Ter uma irmã uma companhia real ou fantasia
Alguém como eu e tão diferente como quem rasga um véu
Ser como ela e por dentro quente
Ser dois corpos alguém ausente
Ter que ser velho e como um bebé sonhar dormir de pé
GNR, (Um chamado) Desejo Eléctrico
Faz hoje precisamente 29 anos que me aconteceu algo de inédito: uma irmã. Não se pode dizer que "ganhei uma irmã", pois não concorri a nenhuma, nem comprei a rifa. Muito menos que "tive uma irmã", ou que "nasceu-me uma irmã", pois não fiz nada por isso. Não pedi uma irmã, não encomendei uma irmã, enfim, "aconteceu-me" um irmã. Tive uma irmã anexada à minha ainda curta existência.
Ter uma irmã pode acontecer a qualquer um. Basta ter os pais vivos e na plenitude das suas capacidades reprodutivas, ou pelo menos um deles - foi o que se passou com esta minha irmã, que é apenas do lado paterno. Já tinha um irmão, portanto eu próprio já era o irmão de alguém, mas...uma irmã? Faltava-me essa na minha colecção.
Esta irmã resolveu acontecer no dia 4 de Dezembro do ano da graça de 1984, em Lisboa, Portugal. Poucos dias antes um grupo de artistas tinha gravado nos estúdios de Notting Hill, em Londres, o single "Do They Know It's Christmas", cujos fundos revertiam para as vítimas da grande fome na Etiópia de 1983/85. Não se pode dizer que a irmã que acabava de chegar teve sorte no país onde calhou nascer, mas podia ser pior. Podia ter sido na Etiópia.
A irmã chegou pouco antes de eu completar 10 anos. Não sei se alguém passou por isto, mas ter uma irmã dez anos mais nova tem muito que se lhe diga, especialmente nos anos que se seguem ao seu nascimento. Estamos nós ali a lutar contra os dramas existências próprios da adolescência (para não falar das borbulhas e do resto), e está ali uma miniatura de nós a gozar o niilismo da infância, um tempo de que não nos lembramos mais. A exibicionista.
Ainda me lembro bem das manias e das birras. Tinha ela apenas dois anos e ouvia repetidamente o primeiro disco dos Ministars. Quando digo "repetidamente" quero dizer que terminava o lado A e virava para o lado B, depois de novo para o lado A, e por aí fora, todo o santo dia, durante dias e dias, meses e meses. Talvez um dia a pedopsiquiatria consiga explicar esta tendência das crianças em idade pré-escolar para o minimalismo repetitivo. Eu e o meu irmão chegámos a esconder o disco, mas para ela foi como se tivessemos escondido o ópio a um opiómano.
Graças à minha irmã vi os filmes "Mary Poppins" e "Sound of Music" dezenas de vezes. Apanhei uma overdose de Julie Andrews. Quando lhe perguntava se queria ver outro filme, dizia-me que queria ver o mesmo outra vez. Eram três ou quatro vezes por dia. Devia ter algo a ver com a percepção infantil do cinema; para cada filme ficar realmente visto, era preciso memorizar todas as cenas, todas as falas, e neste caso, todas as músicas.
Como era irritante aquela mania de soprar as velas nos aniversários de toda a gente, desde os irmãos aos pais, onde calhava. Depois de ter "feito anos" meia dúzia de vezes, insistia em continuar a soprar as velas, até ao ponto que todos ficavam irritados, e ela chorava. Deve ser fascinante para os miúdos tomar consciência de que um sopro apaga uma vela. O pior é que se lhes pomos uma vela acesa noutro dia qualquer estão-se nas tintas. Só conta nos aniversários. Ou há ali um bolo para cuspir em cima e deixar as velas em menos de um terço do tamanho, ou nada feito. É só para chatear.
Quando entrou na escola primária e iniciou a sua alfabetização, voltava para casa todos os dias e imitava a professora. Nunca conheci a sua professora da primária mas assumo que devia ser uma pêga. A maneira como reproduzia os seus gestos, os suspiros, a cara de enfado, as mãos na testa, tudo o que dava a entender que não nasceu para o ensino, para aturar os filhos dos outros. Fosse aquela a minha professora e deixava-lhe uma lagartixa na gaveta da secretária, e um sapo na cadeira.
Cheguei aos 17, e estava naquela idade em que só queria fumar, fechar-me no quarto, fazer poesia maldita, suspirar por amores impossíveis, meditar sobre tudo e sobre nada, sobre o vazio. Ela e as amiguinhas da mesma idade iam lá para casa brincar com as bonecas, às casinhas e às mamãs. Como é que se explica que a temática das brincadeiras das meninas de sete anos seja o trabalho que elas dão aos outros? A pior parte para um jovem adulto "dark" como eu era aturar o infantário que se montava lá em casa.
Mas será que era tudo assim tão mau, que seja no dia dos seus anos que faço esta lavagem de roupa suja. Nada disso. Eu é que sou um chato. Temos tantas memórias giras que era preciso dedicar um blogue inteiro a elas, e não apenas um simples artigo. Nunca me vou esquecer de quando era pequenita, apenas com meses de idade, e eu a embalava na alcofa ao som da "Canção da Manhã" do Rão Kyao. Ou de como ria à gargalhada quando a mergulhávamos na água tépida do banho, e exibia a boca desdentada. E daquela vez quando começou a juntar as primeiras frases e durante um almoço tentava-nos explicar de como gostava de um tal "coxo", só para percebermos mais tarde de que falava de "choco", mais precisamente chocos com tinta?
Foi com ela que fiz o estágio para pai, que aprendi a trocar fraldas, a pô-la a arrotar e a dormir, a aturar as suas birras. O primeiro cheirinho a bebé de que me lembro foi o dela. Foi especial o dia em que eu e o meu irmão a ensinámos a andar, sentados no chão e passando-a de um para o outro. Tive pena de não ter estado do seu lado, durante a mesma fase da vida em que ela esteve do meu, mas de um outro prisma, no papel da irmã "caçula". Como diz a canção, "10 anos é muito tempo", então que dizer de vinte. Se calhar não precisou de mim para nada, a magana. Se por acaso pensa que lhe podia ser útil, então peço desculpa pela ausência. Mil perdões.
Parabéns, Ana Sofia, e até um dia destes.
Luis (usando máscara de gato grande)
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