessoalmente aprecio a lista de violações dos regulamentos da utilização dos espaços públicos, vulgo "gajos que mandam uma escarreta ou atiram um papel para o chão", ou em alternativa, a lista indivíduos que importaram e/ou exportaram mercadorias com um valor superior a 5 mil patacas "sem licença válida ou substituto informático", ou noutras palavras, contrabando. Hoje desfolhava o Jornal Tribuna de Macau, procurando algum tipo de sabujice onde pudesse cortar na casaca, e quando chego às páginas centrais, eis que os meus olhinhos larocas se iluminam mais que um leitão assado num casamento chinês, quando deparo com nada mais, nada menos que...a notificação nº 354/2014, emitida pelo dept. de Propriedade Intelectual dos Serviços de Alfândega do Governo desta nossa Região Administrativa Especial de Macau - est. 1999.

É claro que o que me apetecia realmente era deter-me durante horas e esmiuçar ao mais ínfimo detalhe nomes, locais onde se cometeu a infração, montante da coima aplicada, e especialmente o conteúdo do despacho. Assim não só fico a saber mais sobre que tipo de mercadoria gostam os nossos co-residentes de contrabandear para dentro ou para fora do território - não se especifica este particular, mas atentendo à natureza da mercadoria, suponho que é mais o que entra do que aquilo que sai. Depois de uma rápida verificação dos nomes dos infractores, para ver se há alguém conhecido a quem depois possa dar um toque e perguntar "se está tudo bem", sabendo de antemão que não está, e depois de não reconhecer nenhum dos patifórios e patifórias, passei então a examinar cuidadosamente a mercadoria apreendida. E o que encontramos ali?

Carne, sobretudo carne. Quilos de carne, que todos somados dão toneladas de carne. E aves, que neste caso me dá entender pela designação "ave doméstica", que se trata aqui de aves vivas, e sou até capaz de apostar que as galinhas estão em maioria. Esta presunção deve-se sobretudo à distinção entre "ave doméstica" e "carne de galinha", assumindo que esta última é a versão degolada e depenada da primeira. O que lança a confusão é a distinção entre "carne", "carne de porco", "ave doméstica" e "galinha". No mesmo dia, 29 de Julho de 2013, temos o caso de um indivíduo que responde por cinco processos distintos por transporte ilegal de mercadoria, a saber: "15,2 kg de carne"; "15 kgs de carne"; "14 kgs de ave doméstica"; "14,5 kgs de ave doméstica", e finalmente "8 kgs de ave doméstica". Trata-se do mesmo indivíduo, que no mesmo dia e no mesmo local, o posto fronteiriço das Portas do Cerco, transportava, fazendo as contas, 30,2 kg de carne, e 36,5 kg de ave doméstica. Portanto, ficamos sem saber se a carne era de origem diversa, e se as aves de espécies diferenciadas, ou se os Serviços de Alfândega querem "fazer a cama" ao indivíduo em questão, e cinicamente dividiram a carga apreendida em doses separadas, todas acima do limite tolerado pela lei, só para que ele "chupasse" várias multas, que neste caso são no valor de 2 mil patacas cada. Talvez até não fosse mau negócio, mesmo apesar das coimas, mas ao serem apreendidas, as mercadorias passam à condição de "perdidas a favor da RAEM". Portanto, paciência.

Algumas destas apreensões levam-me a desconfiar da sanidade mental dos infractores. Tomando como exemplo o caso anteriormente referido, não é fácil transportar mais de 60 kg de carne sem chamar a atenção. Não é propriamente uma daquelas coisas que dê para levar nos bolsos, ou dentro de um saco de plástico tapada por uma camisola ou debaixo dos lenços de seda. É de esperar que os serviços alfandegários suspeitem de alguém que leva consigo um talho e um aviário completos. E é sem dúvida a carne o maior dos pecados destas pequenas "formigas" de fronteira, pois constituem a esmagadora maioria das apreensões levadas a cabo pelos simpáticos agentes dos SA. Procurando entre tanta "carne" e "aves domésticas", é possível encontrar a espaços outras variedades de produtos alimentares, caso dos "produtos do mar", "almôndegas de peixe", "víscera" (isto é, tripas, fígados, etc.), "bucho de porco", e um caso curioso de "preparações de sangue de porco" - não deveria ser para transfusão, certamente, e daí nunca se sabe. O que se encontra amiúde entre o material confiscado são "ossos de porco". Ora meus senhores, se há coisa de que estamos a precisar, são de mais ossos de porco. Depois como querem que as pessoas não se queixem de que a comida sabe muito a aromatizantes artificiais, do tipo do monoglutimato de sódio, se não há ossos de porco que se cozam para dar sabor ao caldo?

E para que não se pense que só de pão vive o homem, ou neste caso, "carne" e "aves domésticas", os SA têm também a sua conta em apreensões de "vinho", que distinguem entre "vinho estrangeiro", e "vinho chinês". No fim de uma refeição, e para quem fuma, nada como um cigarrinho, e cigarros é algo que a bófia na fronteira também apreende em largas quantidades, e que na lista é numerada em "unidades de cigarro". Isto vale por dizer que um indivíduo apanhado com "1400 unidades de cigarro", como consta aliás num dos processos, transportaria consigo 70 maços de tabaco, ou sete volumes. Agora o que fica por esclarecer é o critério de aplicação das tais coimas, que variam entre as 500 e as 10000 patacas. Por exemplo: certo infractor que a 13 de Março de 2013 transportava consigo "12,5 kg de ave doméstica" foi multado em 2000 patacas, enquanto outro apanhado com a mesma quantidade, mas 12 dias antes, "safou-se" com uma coima de 500 patacas. O mesmo para os cigarros: há o caso do tipo que é apanhado com "4400 unidades de cigarro" e é multado em 5000 patacas, e outro que exactamente no mesmo dia levava "2200 unidades de cigarro", ou seja, metade, paga exactamente o mesmo. Entretanto um outro que a 16 de Junho de 2011 levava consigo "apenas" "1720 unidades de cigarro" é obrigado a desembolsar 6250. Como já referi, não sei a que critérios obedecem estas penalizações, mas a reincidência não deve ser um deles - um indivíduo que entre Dezembro de 2011 e Março de 2012 foi apanhado em nove ocasiões diferentes transportando ilegalmente quantidades respeitáveis de "carne" e "aves domésticas" foi sempre multado em 2000 patacas. Este até já deve ser a mascote lá da malta da alfândega.

Agora uma questão curiosa prende-se com o seguinte: o que está a malta de um departamento que dá pelo nome de "Departamento de Propriedade Intelectual" a fazer mexendo nas carnes e nas aves, não havendo sequer por ali mioleira nem nada? O vinho e os cigarros ainda são capazes de inspirar algum artista plástico ou poeta, mas não era suposto andarem de olho na "propriedade intelectual"? Mas se fosse assim também não iam ter muito que fazer, pois desta extensa lista o que mais se aproxima de tal coisa é a apreensão de "35 jogos de telemóvel (com caixa) e 191 componentes de telemóvel", feita a 14 de Junho de 2010. Suspeita é ainda uma senhora que tentou passar a 14 de Setembro de 2010 com "100 caixas de anestésicos para animais e 120 unidades de medicamentos", e gorada essa intenção, foi apanhada quatro dias depois com "25,2 litros de vinho estrangeiro" - e estou a falar da mesma pessoa. É prá desgraça. Tão suspeita como o indivíduo que em 6 de Fevereiro de 2012 não tinha como provar a origem de "34200 unidades de pílula e 720 pedaços de anti-inflammatory analgestic (sic) paste". Este ou estava mesmo doente, ou deve dar-se por satisfeito por se ter safado com uma multa de 5000 patacas.

Portanto olhando para esta lista, tiro algumas conclusões, entre as quais a seguinte: às vezes o crime compensa. Quer dizer, como é possível que exista tanta gente qie se arrisca a introduzir no território carne sem designação de origem, e muito provavelmente de qualidade duvidosa, e quase que aposto, sem ser inspecionada, pague uma multa, reincida, e pague outra vez multa. Isto até parece um jogo: "ah ah, hoje apanharam-me, mas ontem passei com 20 kg de carne de ratazana e 10 aves domésticas do tipo morcego, e vocês nem desconfiaram". Aprendi também que os Serviços de Alfândega são bastante competentes, sim senhor, e tiveram o mérito de elaborar uma lista sem erros de português daqueles de bradar aos céus e que tantas vezes encontramos noutras publicações oficiais. Mas a lição mais importante e que devo reter é esta: nunca vou passar a fronteira com bucho de porco. Nunca o faria de qualquer jeito, com ou sem licença, que aquela porcaria cheira mal que tresanda, mas na eventualidade de o fazer sem ter a documentação necessária, a multa é de 10 mil patacas, a maior de todos! Ao que chegámos, quando até o preço do bucho anda pela hora da morte.






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