sábado, 30 de agosto de 2014

A guelra fria



E agora para desanuviar um pouco, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau (edição electrónica não disponível), que parecendo que não, até vem a propósito. Tenham a continuação de um bom fim-de-semana, obrigado pela visita e continuem atentos.

Os leitores da minha geração ou mais velhos recordam-se certamente dos tempos da Guerra Fria, período que os historiadores definem como tendo início em 1947, altura da assinatura do Pacto de Varsóvia, e acabado em 1991, com a desagregação da União Soviética (URSS) e a queda do chamado “bloco de Leste”, ou “cortina de ferro”. A Guerra Fria era assim chamada pelo facto das duas potências beligerantes, os Estados Unidos e a tal URSS nunca terem declarado oficialmente guerra uma à outra, e era consensual que essa possibilidade pudesse causar um conflito termo-nuclear, e consequentemente o fim da humanidade. Perante este cenário nada animador, foi entendido como um “mal menor” que norte-americanos e sovietes intervissem noutros palcos um pouco por todo o planeta, financiando e dando apoio logístico a grupos de guerrilha, patrocinando golpes de estado e assassinatos políticos, e tudo em nome da “ideologia” – foi um mal menor menos para as vítimas destes conflitos, é lógico, e se a Guerra Fria não era propriamente uma guerra, no Vietname, por exemplo, a “napalm” não era propriamente considerada uma sobremesa “fria”. Hoje norte-americanos e russos, os ex-sovietes deste filme, continuam a ser as duas maiores potências militares mundiais, mas apesar da ideologia a menos, continuam a ter capacidade de mandar-nos a todos pelos ares aos bocadinhos – mas pelo menos já não há Guerra Fria, se isso servir de consolo.

Aqui em Macau os 44 anos que duraram a Guerra Fria foram passados sob administração colonial portuguesa, e os efeitos do braço-de-ferro entre Washington e Moscovo tiveram apenas efeitos colaterais. Pode-se estabelecer uma ligação indirecta com os acontecimentos do “12,3” ou com a Revolução do 25 de Abril em Portugal, e desta última saíu o estatuto do território que viria a facilitar a integração na R.P. China. A assinatura da declaração-conjunta coincidiu com a fase terminal da Guerra Fria, que viria a terminar ainda alguns anos antes do “handover”. Com a abertura a que a China foi obrigada devido à falência do marxismo-leninismo à escala global, muitos dos receios relacionados com factores ideológicos foram-se dissipando, e a sua versão socialista de economia de mercado começava a produzir resultados, acompanhados de outras transformações que eram bem recebidas. E assim a transição decorreu suavemente, sem que se confirmassem os receios da imposição de muitos dos males que a China ainda hoje padece, desde a opressão à censura, passando pela inibição de liberdades que sempre demos como garantidas, casos da liberdade de expressão, reunião, imprensa e a associação. Contudo propagou-se um fenómeno que muitos do que optaram por não ficar já haviam previsto: a guelra fria.

A guelra fria, nada tinha a ver com a Guerra Fria, apesar de ter aparecido menos de uma década depois do seu fim, indicando que se poderia tratar de alguma “recaída”. Este “síndroma da guelra fria”, como o nome indica, caracteriza-se por uma falta de sangue na guelra, tornando o peixe outrora fresquinho e vivaço num arenque pisado, fedorento e requisitado pelas moscas. Como pode ser que um salmão que antes trepava saltitante as geladas quedas de água do Alasca, se tenha tornado do dia para a noite num tísico carapau a boiar no Trancão? Simples: por causa da guelra fria. Mas é de gente que falamos e não de peixes, e na verdade não existe um nome científico para a guelra fria. Segundo estudos nunca realizados por cientistas que tinham mais que fazer, a guelra fria não é uma doença; é tudo psicossomático, como a gravidez histérica – dão-se os sintomas, mas nada quem um bom par de estalos não resolva. Apesar de não existir vírus, bactéria, fungo ou protozoário que causem a guelra fria, existem agentes: um activo, e um passivo, ou o “sacana” e o “parvinho”. Sendo psicossomática, um eufemismo para descrever a condição conhecida em linguagem por “com um parafuso a menos”, o seu mecanismo é despoletado por hipnose, reacção a impulsos, ou como neste caso, mera sugestão. Para deixar o “parvinho” em plena crise de guelra fria, tudo o que o “sacana” tem que fazer é dizer: “a China quer assim”, ou “são ordens da China”.

É por isso que a guelra fria é uma psicose característica de Macau, e o seu carácter de unicidade só encontra paralelo no “chu-pa bao” da Rua do Regedor, na Taipa. Para o “sacana”, o parasita da guelra fria, convencer o seu hóspede, neste caso o “parvinho”, a realizar as tarefas mais absurdas ou submetê-lo às maiores humilhações, basta dizer-lhe que “são ordens da China”. Para tomar o “parvinho” como parvalhão completo, enganá-lo, cravar-lhe metade da sandes na hora do lanche, pedir-lhe empréstimos a fundo perdido ou dar beijocas lambusonas nas bochechas da sua filha, basta alegar alguma ligação com a China, ou em alternativa com “o partido” – e nem é preciso dizer que partido é esse. No caso de se darem ordens que vão contra todos os pressupostos estabelecidos pela Lei Básica, ou no caso de testemunhar alguma barbaridade que careça de qualquer vestígio de legalidade, então atira-se com um “a China quer assim”. Quando diz isto, o “sacana” encolhe os ombros e deixas as mãos com as palmas para cima e dá um risinho sarcástico, e o “parvinho”, cabisbaixo, solta um deprimido “oh”, como quem acaba de perceber a mensagem implícita: “faz o que te mando, seu cachorro, ou faço-te a vida num inferno”.

O preconceito que leva à gestação do vírus-fantasma da guelra fria é causado sobretudo por uma tremenda ignorância. O “parvinho”, já com a guelra mais pálida que um fantasma, pensa que caso não obedeça aos delírios do “sacana”, convencido que são “ordens da China”, entram os guardas vermelhos pela sua casa adentro, obrigam-no a vestir um “zhongshang zhuang” ( 中山裝, fato igual ao de Mao Zedong), um quepe com uma estrela de cinco pontas e a marchar ao som de canções patrióticas, de livrinho vermelho na mão, enquanto o “seu dinheiro” (que é sempre menos do que alega ter) é “dividido pelos camaradas”, pois afinal “são comunas”, e o melhor é mesmo fazer “o que a China manda”. Hoje em dia a epidemia de guelra fria está controlada, e restam poucos “parvinhos”, e aqueles que antes eram os portadores assintomáticos preferem adaptar-se, expondo-se à cultura dos micróbios da guelra fria. Assim pode ser que nunca se concretizem as ameaças da China, onde se calhar até se ignora que em Macau se entre nesta histeria à conta destas fantochadas que ostentam o seu nome. Mas pelo menos nunca vão passar por parvinhos. “Ai a China quer? A China manda! É para ontem.”


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