quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

É a Toponímia quem mais perde


Os leitores mais atentos estarão certamente recordados do artigo da semana passada referente à toponímia de Macau, assinado pelo jornalista e investigador João Botas nas páginas do Jornal Tribuna de Macau. Na altura apontei algumas imprecisões, e dediquei um "post" ao tema neste blogue. Por cortesia mandei o link para o João, e não obtive qualquer resposta. Não sei se não recebeu a minha mensagem, se o meu "post" lhe passou ao lado, ou se simplesmente me ignorou. Não quero pensar que se trata aqui de arrogância, mas se for esse o caso, é pena, pois este tema da toponímia é deveras interessante, e não devia ser tratado assim "às três pancadas". Não quero andar a aborrecer o autor do artigo, cujo trabalho sobre o passado de Macau, o recente e o distante, é bastante valoroso, e as minhas intenções são as melhores.

O artigo de hoje, por exemplo, é mais uma excelente oportunidade que se perde para dar a conhecer algumas curiosidades interessantes. Não lhe aponto erros, mas talvez algumas omissões, que mesmo não sendo graves, parecem deixar outras histórias por contar. A certo ponto o João fala do facto da Rua Nova d'El Rei se chamar actualmente Rua 5 de Outubro, e da Avenida da Amizade ter sido antigamente Av. Dr. Oliveira Salazar. Tudo bem, um fenómeno que verificámos igualmente em Portugal, com a implantação da República a alterar a os nomes de ruas com ligações à monarquia, e o evento da revolução dos cravos de 1974 ter alterado a toponímia no que toca a nomes ligados ao Estado Novo. E exemplo mais célebre será o da Ponte Salazar, actualmente conhecida por Ponte 25 de Abril. Faltou referir contudo que parte desta antiga Av. Dr. Oliveira Salazar é hoje a Av. Dr. Mário Soares, desde o local no antigo Liceu Infante D. Henrique, actualmente edifício do Banco da China, até à Av. da Praia Grande, perto do Hotel Emperor.

A seguir diz-nos qual é a artéria mais longa, que é a tal Av. da Amizade, a mais curta, a mais larga e a mais estreita. Não questiono nenhum desses dados, mas não estávamos a falar da toponímia? Dos nomes? Só faltou dizer que o ponto mais alto é o Altinho de Ká-Hó. Depois segue-se uma lista de nomes que o autor considera "curiosos", de ruas, travessas, becos e pátios. A propósito das ruas, chamo a atenção para esta passagem: "(...)Ultramar, Peixe Salgado, Bem Casados, Matapau (em chinês “Kat Chai Kai”)…". Sim, em chinês "Kat Chai Kai", e...? E depois? É suposto toda a gente saber o que isto significa? Deixa-se isto assim no ar, e mais nada? Não merecemos uma explicaçãozinha? E o que tem de especial este nome? Vejamos.

Este "kat chai" (桔子) significa "tangerina", mais precisamente a variedade mandarina, cujo arbusto é muito comum oferecer na altura do Ano Novo Chinês. Isto porque "kat" (桔) tem o significado de sorte. Aliás, sorte diz-se também "kat" e a escrita é semelhante: 吉. Este caracter, antecedido do caracter de madeira "mok"(木) forma um outro composto, o tal 桔, que é, portanto, tangerina. O "kat" refere-se ao arbusto, e o "chai" (子) a filho, criança. Portanto o "filho" deste arbusto é a tal tangerina. Isto é muito interessante, mas está longe de ser um dos factos mais interessantes da toponímia de Macau. Seria alguma "private joke" do autor, dirigida a alguém em particular? O mistério adensa-se no Beco do Mistério.

Na realidade a toponímia em português é mais rica em termos de História e de curiosidades do que a chinesa. Os nomes chineses das ruas têm o seu quinhão de interesse, mas os nomes portugueses ganham aos pontos. Este "Matapau", por exemplo, é de origem misteriosa. Mata-pau é uma planta rosácea brasileira, e "matapau" é ainda calão de Moçambique para um mau carpinteiro. Desconheço por completo a origem do nome desta rua. Pode ser um neologismo local, como acontece com duas ruas aqui perto de casa: a Rua do Tarrafeiro e a Rua dos Faitiões. A palavra "tarrafeiro" não existe na língua portuguesa, mas sendo que uma tarrafa é uma espécie de embarcação de pesca, o "tarrafeiro" seria o pescador dessa embarcação. No calão local "tarrafeiro" é também o nome chamado às pessoas rústicas, simples, com feições chinesas e queimadas do sol, como os pescadores. Da mesma forma que uma mulher com essas características é chamada de "tancareira".

Só me resta dizer que me ofereci para apoiar o João Botas no que fosse necessário quanto a este tema. Não porque julgue que sei mais que ele, ou que sou algum tipo de autoridade na matéria, mas porque gostava de ver uma abordagem séria, e como trabalho no Registo Predial, tenho acesso aos nomes dos arruamentos em português e chinês, e tenho junto a mim um grupo de entendidos no assunto. Qualquer investigação requer a utilização do método científico, deixando de lado os egos, e como investigador o João Botas devia saber disto. Para saber os nomes das ruas basta adqurir gratuitamente um livrinho no IACM, que nos diz quais são as ruas de Macau e Ilhas, onde começam e onde terminam. Ou então fazer "download" do Macau Geoguide na página da Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (DSCC), aqui.

A coluna que o João assina no JTM é uma oportunidade de ouro para esmiuçar este tema, e poderia dar dezenas de artigos. Mas quem quer saber que existe uma Rua do Peixe Salgado, um Pátio do Bem-Estar ou um Beco da Boa Morte sem saber porquê? (Já agora existe também uma Escada do Quebra-Costas, sabia, amigo?). Gostava de ter a certeza que esta recusa da minha ajuda por parte do João não se deve ao facto de trabalhar no único jornal em língua portuguesa do território que me considera persona non grata, o que seria perfeitamente patético. Prefiro pensar que se trata de algum mal-entendido, ou de algum desencontro. Desta forma não é ele quem fica a perder, e muito menos eu, que sou um simples amador e um curioso. Quem perde mais é o estudo da toponímia de Macau. E é pena.

1 comentário:

António Manuel Fontes Cambeta disse...

Estimado Amigo,
Gostei das profundas explicações.
Conhecendo eu bem as ruas de Macau o aplado de pé.
Estou passando pela Rua da Prata mas em Macau a do Ouro essa parce nunca ter existido.
Abraço amigo