quarta-feira, 18 de junho de 2014

Livro branco, futuro negro?



Pequim prepara-se para criar um Livro Branco sobre Macau, à medida do que já tinha feito em Hong Kong na semana passada, adiantou o South China Morning Post. No caso da RAEHK o domínio específico que este documento aborda tem a ver sobretudo com os limites do segundo sistema, enquanto em Macau se especula que poderá ter algo a ver com as recentes manifestações contra o diploma que previa as compensações aos titulares de altos cargos públicos, não se especificando se o alvo são os dirigentes da RAEM ou os manifistantes. Os mais cépticos consideram que a China estará a pensar em ter um papel mais interventivo na política das políticas administrativas especiais, e os profetas da desgraça apontam para uma eventual intervenção de Pequim em situações que coloquem em causa a hegemonia do partido único no país, nem que para isso seja necessário recorrer à força. Mais uma vez se extremam as opiniões, e mais uma vez se prova que existem diferenças de mentalidade entre os chineses do continente e os seus compatriotas das RAE - e só isso já é motivo que chegue e sobre para a existência e manutenção do tal segundo sistema.

Olhemos primeiro para o caso de Hong Kong. É óbvio, e nem passa pela cabeça de ninguém que o Chefe do Executivo da RAEHK seja alguém que tenha a aprovação do Governo Central. Sei que isto é uma frase feita, mas o segundo sistema deriva do primeiro, e sem o primeiro não existe segundo. Com uma eventual queda do primeiro sistema, pelo menos no estado em que o temos actualmente, o segundo cairia com ele. Sabemos que é chato ouvir de Pequim que a liberdade tem limites, mas por vezes é preciso olhar para como se usa essa liberdade. O sector pró-democrata em Hong Kong, que é ao mesmo tempo assumidamente anti-Pequim, estica vezes sem conta os limites que o segundo sistema lhe permitem; eu até estaria disposto a nutrir alguma simpatia caso esta oposição fosse feita na base do debate democrático, mas é normalmente através do vandalismo e da arruaça que estes grupos normalmente se tentam fazer ouvir. Não é com insultos ou a atirar bananas ao Chefe do Executivo, como já chegou a acontecer, que se dialoga. Leong Kam Hung, o famoso "long-hair", está a cumprir actualmente quatro meses de prisão por crimes contra a ordem pública, e não por activismo político. Portanto o que querem os democratas em Hong Kong? Ir a Pequim atirar fruta ao preseidente chinês? Declarar unilateralmente a independência total da ex-colónia britânica?

Se do outro lado do Rio das Pérolas se peca por excesso, em Macau peca-se por falta. Nunca existiram partidos políticos, debate político ou cultura política - com o risco de me estar a repetir, não existe política. Mesmo as associações com algum peso acabam eventualmente por ser absorvidas pelo Executivo, desde que este lhes dê o que eles querem, e os pequenos grupos ficam a falar sozinhos. Aliás o Executivo, em parceria com os seus "camaradas" que compõem a maioria da Assembleia Legislativa tem sido tão inflexível quanto a tantos aspectos que por vezes cai no ridículo. Qualquer coisa que possa remotamente beliscar, directa ou inderectamente os interesses da nomenclatura é imediatamente chumbado, ou simplesmente ignorado. Não entendo como é que uma Lei que proteja os animais da tortura e da barbárie custa tanto a sair. Se calhar temem que os cães mordam os donos e ainda por cima vão apresentar queixa por maus tratos. E perdoem-me este paralelo que vou agora estabelecer, mas mais sério: deve ser pela mesma razão que não se torna a violência doméstica um crime público. Em conclusão, não se mexe uma palha. Há pessoas com quem falo sobre qualquer produto, serviço ou comodidade que não existe em Macau, e ficam estarrecidas ou incrédulas. Por aqui desde que hajam telemóveis e cheques uma vez por ano, tudo bem. Mas felizmente que se começa a ganhar alguma consciência de que não está nada bem, longe disso.

Durante anos a única associação que não converge com os interesses do Executivo e que mais se assemelha a um partido político é o Novo Macau Democrático (NMD), uma versão "redux" dos seus homólogos de Hong Kong. Fundada em 1992, revelou-se sempre anti-poder, e como só lhes restavam sete anos para "pisar os calos" à Administração Portuguesa, foi durante o período após a criação da RAEM que começaram a ganhar mais visibilidade. Nos últimos tempos, com a crescente insatisfação, gerada sobretudo pela inflação e a especulação imobiliária, têm aparecido novos grupos com ligação umbilical ao NMD, grupos de gente jovem, um mais próximos do original, outros mais radicais. O mais importante, a meu ver, é que são formados sobretudo por gente jovem, com educação superior, e convicções mais ou menos firmadas. O crescimento desta consciência, sobretudo por parte da juventude, é um mau sinal para o Governo Central, que não vai olhar com bons olhos para o recrudescimento de focos de contestação, especialmente quando em Setembro do ano passado as eleições para a AL lhes correram tão bem, com o "pro-establishment" a marcar pontos os sectores pró-democráticos a sofrerem uma derrota pesada. Não me arrisco a dizer que se as eleições fossem hoje os resultados seriam outros, mas o problema é mesmo esse. E o que querem os democratas? Eleições directas, sufrágio universal para todos os lugares da AL e para o Chefe do Executivo. E é aí que reside o grande problema: porque vão eles querer algo que sabem à partida que lhes pode correr mal, e "virar-se o feitiço contra o feiticeiro"?

Para tentar perceber isto é preciso reportar-me a dois parágrafos acima: "não existe debate político ou cultura política em Macau". Começar a dotar as pessoas de consciência política do nada não é uma tarefa que se leve a cabo em um ou dois anos; nem em uma duas gerações, sequer. Lançar as bases para que tal aconteça no futuro, tudo bem, mas não me parece que vamos a tempo de mudar alguma coisa durante o tempo que nos resta de segundo sistema, que como se sabe ultrapassa o seu prazo de validade em 2049, daqui a trinta e poucos anos. Não quero dizer com isto que não concordo com o sufrágio universal, mas...em Macau, com os eleitores que temos? Como se vai ensinar a gente que se vende por 200 ou 300 patacas, ou até por uma jantarada ou um pacote com um lanchinho, que o seu voto é importante para mudar o estado de coisas? Vão logo perguntar "sim senhor tem razão, mas já é hora do almoço e conversa não me enche a barriga". Se isto é passar um atestado de incompetência ao eleitorado em Macau, se for assim que quiserem entender, que seja, mas olhando para este panorama, não é bom nem se recomenda que o Chefe do Executivo, por exemplo, seja eleito pelo método de um cidadão, um voto. Isto não impede que se mudem as coisas, mas não vai ser a eleger outro Executivo que se resolve a inércia em que o actual deixou Macau mergulhado. Venceria o candidato que comprasse mais votos, que tivesse mais dinheiro, e esse tipo de pessoa não é normalmente um tipo que se importe com problemas sociais ou quaisquer outros que não lhe digam directamente respeito. Seria saltar da frigideira para dentro do fogo.

Não acredito que Pequim, com esta ideia do Livro Branco, a confirmar-se, queira estar a passar sinal de que quem manda são eles, e que o elevado grau de autonomia expresso nas constituições das RAE é um mero pró-forma. Poderá apenas ser mais uma clarificação quanto a um ou dois particulares, nomeadamente quanto ao facto de não ser viável optar por um caminho que possa levar à cisão política e ideológica entre o primeiro e segundo sistema. É claro que ao Governo Central não agrada a hipótese de que no próprio continente se venha a saber que aqui em baixo se anda a votar - o que já deixa os chineses meio baralhados - e que ainda por cima em forças políticas divergentes da ideologia do partido único. Isto sabíamos muito bem desde o início, e não é surpresa para ninguém: Macau e Hong Kong mantêm o "status quo" em termos de liberdades que na China não são praticadas, mas a soberania é para todos os efeitos exercida por Pequim. Pensar na democratização do sistema "no matter what", sem ponderar que efeitos poderá ter isso a médio prazo é perigoso. Temos que saber o que é bom e o que é mau para nós, especialmente atendendo ao facto que um dia se dará a reunificação completa, acrescentando a isso o facto de que ninguém sabe como estará o primeiro sistema daqui a 30 anos. Afirmar isto não é nenhuma enormidade, e no fundo a mensagem que o Governo Central quer passar acenando com este livro branco é a seguinte: encostem-se e gozem a viagem. É que tempos acenou-se com um livro vermelho, e esse que não queremos, garantidamente.

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