terça-feira, 17 de junho de 2014

Quem tramou Edmund Ho?



A revista "Next", de Hong Kong, publicou na semana uma reportagem onde dava conta de uma eventual investigação por Pequim do ex-chefe de Executivo de Macau, Edmund Ho, por envolvimento em casos de corrupção. Segundo aquela publicação, a investigação insere-se num "crackdown" da Comissão Central de Disciplina e Inspecção do Governo Central à corrupção em Macau, e a finalidade é a de saber se Ho tem alguma ligação com políticos corruptos que terão vindo jogar em Macau, com branqueamento de capitais, e até se o próprio foi cúmplice ou lucrou com esses crimes. Fala-se ainda de uma hipotética "quebra de confiança" de Pequim com o ex-CE de Macau devido à proximidade deste com Bo Xilai, o secretário do comité do PC chinês em Chongqing, condenado o ano passado a prisão perpétua por corrupção, e da sua recusa em cooperar com as autoridades na investigação desse caso. Entretanto o jornal Sing Tao Daily, outra publicação da RAEHK próxima de Pequim, vem desmentir que Edmund Ho esteja a ser investigado, e acusa a "Next" de querer criar um sentimento de descontentamento entre a população de Macau com o seu Executivo, de modo a com isso obter dividendos políticos. A revista "Next" é gerida por um consórcio que inclui outras publicações, incluíndo o jornal "Apple Daily", é propriedade de Jimmy Lai, bilionário honconguense próximo de Joseph Lau, o empresário condenado à revelia a cinco de prisão pelos tribunais de Macau na sequência do processo La Scala. Lau afirmou ter sido vítima de uma cilada armada por "uma pessoa muito poderosa em Macau", por se ter recusado a entrar num conluio relacionado com a concessão do terreno, e a revista adianta que essa pessoa poderá ser Edmund Ho. A "Next" especula ainda que a decisão do actual CE Fernando Chui Sai On em aprovar a lei do regime de compensações aos detentores de altos cargos públicos pode ter a ver com as suspeitas da parte de Pequim, e que a insatisfação popular e o grande impacto mediático que estas tiveram tornaram a situação ainda mais problemática. E agora, para nós que estamos de fora, o que pode significar tudo isto?

Temos um provérbio português que diz: "Tantas vezes vai a mosca ao leite que um dia lá fica", e aqui podemos aplicar essa máxima na perfeição. A política, todos sabemos, é uma coisa muito, mas mesmo muito suja, e em regimes musculados, com o poder centralizado e concentrado todo num partido único, como é o caso da China, aquilo que hoje é uma verdade absoluta, amanhã pode mmuito bem ser a maior das mentiras. No jogo da política chinesa, o jogo do "sobe e desce" pode muitas vezes ter a ver com a disposição com que fulano ou outrano se levantaram da cama nesse dia, e praticamente todos têm "pés de barro". A China pode-se muito bem ter livrado do feudalismo monárquico, mas a cultura palaciana da intriga ficou, está bem, e recomenda-se. O próprio Mao Zedong disse um dia "Os heróis de hoje são os vilões de amanhã, e os traidores de ontem os heróis do futuro". Isto diz muito sobre a fragilidade do poder num país como a China, onde alguém por mais poderoso que seja, depois de se abraçar o melhor amigo precisa de verificar se não ficou um punhal nas suas costas. O caso de Edmund Ho, outrora considerado um político exemplar, tanto por Pequim como por outros analistas fora do círculo da China e das regiões administrativas, é um bom exemplo disso. O conceito que ainda vigora de que "Hong Kong tem inveja de Macau" deve-se muito a Ho, que enquanto recebia da parte do Governo Central os mais rasgados elogios, aqui ao lado na RAEHK Tong Chee-Wa só dava dores de cabeça a Pequim. Hoje, e passados cinco anos desde que Chui Sai On sucedeu a Edmund Ho, ninguém acredita que o anterior Chefe do Executivo seja propriamente "um santo", e mesmo os que metiam as mãos no fogo por ele, hoje vão com luvas de amianto. A instisfação é generalizada, e se uma vez escrevi neste blogue, após a saída de Ho que "a História iria julgar o seu desempenho", parece que a "História" chegou mais cedo do que seria de esperar - e não deixa Edmund Ho numa boa luz.

Edmund Ho foi, ou era em 1999, o homem certo no lugar certo. Filho de Ho Yin, líder da comunidade chinesa durante o período da segunda metade do sec. XX até à sua morte em 1983, rapaz com eeducação esmerada, obtida no Canadá e com estágio na India como contabilista, Edmund Ho afigurou-se desde como o possível primeiro Chefe do Executivo após a entrega do território à China após 1999, e dois ou três anos antes do "handover", poucos duvidavam que seria ele a assumir esse cargo. Ninguém sonhava que alguém com um currículo e uma experiência destas, e mais, uma fortuna feita graças aos negócios de família, pudesse aproveitar-se do seu cargo para enriquecer ainda mais. Pois é, mas a realidade é outra, é dura, e caíu em cheio em cima da loiça do lirismo - as coisas são como são. O primeiro mandato não só correspondeu às expectativas como ainda fortaleceu a posição de Ho como insbustituível; a forma como lidou com a crise da SARS, a mediação entre os interesses do primeiro sistema e os direitos garantidos pelo segundo, e sobretudo a forma como geriu a mudança de poderes, mantendo os "status quo" essenciais para o cumprimento das liberdades e garantias contempladas na Lei Básica deixaram-no nos píncaros da popularidade. A sua proximidade com a população, o trato fácil, o contacto com as comunidades, nomeadamente a portuguesa, foram dignas de um político de cinco estrelas. Quem não esquece o afecto (aparentemente genuíno) que Ho tinha pela comunidade portuguesa, fica com pena de o ver metido nesta "água a escaldar". O primeiro mandato foi tão bem conseguido que se chegou mesmo a falar de uma eventual alteração da Lei Básica de modo a permitir um terceiro, uma vez que o segundo parecia mais que certo. O problema foi depois, após a liberalização do jogo, que trouxe às RAEMs as concessionárias de jogo de Las Vegas, e foi aqui que o Diabo propôs aos pecadores a compra das suas almas, e estes, ingénuos, aceitaram a transacção.

A liberalização do jogo foi, no papel, uma jogada de mestre por parte do I Executivo da RAEM. Mas ficou-se por isso: pelo papel. Idealizada e planificada durante o primeiro mandato de Ho, e concretizada no início do segundo, a liberalização trouxe para a RAEM as concessionárias norte-americanas, que se implataram no COTAI, e com elas postos de trabalho, investimento, diversidade no sector do entretenimento (que se ficou mais pelas boas intenções) e dinheiro, muito dinheiro - e onde há dinheiro, há vícios. Tudo começou a correr mal após a detenção de Ao Man Long, cujas actividades ilícitas teriam começada aindo durante o I Executivo, sendo-lhe dado então o benefício da dúvida. Mas nem todos acreditavam que Ao Man Long agiu sozinho, ou por iniciativa própria, e a desconfiança transbordou a 1 de Maio de 2007, com a maior e mais violenta manifestação do Dia do Trabalhador desde a criacção da RAEM - e desde sempre, uma vez que o Executivo foi apanhado completamente desprevenido. Não se tratava aqui de protestar contra a ocupação do território por uma potência estrangeira, mas sim de gente de Macau descontente com os pressupostos de "Macau governado pelas suas gentes". Eram "as gentes" desgovernadas contra "as gentes" que as governava - Pequim não ia gostar. Edmundo Ho fez então uma fuga para a frente, e no ano seguinte deu início à política de distribuição dos famosos "cheques", uma medida curta, uma mera anestesia, e questiono-me se o ex-CE faria o mesmo se lhe faltassem vários anos de mandato e não apenas um. O que fez foi simplesmete "passar a batata quente" para o senhor que se seguiu.

E quem se seguiu foi Chui Sai On, próximo de Edmund Ho, o que vale por dizer que apenas se mudaram as moscas. Desde o início que se especula que a "mão invisível" de Edmund Ho ainda controla tudo o que se passa em Macau, e essa ideia tem ganho cada vez mais força, e se há quem olhe e fora e pense que isso até não seria assim tão mau, para quem está por dentro, para quem vive a Macau, tem sido um filme de terror. Ao contrário do seu antecessor, Chui Sai On não tem o tacto para resolver os problemas logo que eles surjem, não apresenta soluções nem planos para o futuro, nem é capaz sequer de prometer ou "mentir" um pouquinho, como se espera de um político. Chui mostra apenas que depois dele e da saída da nomenclatura que tem governado Macau desde 1999, é o deserto, ficamos entregues à sorte - ou aos desígnios de Pequim - e eles já têm os bolsos demasiado cheios para se preocuparem com o que seja. Edmund Ho passou o testemunho a alguém que não só não se soube desenrascar sozinho como ainda destapou o guisado que andou dez anos a ser cozinhado pelo seu antecessor. Foi como passar a alfaiataria a alguém que não sabe sequer coser um botão. Agora que é um facto consomado que ninguém mais acredita que a classe de dirigentes que tomou as rédeas da RAEM durante os primieiros 15 anos fê-lo desinteressadamente e em nome da população, como afirmaram vezes sem conta, ficamos a fazer figas que a corda não parta do lado mais fraco: o da população. Gostamos de usufruír das garantias inerentes ao segundo sistema, e não gostariamos de ver o nó apertado apenas porque alguém as utilizou em proveito próprio. Ficamos então a fazer figas para que a revista "Next" esteja enganada, ou a fazer chincana política em nome dos "inimigos do povo" (nem acredito que acabei de escrever isto), e que no fim de contas no pasa nada, e que Edmund Ho se vai manter lá naquele gabinete onde o Partido o enfiou para poder ficar de olho nele. E acima de tudo somos gente de bem, e não queremos ver ninguém na prisão.


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