It's coming through a hole in the air,
from those nights in Tiananmen Square.
It's coming from the feel
that this ain't exactly real,
or it's real, but it ain't exactly there.
Leonard Cohen, "Democracy"
Macau, 4 de Junho de 2014. Um dia histórico para a RAEM. Dezanove anos depois, e pela primeira vez desde a transferência de soberania, o Largo do Senado, a principal praça do território, enchia-se para assinalar mais um aniversário do massacre da Praça Tiananmen, o 25º - bodas de prata, prata manchada de sangue. Estariam ali mais de 2000 pessoas, e esta é uma estimativa conservadora. Eu diria que estavam duas mil sentadas no chão, entre o palco improvisado ao lado dos correio até ao McDonald's ao lado da loja de cosméticos da Sasa. Isto sem contar com as que circulavam nas imediações, debaixo dos arcos, ora do lado Santa Casa da Misericórdia, ora do lado do Watson's. O tempo estava abafado, húmido, mais que o habitual e quente. A certo ponto sentia-se que o calor era o das almas caídas naquele fatídico dia de quatro de Junho de 1989, felizes por finalmente se juntarem ao seu martírio e ao pranto das suas famílias os irmãos de Macau.
Uma tarjeta onde se lia: "os mártires da democracia nunca serão esquecidos; o movimento de 4/6 é demasiado grande para ser esquecido" - numa tradução livre, já sei que literalmente é qualquer coisa como "nunca apodrecerá", mas tentemos fazer algum sentido. Um pouco pelo perímetro de onde se realizava a vigília, voluntários entregavam livros onde se contava resumidamente o que aconteceu há vinte e cinco anos em Pequim, onde se viam imagens, muitas imagens, e fortes. No entanto não se apelava à revolta, não se encorajava a sublevação, não haviam efígides de líderes chineses, ou caricaturas, nem se gritavam "slogans" a pedir a cabeça de ninguém, como nos protestos originais há vinte e cinco anos nesta mesma Macau, onde a raiva e a indignação tomaram conta da população. Velas, tudo o que havia era velas. E uma tarjeta onde se lia "nunca vos esqueceremos" e "são os maiores". É só isto. Tinham medo do quê, exactamente?
Lee Kin Yun foi um dos primeiros oradores. O conhecido agitador de massas, do campo radical da pró-democracia - não fosse o nome da lista com que concorreu às três últimas eleições para a AL chamada precisamente "Activismo para a Democracia". Na companhia do seu inseparável de luta Ng Sek Io, Lee teve desta vez uma plateia maior que o habitual. Eu diria mais: hoje falou para mais gente do que toda a gente para quem falou na vida toda junta. E o que fez ele? Activismo, que é o que ele sabe fazer, mas sempre com contenção, com o propósito de ser escutado, de ser ouvir o que disse. E quem se riu dele, desta vez? Nas palavras do "sargentão" Luiz Filipe Scolari, "e o maluco sou eu?"
Au Kam San, na imagem, foi juntamente com Ng Kuok Cheong um dos organizadores do evento. Foi ele o mestre de cerimónias, que deu as boas vindas aos milhares que marcaram presença no Largo do Senado, todo ele cheio de gente, de Macau e não só, gente nova, gente velha, gente que veio recordar aquele fatídico dia na Praça da Paz Celestial, que de celestial não teve nada, e de paz muito menos. Foi em paz, com todos sentados e atentos aos discursos de Au, Ng e os restantes elementos dos principais grupos pró-democráticos que se passou o serão, repito novamente, sem conflitos, sem quezílias, sem elementos provocadores, sem palavras de ordem que aliciassem à revolta ou à desobediência civil. O que Au Kam San quis fazer foi receber todos, agradecer, e relemembrar que apesar do significado político que se tira inevitavelmente desta vigília, eram os mortos que iam ser recordados e homenageados, e a causa que os moveu e pela qual pagaram com a vida teria que ser evocada: a democracia, ou no limite, as reformas democráticas e a abertura do regime que os estudantes na Praça Tiananmen pediam, e a quem o regime respondeu com violência.
Depois de terminar a sua intervenção, Au Kam San perguntava "quem queria falar", e o microfone passava de mão em mão. Mesmo ali no meio da Praça um jovem, mais jovem que a repressão de 4 de Junho em Pequim, interrogava-se do porquê de só este ano ser possível realizar esta festa, esta singela homenagem aos caídos em nome de um ideal, não interessa "quem estava por trás". Quem quer saber se eram "forças contra-revolucionárias", ou se o intuito era de "derrubar o regime", sei lá? Quem sabe? O sangue derramado foi na maioria o dos inocentes, o dos civis, o dos estuudantes. O jovem censurou a associação ou associações que realizava ali todos os anos um espectáculo com o pretexto de "comemorar o Dia Mundial da Criança". - "Como é possível que alguém seja capaz de fazer uma coisa destas?", perguntava. Sim, como é possível usar um dia tão inocente como o Dia da Criança para um propósito tão cruel e tão reles? E as próprias crianças? Esqueçam lá isso. Hoje é um novo dia. Deixemos os pecados alheios para a consumição dos seus autores. Olhemos em frente, sem nunca esquecer o passado, este passado. O que se renova aqui é a memória de Tiananmen, sempre nova, uma referência para quem vem a seguir de nós. É a noção básica da própria História: perceber o passado para entender o presente e visionar o futuro.
Nunca o Largo do Senado esteve tão lindo. Era um cenário comovente, arrebatador. Mesmo os outros transeuntes, na maoiria os trabalhadores não-residentes que ocupam o centro da cidade àquela hora, não conseguiam ficar indiferentes. Intrometiam-se na multidão, aceitavam das mãos dos voluntários o livro, mesmo não entendendo uma palavra - há imagens que dizem mais que mil pavras. Sorriam, outros mais resistentes demonstravam alguma estranheza, mas acabavam por sorrir também, e aplaudiam, contagiados pelo entusiasmo dos restantes. Foi uma festa. Linda, linda, uma festa como não se via em Macau há anos.
O momento em que a multidão entoa a versão chinesa de "Do You Hear the People Sing", do musical "Les Miserables", que se tornou um hino não oficial do movimento pró-democracia. Ao mesmo tempo acendiam-se velas, centenas de velas. Mais de um milhar, todas juntas. A tal Paz Celestial era transportada de Pequim para o Largo do Senado, com 25 anos de atraso. Cantaram, acompanhando a letra da canção que aparecia na tela. Uns bem, outros mal, isso pouco importa - cantavam juntos, e juntos estavam, de mãos dadas, em perfeita sintonia com as almas que lhes cobravam em suor aquilo que perderam em sangue, em Tiananmen.
Já passavam das dez horas quando foi transmitida no equipamento sonoro uma mensagem de Wang Dan, um dos líderes estudantis do movimento do 4 de Junho em Tiananmen e considerado "persona non grata" pelo regime de Pequim, e seguiu-se outro dos momentos altos da noite: a intervenção de Sulu Sou, o co-líder da Associação Consciência Macau, que juntamente com Jason Chao pressionou no sentido de organizar a vigília no centro do Largo do Senado, à revelia do tal espectáculo inominável relativo ao Dia da Criança. O IACM deu o braço a torcer, o espectáculo foi cancelado, houve bom senso, e tivemos a vigília com a dimensão que ela merece. Sulu Sou pegou no microfone, ostentando a "t-shirt" branca onde um longo número quatro a cor preta e um número seis a fazer de chama formavam a tocha da deusa da Democracia, e onde se lia em chinês e inglês: "revejam a posição sobre o 4 de Junho" e "lutem até ao fim". Depois dirigiu-se a todos, às muitas centeanas, aos mais de dois milhares, e de peito cheio produziu um discurso inflamado e cheio de emoção, onde apelou a toda a população de Macau, independente da sua origem, que peçam democracia. Alguma democracia, um pouco que seja, que não fiquem sentados à espera que as reformas democráticas cheguem primeiro à China e Macau vá depois "à boleia". Falou como um verdadeiro político, exemplar, quer no conteúdo, que na entrega, e numa cidade onde não se faz política, é uma flor que brota do entulho. E sabem onde estava Sulu Sou quando o exército esmagou o movimento estudantil da Praça Tiananmen em 4 de Junho de 1989? Não estava. Ainda não era nascido. E esta?
E foi assim a festa, pá, como não se via há 19 anos em Macau. O sentimento por Tiananmen voltou, dirão uns, nunca partiu, defendem outros. Esteve oprimido, e agora é livre. Ninguém esteve ali a para derrubar nenhum regime, não se fez chincana política, não se apelou ao voto em nenhuma lista, associação ao partido. Recordaram-se as vítimas, primeiro. E a causa pela qual perderam a vida, depois. O regime continua a enterrar a cabeça na areia, inexplicavalmente, e porquê? Não me cabe a mim, que sou estrangeiro, encontrar a saída deste labirinto, ou resolver este "puzzle" que cabe ao povo chinês resolver, mas vai faltando um motivo forte para se ignorar o que aconteceu em Tiananmen, ou banalizar os eventos da Primavera de 1989 em Pequim como sendo "um movimento contra-revolucionário". E que tal insistir? Encontramo-nos para o ano, no mesmo sítio? Fica combinado.
Sem comentários:
Enviar um comentário