Eis que chegamos a Domingo à noite, de um fim-de-semana que tirei para "hibernar", portanto um pouco "fora de horas", deixo-vos com o
artigo de quinta-feira do jornal Hoje Macau. Aproveitem as horinhas que vos restam antes de enfrentar mais uma semana de trabalho (e calor), e divirtam-se!
Esta é uma obra de fricção. Isso mesmo, “fricção”, e não “ficção”. É uma paródia a um incidente e a um acidente – mais a um acidente. Qualquer semelhança com factos, pessoas ou acontecimentos reais é puramente e descaradamente intencional.
A acção decorre num museu “da moda”, de uma cidade “da moda” de um país “da moda”. Os personagens são A., um artista plástico que se prepara para exibir o seu mais recente trabalho numa exposição colectiva no tal museu, B., o curador da exposição, e C., o conservador do museu.
C: – Portanto o meu amigo é um artista. Adoro arte…essa busca incessante pela imortalidade, essa expressão que requer génio, bem como um pouco de loucura. Creio que foi Picasso que disse: “A única diferença entre mim e um louco, é que eu não sou louco”. Ah, ah, ah! Muito boa essa!
A: – De facto, mas foi Dali.
C: – Peço desculpa?
A: – Essa frase é atribuída a Salvador Dali.
C: – Não conheço, mas tenho a certeza que foi Picasso, sim, foi ele. Sabe, o avô da Paloma Picasso, o francês.
A: – Eu…
B: – (Interrompendo) Aham, vejo que já se conhecem, muito bem. Sr. C., este é o artista de que lhe falei.
C: – Sim, sim, muito interessante. Diz que se chama A., é assim?
A: – Isso mesmo.
C: – Sabe uma coisa, temos um problema com o seu nome. Soa demasiado banal, importava-se de mudar para O., só para esta exposição?
A: – O quê?
C: – É que discutimos isto no lançamento da exposição, e pensámos que O. ficava-lhe melhor que A.. É só uma sugestão.
A: – Agradeço a sugestão, mas…
B: – O que o meu amigo A., ou melhor O., quer dizer é que acha a ideia sensacional, e concorda.
A: – (chamando B. à parte) Estás maluco ou quê? Mudar de nome?
B: – Epá não ouviste? É só para esta exposição, e depois pode ser que pegue, e ficas com um “alias”, ‘tás a ver.
A: – Não pensei nisso, ok, vamos ver se dá certo.
B: – O meu amigo A. concorda com a sua sugestão, sr. C. E agradece a atenção.
C: – Muito bem. E tenho outra questão, o meu amigo é casado, ou…
A: – Porquê?
C: – Bem, gostava de saber se prefere a companhia das senhoras, ou…
A: – Desculpe, mas o que tem a minha orientação sexual a ver com a exposição?
C: – Nada, nada, é que sabe, alguns dos nossos visitantes mais ilustres têm uma impressão do mundo artístico muito particular. Esperam alguma irreverência, extravagância, e falta-nos esse ingrediente, entendeu?
A: – Entendi mas não percebi. Peça a outro, eu dispenso esse tipo de etiqueta.
C: – Não precisava de fazer nada de especial, nem nós vamos fazer qualquer tipo de publicidade, é só no caso de alguém lhe perguntar se é casado, ou se tem namorada, respondia que não. Para deixar isto aberto a interpretações, compreende?
B: – (dando um toque com o cotovelo) Ouve lá, qual é o problema? Não sabia que tinhas esse pudor.
A: – (sussurrando) Estás maluco ou quê? Sou casado, lembras-te? E não entendo o que é que isto tem a ver com a exposição, com arte, ou seja com o que for.
B: – Epá estes gajos dão muita importância a estas coisas da estética, pá. E além do mais ele disse que não precisas de fazer nada, portanto importas-te com uma pequena concessão, só para ver se a gente anda com isto para a frente?
A: – (dirigindo-se a C.) Pronto, não se fala mais nisso. Pensem lá o que quiserem.
C: – Peço desculpa se me entendeu mal, é apenas uma questão de manter as aparências. E já que falamos disso, quanto à sua obra…
A: – O que tem a minha obra?
C: – Nada de mais, é soberba, mas sabe aquele detalhe no canto superior esquerdo, com um fundo a lilás? Estávamos a pensar se não seria melhor retocar numa cor menos…agressiva? Sugiro um verde pálido, ou mesmo um bege?
A: – Bege? Mas…eu pensei que as obras tinha sido previamente revistas e aprovadas, o que é isto de bege?
C: – Sei, mas repare, podem existir sempre alterações de última hora. Achamos que o tom que escolheu é um pouco agressivo, pode causar algum desconforto entre os nossos visitantes. E no fundo é apenas um detalhe, não altera a essência da obra.
A: – Estou a ver, muito bem, só que a obra é o que é, e se eu a alterar passa a ser outra coisa. E além do mais tenho a minha integridade artística.
C: – Compreendo…mas saiba que assim me deixa numa posição muito delicada. É que eu dei a minha palavra de honra que não ia haver qualquer problema, e que podia contar consigo. É uma pena que se mantenha assim, irredutível, apenas por um pequeno pormenor.
A: – Eu também tenho pena, mas…
B: – (puxando A. bruscamente pelo ombro) Qual é a tua, pá? Que merda é essa, “integridade artística”. É só um detalhe, ninguém vai reparar, e resolves o problema em dez minutos, para quê complicar?
A: – Olha lá, que me mudem de nome ou insinuem que eu gosto de gajos é uma coisa, agora isto…quer dizer, desculpa lá.
B: – Já sabias que estes gajos eram assim, queres o quê? Vieste para a exposição ou vieste para mudar o mundo? Os gajos vão insistir, e se tu não colaboras podem encerrar a exposição e vamos todos para casa. É isso que tu queres? Então guarda as tuas “desculpas” para os outros, que aquilo a que tu chamas “integridade artística”, eles vão chamar de teimosia.
A: – (engolindo em seco) Posto nesses termos…
B: – (em voz alta) Ora bem, sr. C., parece que temos o nosso problema resolvido. O meu amigo A. concorda que é apenas um detalhe sem importância, e tal como eu e você só quer o melhor para a exposição e para o museu.
C: – Excelente, fico muito feliz! Posto isto encontramo-nos aqui amanhã uma hora antes da exposição para ver se está tudo conforme o combinado. Tenham um bom dia!
B: – Pronto, estás a ver, A.? Já nos livrámos do gajo. Foi assim tão difícil?
A: – Para a dizer a verdade, foi.
B: – Deixa-te de tretas que esta fantochada deu-me fome. Anda daí, vamos almoçar.
A: – Vai tu à frente, que eu fico aqui, afinal tenho trabalho para fazer.
B: – Acho bem, mas o que foi, está sem apetite?
A: – Também, mas é que com de tanto concordar, colaborar e fazer concessões, não sei se me vou conseguir sentar.
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