Passam hoje exactamente dois anos desde que Yao Jingming assumiu a vice-presidência do Instituto Cultural de Macau, tornando-se a segunda figura daquela instituição depois de Guilherme Ung Vai Meng. Esta semana Yao Jingming anunciou que vai abandonar esse cargo e regressar à Universidade de Macau, onde esteve até 2012 como professor, tradutor e investigador, retomando as suas funções em Setembro, altura em que cessa a licença que requereu aquando do convite da Administração da RAEM. Numa entrevista ao Ponto Final publicada esta quarta-feira, onde faz um balanço do que foram os últimos dois anos, o que foi feito, o que ficou por fazer, explica as razões pelas quais abandna o IC, alegando "motivos pessoais", dando a entender que o cargo que vinha ocupando consumia muito do seu tempo em "questões burocráticas". No final da entrevista diz que pensa fazer um livro sobre a cultura do povo português, e que vai usar o tempo livre para "ler mais, e também viver mais".
Quem vive em Macau há algum tempo deve já deve ter tomado consciência que existe na administração uma forte cultura do "carreirismo", e sempre na direcção ascendente. Critérios como a competência, o desempenho e até o cumprimento ou não das metas estabelecidas são secundários, pois apenas em casos muito especiais o detentor de um alto cargo público deixa a sua posição se não for para outro igual ou superior - nem que seja preciso criar um feito à medida para ele - ou para a aposentadoria. O único caso e também o mais evidente foi o de Ao Man Long, obliterado pelas razões que todos conhecemos. Aos olhos da opinião pública chinesa local, a notícia da saída de Yao Jingming do Instituto Cultural será com toda a certeza interpretada como resultado de desavenças entre elementos do topo daquele departamento da Administração. Para nós às vezes as coisas são como são, e tudo nos parece apenas "normal", mas passando este facto pelo cínico sínico (sempre quis usar estas duas palavras uma a seguir à outra, e aí está), é como se Yao tivesse regressado a casa com uma nota baixa, e fosse repreendido pelos pais. Consigo até imaginar o que pensaram os seus compatriotas, quer locais, quer do continente, ao saber da notícia; levaram as mãos à cabeça, falaram de desonra, ai que está acabado, caíu do cavalo, o que fizeste/o que te fizeram, quem é o teu inimigo. Triste e mórbido pragmatismo, este.
O que muita gente não sabe, e é normal que não saiba numa cidade onde a cultura é um parente pobre, é que Yao Jingming é um poeta. Não "poeta" no sentido de que é um indivíduo educado e bem lido que começa a versejar depois de beber um copo acima das medidas, mas poeta credenciado, conhecido relativamente bem na China continental, onde é um autor publicado e de referência nos círculos poéticos, e onde assina por Yao Feng. Nascido em 1958 em Pequim (tem 56 anos, quem diria), estudou Português na universidade, e depois de uma curta experiência nos meios diplomáticos chineses, resolveu aprofundar os seus conhecimentos sone a cultura e a língua portuguesas, nomeadamente a literatura, e especialmente a poesia. Yao não é um estranho aos preceitos da cultura e aos costumes do país que o viu nascer, e na sua juventude foi inclusivamente guarda-vermelho, durante o perído da Revolução Cultural. Depois estudou, e teve a sorte que poucos têm: encontrou a sua vocação, a sua paixão e seu encaixe. Deu aulas de português, traduziu os grandes autores, como Pessoa, bem como autores chineses para Português. Chegou mesmo a ter uma pequena experiência como actor, desempenhando um papel na mini-série televisiva "Dragão de Fumo", de 1999, inspirada no romance homónimo de João Aguiar. Descobriu então qualquer coisa maior que os rígidos padrões de obediência herdados da milenar tradição chinesa, mais importante que qualquer directiva partidária ou ideologia política, ou mais valiosa que os ensinamentos de raíz confuciana prezando a disciplina e a veneração aos superiores e aos mais velhos: a alma, neste caso a de um poeta, que tem o brilho das estrelas.
Tive honra de conversar e trocar impressões com Yao Jingming algumas vezes, e o prazer de conhecer também a sua simpática esposa e a sua encantadora filha, e tive a sensação de estar ali alguém genuíno. Sim, também aprendi, e à custa de "bater com a cabeça", que se deve estar sempre com um pé atrás e não cometer a soberba de acreditar que podemos recrutar alguém de uma cultura tão díspar da nossa e fazê-lo sentir e pensar o mesmo que nós. Mas eu acredito que todos temos a capacidade de nos adaptar e deixar-nos seduzir por algo a que não conseguimos encontrar uma resposta adequada - para isso basta ser humilde, escutar, aprender, exprimentar, errar as vezes que for preciso até acertar, e deixar crescer aquele outro ser dentro de nós, que gostávamos não de ser, pois isso impossível uma vez que somos o que somos, um ente único e original, mas que queremos compreender, entrar na sua mente e explorá-la. Se eu tivesse que apostar uma vez que fosse em alguém que sente realmente tudo o que exprime nas ideias e nas palavras, apostas em Yao Jingming. Eis alguém que se converteu ao imaterial, ao transcendental, aquilo que fica quando partimos e deixamos para trás, que não é o dinheiro, as casas, as restantes posses ou sequer a família, mas sim tudo o que vemos, vivemos, tocamos, sentimos e conhecemos. Yao entende melhor que ninguém o que quis Florbela Espanca com "Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens". Tudo de melhor para ele, e obrigado por estar entre nós. Somos uns sortudos.
1 comentário:
Leocardo,muito obrigado pelas palavras simpáticas.Compreendeu-me muito bem. Um grande abraço! Yao
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