Nota prévia: este "post" contém linguagem que pode ser considerada ofensiva, vulgar ou obscena. Quem não gostar pode parar de ler a partir de agora, e é por isso que deixo aqui este aviso - para no caso de não gostarem do que vou escrever, não venham depois armados em virgens ofendidas dizer que o Leocardo é um ordinário, ai ai e não sei quê. Se quiserem continuar a ler, bem vindos, e sigam pela vossa própria conta e risco.
As duas últimas semanas, nomeadamente os dez dias entre 25 de Maio e 4 de Junho, foram de uma importância ímpar para Macau, para a sua sociedade e para as suas gentes. Em apenas dez dias fez-se mais pela consciência social colectiva de uma população inteira do que em 15 anos de pasmaceira, de submissão, de um silêncio ensurdecedor, daquele que se sente nas profundezas do mais profundo dos oceanos, e que nos estoira com os tímpanos. Primeiro a manifestação de Domingo, dia 25, protestando contra o regime de garantias dos titulares dos altos cargos da RAEM, com "replay" na terça-feira seguinte em frente à Assembleia Legislativa, que obrigou o executivo a retirar a proposta de lei. Depois o efeito dominó, que levou o IACM a cancelar aquele triste circo que monta todos anos no 4 de Junho no Largo do Senado, com o pretexto de "comemorar o Dia da Criança", quando é evidente que a motivação é política, e a verdadeira intenção é de desmotivar os organizadores da vigília em memória das vítimas do massacre de Tiananmen, e eventualmente fazê-los "esquecer" o que aconteceu naquele fatídico dia na Praça da Paz Celestial, em Pequim. Isto é gente que percebe muito pouco de psicologia, ou do que quer que seja - impedir alguém de fazer algo não vai fazer a pessoa desistir dos seus intentos ou esquecer-se dos motivos; vai só levar a que insistam, e aumentar a irritação, e a curiosidade em saber porque não o deixam exercer aquilo que é um direito, quer se goste, quer não. Foi preciso o copo transbordar para que subitamente se desse um "despartar em sobressalto" da população, e o mais interessante é que o executivo encolheu-se, retraiu-se, como um urso que depois de tanto rugir foge a correr para a caverna quando lhe batem o pé.
No entanto a contra-oposição faz-nos em surdina, nos bastidores, e a contra-contra-oposição responde nas redes sociais, intercede junto das associações da chamada pan-democracia, que vão aparecendo cada vez mais, e com cada vez mais gente jovem - um bom sinal, este de que a juventude se interessa pelos valores da liberdade de expressão, de reunião e de manifestação. O último "caso estranho" teve lugar no canal chinês da TDM, quando na quarta-feira passada, dia em que se assinalou o 25º aniversário do massacre de Tiananmen, dois jornalistas apresentaram um programa da manhã vestidos de preto. Não vinham vestidos de farricocos nem nada que se pareça; trajavam apenas um casaco preto cada um deles, como vêem na imagem em cima. Podem também depreender pela imagem que ambos estavam sorridentes e não ostentavam qualquer indumentária ou traziam quaisquer cartazes, tarjetas ou crachás alusivos à data que se assinalava. Mesmo assim circulou a notícia que devido à "ousadia", os jornalistas em questão foram suspensos, e os seus salários congelados. A notícia espalhou-se como fogo em palha seca, e viria a ser prontamente desmentida pelo director-geral da TDM, Manuel Pires, e os dois jornalistas apresentaram o programa na manhã seguinte. Julgo que apenas os próprios poderão atestar a veracidade desta notícia, mas se de facto os jornalistas foram repreendidos ou ameaçados por usarem um casaco preto - e aparentemente as razões porque o faziam foram interpretadas por terceiros muito livremente - é grave, muito grave. Felizmente começa a ficar cada vez mais claro que estes métodos de dissuasão já foram um chão que deu uvas, mas não mais.
No entanto a fonte do medo, da intimidação e do silenciamento ainda não secou. Gosto de saber o que pensam as pessoas desta data. Nem preciso de saber de que lado estão, se gostam ou não do regime, se acham que a repressão violenta é um método eficaz de manter a ordem, nada disso. O que me interessa apenas é atestar até que ponto a sabujice se sobrepõe ao mínimo de respeito que se deve ter pelos mortos, ou neste caso, sendo que as vítimas foram jovens estudantes, que respeito pela dor e pelo sofrimento das suas famílias. É que neste caso, quem quiser expressar uma opinião não precisa necessariamente de emitir um parecer político, e o simples pesar pelas vítimas não implica que se esteja a favor ou contra ou regime, ou que se é dissidente apenas porque se lamenta a morte de centenas, senão milhares de jovens. Não entendo como é que alguém pode ser tão simplório ao ponto de cair nessa conversa, de que falar sobre o assunto, comentar ou manifestar pesar pelas vítimas da repressão militar ao movimento estudantil de 4 de Junho pode ter consequências para o seu emprego, para a sua carreira ou até para a sua própria permanência em Macau, e quem sabe se há mesmo quem pense que isto lhe pode custar a liberdade, ou ter implicações para as suas famílias. A ignorância e a burrice não têm limites.
Logo na quarta de manhã, perguntei a um colega chinês, natural do continente, se "ia estar nessa noite na vigília no Largo do Senado" - perguntei meio na brincadeira, uma vez que sabia muito bem que ele nunca iria lá pôr os pés, mas quis saber a reacção. A resposta que me deu foi a normalizada, a empacotada, a oficial: "você é português preocupa-se com os problemas de Portugal, e deixa a China preocupar-se com os problemas da China". Bingo! Na mouche. Perguntei-lhe onde ficava esse botão que rebobina a cassete e toca sempre o mesmo, que aquilo que ele me acabava de dizer parecia mesmo uma gravação, e não uma afirmação vinda de alguém que pensa pela própria cabeça. É que esta conversa de que se trata de "um assunto interno da China" já começa a cheirar mal. Quando a China quer ser parceiro de negócios ou fazer parte activa das organizações internacionais e ser tido como um parceiro de respeito, como é que podem fazer esta distinção do que é assunto interno ou diz respeito a todos? E se é um problema interno para resolver entre os chineses, então que o resolvam. O que têm feito até agora é optar pelo silência, pelo silenciamento e pela ameaça, desencorajando quem se atreva a abordar o assunto. É a isso que chamam "resolver"? Se a repressão e a violência se justificam, então expliquem porquê, e se não se justificou, então basta pedir desculpa uma vez, e o assunto fica encerrado. É assim tão difícil? Ao optar por esta via estão a tapar o sol com uma peneira, e o sol vai chegando à sua plenitude do meio-dia, cada vez mais incandescente. É esta China o mesmo país que exige do Japão que se retrate das atrocidades que cometeu na II Guerra Mundial?
E este que referi nem é dos piores. No dia seguinte à comovente manifestação de pesar que voltou ao Largo do Senado 19 anos depois comentei o assunto com uma colega macaense, disse-lhe que estive lá e que achei bonito. Ela respondeu-me qualquer coisa como "para quê lembrar estas coisas que aconteceram há tanto tempo?" e ainda "esqueça o passado, devemos viver no presente", e quando mencionei que estiveram lá mais de duas mil pessoas, retorquiu "eram pessoas de Hong Kong, todos de Hong Kong que vêm para cá fazer Macau parecer mal". Quando lhe fiz ver, diplomaticamente é claro, que aquilo que estava a sair da sua boca era nada mais que extracto concentrado da mais mal-cheirosa merda, emendou: "...ou da China, porque lá na China não podem fazer isto". Interessante. Este é aquilo tipo de pessoa que enquanto estiver viva ao cimo deste mundo que Deus (alegadamente) criou a evolução da espécie humana não só vai ficar parada, como ainda nos arriscamos um dia destes a pegar numa clava e ir habitar num buraco. Gostaria de saber qual seria a sua reacção se estivesse no cemitério a colocar flores na campa de um familiar seu, e alguém chegasse ao pé dela e dissesse: "para quê viver do passado?" ou "esqueça aí o esqueleto e preocupe-se mais com os vivos". E quanto a esta teoria da conspiração que vai no sentido de que a população ou o governo de Hong Kong têm algum plano malévolo para prejudicar Macau, porque "têm inveja", só tenho um comentário a fazer: são delírios absurdos vindos de pessoas que só podem sofrer de um atraso mental profundo. Se estar solidário com as vítimas do massacre e com as suas famílias é algo próprio das pessoas de Hong Kong, então permitam-me o desabafo: sou de Hong Kong.
Esta minha colega defende ainda (e como já referi, é parva) que "se vão fazer uma vigília pelas vítimas 'daquela coisa', porque não fazem também para as vítimas dos terramotos? morreu muita gente...". Pois é, só que isso dos terramotos não dá para evitar, e além disso toda a gente sabe muito bem o que aconteceu: um terramoto. Este chorrilho de disparates que saem da boca dela e de outras pessoas quando se aborda este tema demonstram duas coisas: receio de falar, e alguma desconfiança. Digo "desconfiança" porque mesmo que estas pessoas tenham alguma empatia pelas vítimas do massacre - e para o seu bem, espero que tenham - preferem não o demonstrar, pois temem estar a comprometer-se. Sendo eu estrangeiro, ainda tenho um desconto, mas se fosse chinês, ficavam a pensar que lhes estava a montar alguma armadilha. Mesmo assim ficava-lhe melhor manter-se calada do que fazer comparações descabidas ou desvalorizar a tragédia, ou podia simplesmente dizer qualquer coisa como "a vida corre-me bem, não me meto em política e portanto o meu sabor de gelado preferido é testículos de dirigentes do partido único, hmm, hmmm, que delícia". Aliás a tendência é para que quem está bem com o sistema ou quem este estado de coisas, diga que todos os peidos que vêm de cima cheiram a "danish" de maçã e canela acabadinho de sair do forno, enquanto que para os que a vida corre para o torto existe uma tendência para se queixar por tudo e por nada. Mais uma vez não se encontra um ponto de balanço, um meio-termo.
Para mim o essencial aqui são as vítimas, as pessoas que morreram. Deixem lá essa treta da política e respeitem em primeiro lugar os mortos, as suas famílias e todo o sofrimento que este infeliz episódio que aconteceu há 25 anos causou, e ainda hoje deixa marcas. Deixem-se lá de sermões que ninguém encomendou, de ameaçar as pessoas que querem fazer luto, participar da vigília ou simplesmente vestirem-se de preto. Se não quiserem falar do assunto eis o que podem dizer em vez de enormidades e disparates que chegam a ultrapassar o insulto: "não quero falar nisso porque sou um cobarde, e mesmo que não fosse não sei o suficiente sobre o assunto para poder emitir qualquer opinião". Aqui estava uma saída airosa para o problema. Pode ser que quando um dia estas pessoas tiverem nos braços o cadáver dos filhos ou de outro ente querido, e o seu sangue nas suas mãos, compreendam então que sente a gente que se recusa a esquecera. E pode ser também que saibam como dói ouvir certas coisas ou assistir a certas atitudes que hoje eles próprios não têm vergonha na puta da cara quando estão desse lado, todos contentinhos da vida. Que lhes faça bom proveito, e já agora que se engasguem.
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