segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Pressa: o outro lado


Na quarta-feira falei do vírus da pressa, um mal que afecta milhões de pessoas em todo o mundo, quase todas nos grandes centros urbanos. Como em qualquer vírus, pelo menos os mais mortíferos, assustadores, fáceis de contrair e que nos infectam através do contacto humano, existe um paciente zero, bem como um período de incubação variável, e ainda portadores do vírus sem que este se manifeste.

Desconhece-se quem foi o paciente zero do vírus do pressa. Pena, pois podiamos tê-lo aberto ao meio e econtrar uma forma de produzir os anti-corpos, e dessa forma a vacia anti-pressa constava no boletim de vacinas das crianças. Existem contudo teorias sobre o aparecimento da pressa que reúnem o consenso da comunidade científica, e dessas há duas que gostaria de destacar, uma intemporal, e outra relativamente recente: os horários e os transportes.

Os horários foram a forma que algum sádico encontrou para “organizar” a sociedade, de modo a que ela “funcione”, e que todos possam contar com a distribuição de bens e a prestação de serviços de forma atempada. O quê? Isso é só paleio. O que acabaram por fazer foi criar condições para a propagação da pressa. Os horários estão para a pressa como a água estagnada está para o vírus da dengue. Quem me diz que nove da manhã são mesmo nove da manhã? Que força cósmica torna as nove da manhã em ponto diferentes das nove e meia, ou até das dez horas? Quem é que estabeleceu que entre o meio dia e tal e as duas é hora de almoço? E se eu não estiver com fome?

A ditadura dos horários e das horas facilitam a identificação de um infectado com pressa. Quando encontramos na rua um tipo aos saltinhos e a olhar para o relógio com cara de quem se está quase a borrar pelas pernas abaixo, e faltam poucos minutos para as nove da manhã, sabemos que está quase atrasado, e por isso tem pressa. Coitado. Se existisse um dia mundial da pressa, como existe o dia mundial da SIDA ou da diabetes, davamos-lhe um abraço. Chegando ao escritório às 9:02, tem o chefe à espera a olhar para o relógio com cara de poucos amigos, a abanar a cabeça, e quando o vê diz: “Ó Fonseca, desculpe lá mas assim não pode ser. A entrada é às nove horas”. O desgraçado, ainda a deitar os bofes da boca, tenta justificar-se o melhor que pode, fazendo pausas para respirar: “Desculpa, dr. Meireles...ah, ah...o metro...ah, ah...atrasou-se...ah, ah...os miúdos estavam com febre...ah, ah”. O chefe, esse poço de compreensão, dá um indulto ao Fonseca: “Pois, olhe, não quero saber da sua vida. Veja lá se não repete a gracinha”. Isto mesmo que esta seja a primeira vez que o Fonseca se atrasa em anos de serviço para o sacana do Meireles.
Não fosse o Fonseca precisar do emprego para pagar a renda, a letra do carro que só usa aos fins-de-semana porque “não anda a água da torneira e a gasolina está cara”, para comer, enfim, para viver, e dizia das boas ao chefe: “Mil perdões dr. Meireles. Lamento tê-lo feito perder tantos milhões com estes dois minutos de atraso, dr. Meireles”. Um chefe às direitas não ligava ao atraso; aliás, num mundo ideal, o dr. Meireles dizia aos seus funcionários: “Venham à hora que vos apetecer, desde que façam o vosso trabalho. Não me apetece andar atrás de vocês, a não ser que sejam uma gaja boa” – enquanto pisca ao olho à Andreia, a estagiária ruiva do departamento de contabilidade.

Depois os transportes. Com excepção dos países onde funcionam sempre a horas, o que não é o caso de Macau e muito menos de Portugal, os transportes são propagadores da pressa. São os mosquitos da pressa, cascavéis com um dente carregadinho de pressa, a pressa em pessoa que espirra e tosse num compartimento mal arejado cheio de gente, e ainda as beija com a língua. Quando há uma greve do metro, da carris, das CP, do PQP ou de uma Transporra-qualquer dá-se uma epidemia de pressa, milhares levam o carro para o emprego, há pessoas que andam quilómetros a pé, vendem a mãe por um táxi. Mesmo sem o factor da greve, é necessário apanhar o transporte a horas – esta é combinação mais mortífera de todas: os horários e os transportes. Um tipo que chega ao cais e o barco acabou de sair, sendo o próximo apenas uma hora depois, leva às mãos à cabeça, põe-se de joelhos e berra “Não ,nãoooo”, mas não está ali ninguém para o ouvir. Tornou-se um doente terminal da pressa, e prepara-se para entrar em stress. Paz à sua alma.

Num mundo com chefes porreiros que nos deixasse chegar à hora que quisessemos, os transportes não teriam horários. Quando é o próximo autocarro? Daqui a pouco. A que horas sai o próximo comboio para Sintra? Espere e depois logo sabe. Quando é que sai o avião? Quando estiverem cá todos. Na verdade nada teria horários, deixaríamos de ficar escravos das convenções, e a pressa passava à história. Quando é a reunião dos accionistas? Um dia destes. Quando, mesmo? Sei lá, quando lhes apetecer.
- “Filho, onde vais?”
- “Para a escola, tenho aula agora, acho...”
- “Mas são três da manhã”
- “E depois? Não tenho medo do escuro”.

Uma vez que este mundo é uma utopia – há uma maioria de chatos que acha que a anarquia não é solução – existem mesmo horários a cumprir, e a pressa é uma inevitabilidade. A pressa é como a sífilis: existe à séculos e ainda não existe uma cura completamente eficaz. Quando o ideal seria precaver-se da pressa, há pessoas que se expõe ao vírus. Em Macau é comum encontrar casos de pessoas que podiam muito bem evitar a pressa, mas brincam com a saúde, e teimam contraír o vírus. São facilmente identificáveis; são aqueles que para chegar ao emprego às 9 saem de casa às 8:50, e optam por fazer o percurso de carro, que lhe demora 20 minutos, quando a pé ficaria em 10 ou 15. Apanhados no meio de um engarrafamento provocado por outros néscios como ele, buzinam, bufam, dão murros no volante, sacodem a camisola. Acabaram de pegar uma camada de pressa, e quando olham para o relógio percebem que se esqueceram de tomar o comprimido do tempo.
Chegados ao emprego às 9:30, encontram o dr. Meireles, que os encara:
- “Isto é que são horas de chegar? Está meia-hora atrasado”
- “Ah pois é, sabe, acordo às sete e meia, tomo banho e faço a barba, depois faço o pequeno-almoço para mim e para os miúdos, depois abro a porta à empregada, como, e quando chego à garagem, uff...são 8:40 e nem dei por isso”.
- “Ai sim? E já tentou acordar antes às sete?”.
Tem razão, o dr. Meireles. Que grande porra, isto do tempo, que é igual para todos. E depois ainda se admiram que haja tanta pressa.

Sem comentários: