Toda a nação tem a sua catástrofe irremediável, algo como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai na copa de 1950.
Nélson Azevedo - escritor e dramaturgo brasileiro.
Bem vindos a esta rubrica a que dou hoje início, a exactamente um mês do pontapé de saída para o XX mundial de futebol da FIFA, que terá por palco, e pela segunda vez na sua história, aquele que é considerado o "país do futebol": o Brasil. E por isso, para começar, nada como recordar a primeira vez que o maior evento futebolístico do planeta se realizou naquela nação sul-americana, em 1950, e a forma inesperada como terminou, num "affair" que ficou conhecido por "Maracanaço" - nome derivado do facto de tudo ter ocorrido no mítico estádio carioca - e que é ainda hoje a página mais negra do futebol brasileiro.
Estávamos em 1950, e já nesse tempo o futebol era a "religião" no Brasil. O país vivia uma época de prosperidade, no despertar da II Guerra Mundial, e era presidido pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra, que viria depois a dar lugar ao popular e muito acarinhado Getúlio Vargas. Depois do Uruguai ter organizado (e vencido) a primeira Taça do Mundo em 1930, e a Itália tê-los imitado quatro depois e vencido de novo em 1938 em França, seguiram-se os anos da guerra, e em 1950 era a vez do Brasil chamar a si o protagonismo na maior competição do desporto-rei. Para o efeito foi construído o descomunal Estádio do Maracanã, oficialmente "Estádio Jornalista Mário Filho", mas assim baptizado devido ao bairro carioca onde ficava situado, mas margens do mesmo rio, ambos com o nome desse pequeno pássaro tropical, o Maracanã. Seria ali que jogaria a equipa da casa, quer no jogo de abertura, quer nas partidas da "poule" final.
O mundial de 1950 foi o primeiro em que se entregou o troféu baptizado com o nome Jules Rimet.
Foram 16 as equipas apuradas para a fase final, que decorreria entre 24 de Junho e 16 de Julho. Divididas em quatro grupos de quatro, o vencedor de cada grupo jogaria uma "poule" no sistema de todos contra todos, e a selecção com mais pontos seria a nova campeão mundial - foi a primeira e única vez que se adoptou este sistema. O Brasil era o grande favorito; a espinha dorsal era formada por atletas do Vasco da Gama. Contando com jogadores da classe de Ademir de Menezes, Nílton Santos, Bigode, Jair, Zizinho ou Friaça, e orientados pelo conceituado Flávio Costa, que tinha acabado de se sagrar tri-campeão carioca pelo Vasco, ganhar o título mundial, e para mais a jogar em casa, parecia uma mera formalidade.
Com 82 mil espectadores no Maracanã - menos de metade da sua capacidade - realizou-se a 24 de Junho o jogo de abertura, com o Brasil a golear o México por 4-0. Quatro dias depois o "escrete" apresentava-se no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, e empatava a duas bolas com a Suíça, com o golo do empate dos europeus a ser obtido a dois minutos do fim. Nada que deixasse os adeptos preocupados, pois no primeiro dia de Julho e de regresso ao Maracanã, o Brasil vencia a Jugoslávia por 2-0, e ganhava o grupo. Era obrigatória vencer, uma vez que os jugoslavos somavam duas vitórias (3-0 c/Suíça, 4-1 c/México), mas o esquema 2-3-5 montado por Costa, de grande pendor ofensivo, não deu qualquer chance ao adversário. Grande ajuda deram ainda os 142 mil adeptos que transformaram o Maracanã num inferno. Nestas circunstâncias parecia impossível a qualquer outra equipa vencer o Brasil.
No Grupo 2 a Inglaterra era a grande favorita, mas após a vitória de 2-0 sobre o Chile, deu-se a outra das grandes surpresas do torneio, com a derrota dos ingleses em Belo Horizonte frente aos amadores dos Estados Unidos, uma partida ela própria com uma história que viria mais tarde a ser contada em filme. A velha Albion ficou tão desmoralizada que viria a perder novamente frente à Espanha, mandando estes para a "poule" final, apenas com vitórias nos três jogos disputados. No Grupo 3 a Suécia bateu a campeã em título Itália por 3-2 no primeiro jogo, garantindo depois o apuramento após um empate 2-2 frente ao Paraguai. O grupo tinha apenas três equipas, devido à desistência da India. Mais fácil ainda foi a vitória do Uruguai no Grupo 4, pois apenas com a Bolívia e a França pela frente, e com a desistência destes últimos à última da hora, bastou golear os bolivianos por 8-0 para garantir a presença na fase seguinte.
O "final four" correu à medida do Brasil, com vitórias por 7-1 sobre a Suécia, e 6-1 sobre a Espanha. O "escrete" praticava um futebol de ataque contagiante, e não parecia haver no universo que os pudesse vencer. O avançado Francisco Aramburu, ou "Chico", uma das apostas de Flávio Costa, marcaria quatro golos nos dois jogos. O Uruguai, o último obstáculo antes do título, tinha empatado a dois com a Espanha e vencido a Suécia por 3-2 no Pacaembu de S. Paulo, e a forma como se "atrapalharam" com os adversários que o Brasil tinha esmagado não os colocavam numa posição de potencial ameaça. Além do mais bastaria um empate à equipa da casa para seguir em frente.
Obdulio Varela, capitão do Uruguai e herói nacional.
No dia da final, a 16 de Julho, tudo se preparava para consagrar o Brasil campeão mundial. Jules Rimet, presidente da FIFA que entregaria essa tarde o primeiro troféu com o seu nome aos campeões mundiais, tinha decorado um discurso em português, enquanto a Confederação Brasileira de Futebol tinha já preparado 22 medalhas de ouro com os nomes dos jogadores do Brasil, e dias antes tinha escrita uma canção, "Brasil os vencedores", para estrear depois do jogo decisivo. Nessa manhã o capitão uruguaio Obdulio Varela saiu do hotel, e deparou com as bancas cheias de jornais onde aparecia a fotografia da equipa do Brasil e onde se lia: "eis os novos campeões mundiais". Varela comprou o maior número de cópias desses jornais que podia, todos os que encontrou. Antes do jogo com o Brasil espalhou-as pelo chão do balneário, e disse aos seus colegas de equipa que lhes "urinassem em cima" - e foi isso mesmo que eles fizeram.
Com o Maracanã cheio que nem um ovo, com mais de 173 mil adeptos na bancada (números oficiais, e há quem diga que estariam realmente mais de 199 mil), o árbitro inglês George Reader deu início à partida entre o Brasil e o Uruguai, marcava o relógio 3 da tarde, hora do Rio de Janeiro. O entusiasmo nas bancadas era enorme, e em campo o "escrete" dominava os acontecimentos, e foi apenas por acaso e ocasionalmente graças ao heroísmo do guardião "celeste" Roque Máspoli que o Brasil não terminou os primeiros 45 minutos em vantagem. Com um nulo ao intervalo, o treinador uruguaio Juan López Fontana disse aos seus jogadores para "continuarem a defender", pois a sua única hipótese seria "remeter-se à defesaa, e aproveitar um eventual erro do Brasil". Mal virou as costas, o capitão Varela subiu em cima de um banco, e proferiu o discurso mais heróico da história do futebol uruguaio: "O Fontana é um bom homem, mas desta vez está errado. Se ficarmos na rectaguarda vamos ser goleados, como foram a Suécia e a Espanha. Temos que cair em cima deles!". Os uruguaios obedeceram ao seu capitão, mas no regresso ao relvado para o segundo tempo, cedo começaram a questionar essa táctica, quando Friaça abriu o activo para o Brasil logo no segundo minuto. O Maracanã "pegou fogo", com os adeptos em êxtase, e sem nada a perder o Uruguai caíu para cima do adversário. Supresos pelo atrevimento, o Brasil começou a tremer, e quando Schiaffino empatou aos 66 minutos os adeptos da casa começavam a engolir em seco. Mas no terreno a equipa de Flávio Costa continuava a ter a iniciativa ofensiva, e Máspoli fazia milagres entre os postes, e seria aos 79 minutos que cairia o balde de água fria no calor do Rio de Janeiro, quando Alcides Ghiggia fazia o 2-1 para os uruguaios. Faltavam ainda dez minutos para jogar, mas o desespero já era evidente nas bancadas, e seria transmitido para dentro das quatro linhas - o Brasil não teria mais cabeça fria para anular a desvantagem, e o Uruguai respirava confiança. Quando Reader apitou para o fim, foi como se tivesse caído o céu em cima do Maracanã; a festa anunciada ganhava contornos de funeral, os adeptos deixavam o estádio deserto, e Jules Rimet ficaria sozinho no relvado com a taça na mão. O capitão Varela viria eventualmente receber o troféu, mas não houve cerimónia - nem sequer de entrega de medalhas.
Flávio Costa, o "treinador maldito", durante o tempo que passou pela Invicta.
No Brasil inteiro a consternação era enorme. O pranto variava entre o simples choro e o desespero, e chegaram a haver suicídios entre os mais fanáticos, e a imprensa não sabia como lidar com a notícia - normal, para quem nesse mesmo dia tinha anunciado antecipadamente o campeão. O jornalista radiofónico Ary Barroso, uma das grandes vozes dos relatos do futebol brasileiro, decidiu aposentar-se após o jogo. Muitos dos jogadores decidiram também retirar-se da competição após a humilhação, e todos eles "desapareceram" durante as semanas seguintes. O treinador Flávio Costa considerou aposentar-se, mas depois de uma pausa sabática, regressaria como treinador do Flamengo, regressando ao Vasco entre 53 e 56, e por incrível que pareça, seria de novo responsável pela selecção entre 55 e 56, acumulando as funções. O técnico brasileiro passaria ainda pelo futebol português, treinando o FC Porto nas épocas 1956/57, e depois em 1965/66, mas sem conquistar qualquer título.
Os brasileiros não esquecem o "Maracanaço", mesmo as gerações que ainda não tinham vindo ao mundo. Foram feitas comparações com a final perdida para a França em 1998, mas nada doeu tanto como aquele fatídico dia no estádio que foi concebido para acolher a maior festa que o Brasil já tinha alguma vez visto, mas o que deveria ter sido um Carnaval fora de época, tornou-se num pesadelo. Certamente que os jogadores de Luiz Felipe Scolari vão ter em mente este episódio quando entrarem no campo em cada jogo a partir do próximo dia 12 de Junho. Os brasileiros dificilmente perdoariam outro "Maracanaço".
Para que não pensem que me divirto com a desgraça dos brasileiros, amanhã vou dedicar esta secção ao "rei" Pelé, e na sexta falarei do caminho da "canarinha" até ao "penta". Fiquem atentos!
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