quinta-feira, 5 de junho de 2014

Miss democracia



Esta jovem que vemos na imagem é Kam Sut Leng, professora e activista que deu ontem uma entrevista ao jornal Ponto Final, onde fala de si, conta um pouco da sua história, de como se envolveu nos movimentos cívicos, de que tem sido uma das figuras de proa, e das suas ambições futuras. Uma entrevista que recomendo, especialmente a quem já tinha pelo menos ouvido falar desta professora tornada uma das caras dos movimentos pró-democracia da RAEM.

Há pouco mais de um ano ninguém conhecia Kam Sut Leng, uma recém-licenciada que exercia a profissão de docente na escola chinesa Lou Hao, na zona norte da cidade. No dia 1 de Maio de 2013 fez parte de um grupo de jovens manifestantes que se queixou do "excesso de rigor" das autoridades durante a manifestação do Dia do Trabalhador, de que participava em conjunto com outros jovens, entre os quais Jason Chao, Scott Chiang e Sulu Sou, a ala "dentes de leite" da Associação do Novo Macau Democrático. Na altura destacou-se não só pelo seu "atrevimento", aparecendo na frente do grupo que protestava contra o alegado abuso de autoridade, mas também graças a um certo director de uma escola qualquer, um senhor de idade, que proferiu uma série de comentários infelizes a inoportunos a seu respeito, nomeadamente sobre a sua indumentária, que considerou "indecente". Podem recordar o episódio aqui, nesta entrada de 7 de Maio do ano passado neste blogue. Ou seja, Kam Sut Leng saltou para a ribalta graças a um velhote tarado, que nunca tinha visto uma miúda de saia.

A jovem professora não pediu este tipo de protagonismo, e eu dou-lhe o benefício da dúvida, mas a verdade é que passou a aparecer mais vezes na companhia dos rapazes do Novo Macau, e participou activamente na campanha da terceira lista da associação para as eleições de Setembro de 2013, mas apenas como apoiante, não fazendo parte dos nomes que o cabeça de lista Jason Chao entregou aos SAFP. Apesar do fiasco eleitoral em que redundou a terceira lista do Novo Macau (e hoje tenho a certeza que muito boa gente se arrependeu em ter votado "no outro lado"), Kam Sut Leng manteve-se no activo, participando em várias actividades de cariz de social, e sempre do lado dos grupos pró-democráticos, que em Macau representam a "oposição". Sim, meus amigos que lêem isto deoutra parte do mundo: em Macau ser "democrata" significa ser do contra, e quem se assuma como defensor de valores como a democracia, o sufrágio directo e universal, ou outras liberdades que muitos dão como garantidas em sociedades supostamente desenvolvidas, como Macau se intitula, é considerado subversivo, rebelde, agitador, e do contra, e arrisca-se a ter a vida muito complicada.

E foi o que aconteceu com Kam Sut Leng, que numa reunião com o director da escola onde lecionava, ouviu deste que "não lhe iriam renovar o contrato". Porquê? O director começou por justificar a decisão com "a cor do cabelo da docente" (ridículo), e os seus "métodos de ensino", mas quando ela lhe perguntou se isto tinha alguma coisa a ver com a sua recente visibilidade em prol do activismo, este respondeu-lhe que "sim, também". Claro que este "também" está ali a mais - Kam Sut Leng perdeu o emprego apenas porque resolveu dar a cara por um movimento considerado incómodo para o sistema em Macau, e como é da praxe nestas situações, atacaram onde mais dói: no bolso. Escusado será dizer que foi e será difícil a Kam Sut Leng encontrar trabalho como professora, uma vez que ficou rotulada de "problemática", e mesmo que enfrente a escola, quer judicialmente ou de qualquer outra forma, estes não terão qualquer pudor em retaliar, e se for necessário arranjam três ou quatro ex-alunos seus que comprovem que ela "ensinava mal", e lá está a "justa causa" que o freguês encomendou. Seria apenas perder tempo, enfim.

A escola Lou Hao, onde Kam Sut Leng lecionava, e apesar de não querer mencioná-la na entrevista ao Ponto Final é mais ou menos do conhecimento geral que era ali que dava aulas, é uma daquelas escola de pendor acentuadamente patriótico, na linha da escola Hou Kong. Assim como muitas outras instituições de ensino do território, cultiva-se ali um saudável respeito pelas instituições, incute-se a obediência aos quadros dirigentes, e claro, o sal que tempera esta salada é o amor à Pátria, daí que não seja bem visto que nos quadros docentes exista alguém que possa ser considerado um "agitador", ou noutras palavras, que ensine os alunos a questionar certas certezas absolutas ou a pensar pela própria cabeça. O objectivo destas escolas, que funcionam praticamente à custa de fundos públicos, apesar de se dizerem "privadas", é de produzir as futuras gerações de conformados, de gente cegamente obediente aos princípios que lhes são transmitidos, com un nível de cultura geral e um raciocínio medíocres, pois nunca lhes foi ensinado a raciocinar, ou a fazer uma análise crítica, e mesmo que mais tarde estudem nos Estados Unidos, Canadá, Austrália ou noutro sistema de ensino considerado mais flexível, o conformismo está tão enraízado, que no regresso a Macau se esquecerão de tudo o que aprenderam lá fora nesse particular - senão ficam mesmo por lá, como já tem acontecido várias vezes.

Mas porquê silenciar os professores, intimidá-los, condicionar a sua participação no debate dentro da sociedade? Não são os professores intelectuais, supostamente um dos grupos mais esclarecidos da pirâmide social? É quase garantido que temos muito mais a ganhar com a presença dos professores no debate político - se um dia tivermos um - do que com os operários e afins, que normalmente só dizem disparates, enveredando por um discurso muitas vezes xenófobo, feito de tijolo e picareta. O poder instituído aplaude sempre que há manifestações de operários, "croupiers" e outros sectores cuja ambição é apenas uma: dinheiro, e sendo dinheiro algo que não falta por Macau, fica fácil calá-los com meia dúzia de amendoins. Já quando as vozes se dirigem no sentido da abertura democrática e da reforma do próprio sistema, alto e pára o baile, tentem saber quem são esses gajos e tornem-nos inempregáveis, para eles saberem o que é bom. Metam-nos na lista negra, transmitam a imagem de que têm como fim o lucro, e estão apenas a usar a retórica dos princípios da democracia e derivados para "enganar" o povo, desacreditem-nos, façam crer que eles estão a atrapalhar, são um obstáculo ao ideal sacrossanto de "harmonia", e se for preciso façam-nos passar por maluquinhos. E o mais importante de tudo: deixem bem claro que quem ousar juntar-se a eles, vai ter muitas portas a fecharem-se na sua cara.

Só que nem a escola Lou Hao, nem os "patriotas" e outros gatos-pardos do sistema previram o aparecimento de Kam Sut Leng; julgaram estar a pisar um sapo, e criaram um dinossauro. Tivessem ignorado a sua actividade extra-profissional, e quem sabe se ela acabava a falar sozinha, chamando a atenção apenas pelo seu guarda-roupa "sexy", e mais nada. Ao deixar a docente explicar as razões da sua saída, deram um tiro no pé, e mesmo que a maioria da opinião pública ignore por completo o caso e não faça a mínima ideia de quem ela é, certamente que estarão arrependidos, e que gostariam mais de a ter por perto do que do outro lado, a atirar pedras por cima do muro. Sobretudo transmitem a ideia de que as escolas em Macau são uma linha de produção de autómatos, de gente programada para ser obediente e assertiva, que evita dar a sua opinião ou abordar temas fracturantes. Que vote do lado certo, naqueles que empregaram ou empregam ainda os pais, que lhes põem o pão na mesa, e que eventualmente farão com eles o mesmo. Só que cometeram um erro: com aquilo que pagam, que nem é grande coisa, como vão estes jovens a que proibiram escutar a professora activista comprar uma casa? Pagar as contas? Como é que explica tal farsa?

Na entrevista ao Ponto Final, Kam Sut Leng diz preferir "estar na rectaguarda", e que "não pensa em ser deputada". Oh oh, alto lá, nem ela pensa, nem eu penso. Isto agora andam a contratar deputados como quem contrata pessoal para os novos casinos ou quê? Mesmo que essa seja a sua ambição - e pode ser que seja, um dia, porque não? - está muito longe desse objectivo. Eu não votaria nela, por exemplo, porque sei pouco dela. Sei um pouco sobre aquilo que a deixa insatisfeita, tenho uma pequena noção do que a move contra o sistema, mas desconheço por completo as suas ideias, as suas alternativas, qual é o plano desta jovem, deste peso-pluma da escola de boxe da pró-democracia. Mas prometo ficar atento, como tenho estado desde o dia em que ousou aparecer vestida "na moda", num certo dia primeiro de Maio.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Assertivo" esta mal usado no artigo, pois é antónimo de tudo o que foi dito.
Abc e continuaçoes de boas "opinadelas" como até hoje.