terça-feira, 10 de junho de 2014

Vergonha é roubar, e não sei quê



Interessante a reportagem de hoje do jornal Ponto Final sobre os jovens "portugueses" nascidos em Macau que não se identificam com Portugal, que não falam português, e que nunca foram a Portugal, ou foram uma vez e não se lembram, e que devem ter dificuldade em pronunciar o próprio nome. São estes os macaenses nascidos a partir dos finais dos anos 80, produto de um desvario dos pais que num acesso inexplicável de "realismo", pensaram que para se ficar em Macau, ou conseguir uma integração completa na nova realidade do território era obrigatório dominar a língua chinesa, quer falada, quer escrita. Este é um conceito pioneiro, coisa sem igual em todo o mundo. Imaginem que ser português e falar a língua portuguesa era uma condição mais que suficiente para conseguir ter um emprego em Portugal. Querias, querias, batatinhas com enguias, eu comprava e tu comias.

Não quero dizer que isto que a aposta foi mal feita, nem desprezar esta aposta dos pais, mas conhecendo a sociedade chinesa como a conheço - e ainda tenho muito que aprender, aparentemente - mesmo que os jovens em questão se excedam no domínio da língua e se sintam como um peixe na água no seio da comunidade que os viu nascer e mudou de bandeira em Dezembro de 1999, serão sempre olhados pelos chineses de Macau, os "oumunyan" como sendo "aqueles". Sabem muito bem do que falo, pois aqui este "aqueles" tem implícito uma carga histórica e cultural imensa, e assim que um chinês nascido em Macau, seja ele de segunda ou terceira geração depare com um destes seus "compátridas", imagina logo como o seu pai, avô, bisavô, padrinho ou etcetera foi em tempos parte da elite que governava Macau, e como a sua família teve a vida muita mais facilitada por esse facto, enquanto eles têm histórias para contar de como os seus ancestrais comeram o pão que o diabo amassou. Não é por culpa de ninguém, entenda-se, é assim que as coisas são, ponto.

É verdade que ninguém prevê o futuro, e não censuro quem tivesse idealizado uma Macau pós-1999 onde a língua portuguesa desaparecesse como num passe de mágica, com um estalar de dedos. Sim, a mesma razão que me levou a ficar em Macau depois da transferência de soberania foi a mesma que levou os pais destes jovens a apostar na sua educação em língua veicular chinesa, e não foram poucas as vezes que escutei nos anos que antecederam o "handover" pais portugueses de Macau, ou macaenses, se quiserem, dizer exactamente isto: "quem não falar chinês não arranja emprego em Macau". E nem valia a pena discutir, pois aqui a mentalidade sempre foi a de aceitar as ordens vindas de cima, e apesar das garantias expressas na Lei Básica, o realismo foi sempre a nota dominante. Aqui tratava-se da China a tomar posse de uma região outrora nas mãos de uma potência ocidental, e onde a maioria da população não falava português, o que para muitos era visto como um empecilho, a incapacidade de comunicar com os quadros superiores sem a ajuda de um tradutor, pelo menos. Não me canso ainda de referir a inércia das autoridades portuguesas que ficaram encarregadas da transição, que nunca afirmaram com convicção que a parte chinesa iria cumprir escrupulosamente o que havia ficado expresso no acordo entre as duas partes. Esta é uma presunção que teimamos em não deixar cair: pensar que somos honestos e bonzinhos, mas os outros, ai ai os outros, o melhor é não meter as mãos no fogo por eles.

O que entendi das palavras dos nossos dirigentes que no dia 19 de Dezembro de 1999 passaram o testemunho para os novos senhorios foi apenas isto: "desenrasquem-se, que nós fizemos a nossa parte". Alguns tiveram a ratice de se fazerem úteis, especialmente os da parte bilingue, que mantendo-se sempre fiéis à antiga administração portuguesa, deram sempre a entender que poderiam servir com igual dedicação os novos senhorios, e mais do que isso, poderiam ter uma função de correspondência na transição entre o passado e o presente. É claro que não se muda do branco para o preto de um dia para o outro, e ficou muito trabalho para fazer. Eu estava cá nesse dia e posso garantir que não andávamos a comer bacalhau e a dançar o corridinho no dia 19, e subitamente a comer peixe salgado e cantar ópera de Pequim no dia 20. Nem uma única vez foi dado a entender por ninguém que no momento em que se passava da bandeira das quinas para a das cinco estrelas iam varrer tudo o que tinha a ver com o passado - claro que houve excepções, mas gente burra há em toda a parte, infelizmente. Desconfiaria se existisse alguma animosidade, ou pressa da parte da população em "livrar-se" dos portugueses para que ficasse tudo à sua maneira, que se sentissem em casa.

Caso os pais destes jovens que nasceram nos anos 90, no período pré-transição, tivessem confiado nos pressupostos da Lei Básico e no princípio de "um país, dois sistemas" (e já pareço um papagaio ao repetir isto vezes e vezes), teriam criado um núcleo de resistentes que seria demasiado importante para que fosse ignorado pelos dirigentes na novel RAEM, fosse qual fosse a sua política - e nesse aspecto pode-se dizer que tivemos muita sorte. Acreditando no tal prazo de 50 anos em que nada mudaria a não ser a administração e os seus responsáveis, não se precisariam de preocupar em fazer os seus filhos se adaptarem a uma realidade que simplesmente não existe, ou que não vai existir no tempo que lhes resta de vida. Bastava pensar apenas nisto: os fulanos que redigiram a Lei Básica, que não eram nenhuns adolescentes, longe disso, estavam a pensar em dar mais 50 anos até à integração total e completa na nação chinesa para poderem assistir a esse dia firmes e hirtos e com uma lágrima a escorrer-lhes do canto do olho? Claro que não; não foi com essa intenção. Estivessem eles nas tintas para isso, não davam prazo nenhum. Quer dizer, compreendo que se desconfie de um regime totalitário como é a China, mas 50 anos? Quisessem eles aldabral o pessoal favam antes 10, ou no máximo 20. Aí sim, dava para ficar com um pé atrás.

Um dos jovens que o Ponto Final entrevistou, e aproveito para dar destaque ao título dado à reportagem pela jornalista Iris Lei: “Se não me tivesse entrevistado não sabia que era o Dia de Portugal” - penso que isto diz tudo. Um deles diz "sentir-se envergonhado" por ter um nome português e não conseguir expressar-se no idioma dos seus pais. E como o entendo, pois afinal se a idéia era integrar os filhos numa "nova realidade", porque não lhe dar um nome chinês, em vex de um que não vai conseguir pronunciar, pelo menos correctamente, e que só lhe vai atrapalhar a vida, pelo menos até adoptar um nome chinês? Pelo menos os nossos emigrantes em França, nos Estados Unidos e um pouco por esse mundo fora adaptaram-se à realidade dos seus países de acolhimento, mas sem nunca deixar de respeitar a sua ancestralidade, e foi assim que temos hoje os Michel dos Santos ou os John da Silva. Mas não há que ter vergonha, meu rapaz. Dentro de ti existe essa vontade de comer bacalhau e pastéis de nata (não "portuguese egg tarts", atenção), de ouvir o fado e de "partir esta merda toda" quando nos dá a "falta de chá", tão própria do nosso ser lusitano. Vergonha ou roubar e não ter como fugir, como dizem as nossas gentes, ou nestes enterrar a cabeça na areia, e fingir que a nossa origem, a nossa matriz, simplesmente não existe, e é urgente recalcá-la.

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