segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O "porblema" é "ôtro"


Gostaria de chamar a atenção dos leitores para este texto, que certamente muitos já devem conhecer:

REDAXÃO

'O PIPOL E A ESCOLA'

Eu axo q os alunos n devem d xumbar qd n vam á escola. Pq o aluno tb tem
Direitos e se n vai á escola latrá os seus motivos pq isto tb é perciso ver
q á razões qd um aluno não vai á escola. Primeiros a peçoa n se sente
motivada pq axa q a escola e a iducação estam uma beca sobre alurizadas.

Valáver, o q é q intereça a um bacano se o quelima de trásosmontes é munto
Montanhoso? Ou se a ecuação é exdruxula ou alcalina? Ou cuantas estrofes tem
um cuadrado? Ou se um angulo é paleolitico ou espongiforme? Hã?

E ópois os setores ainda xutam preguntas parvas tipo cuantos cantos tem 'os
Lesiades''s, q é u m livro xato e q n foi escrevido c/ palavras normais mas
q no aspequeto é como outro qq e só pode ter 4 cantos comós outros, daaaah.
Ás veses o pipol ainda tenta tar cos abanos em on, mas os bitaites dos
profes até dam gomitos e a Malta re-sentesse, outro dia um arrotou q os
jovens n tem abitos de leitura e q a Malta n sabemos ler nem escrever e a
sorte do gimbras foi q ele h-xoce bué da rapido e só o 'garra de lin-chao' é
q conceguiu assertar lhe com um sapato. Atão agora aviamos de ler tudo qt é
livro desde o
Camóes até á idade média e por aí fora, qués ver???
O pipol tem é q aprender cenas q intressam como na minha escola q á um curço
de otelaria e a Malta aprendemos a faser lã pereias e ovos mois e piças de
xicolate q são assim tipo as pecialidades da rejião e ópois pudemos ganhar
um gravetame do camandro. Ah poizé. Tarei a inzajerar?

Pronto, espero que não tenham tropeçado nas barbas deste texto - obviamente falso e pretensamente humorístico - que se fez passar por "verídico", alegando ser "uma composição de um aluno do 9º ano de uma escola das Caldas da Rainha". O autor anónimo terá começado a mandá-lo por e-mail em meados de 2008, e a referência mais antiga que consegui encontrar foi neste "site", de Dezembro desse ano. Depois andou até 2010 pelas redes sociais e e-mails de gente desocupada que lê (?!) este tipo de "spam" (são os mesmos que reenviam aquelas mensagens que dizem que se não o fizerem "acontece uma grande desgraça"), fez um retorno breve em 2012, e pelos vistos continua a enganar alguns tolos.

Ao contrário do que muitos possam pensar, a reacção nem sempre é de riso ou de indiferença, e há mesmo quem leve isto muito a sério, agitando com a bandeira da "geração perdida", e do "onde é que isto vai parar", e "caminhamos para o abismo", e a composição mal feita é o "quinto cavaleiro do apocalipse", etc. Depois apressam-se a culpar o facilitismo, o abandono da educação como uma das prioridades do Governo, a ministra (na circunstância Maria Helena Rodrigues), a geração, que é rasca, enfim, todos metem a colher no pudim opinativo, porque como já disse atrás, não têm mais nada que fazer. Irónico como neste "site", o seu autor, muito cheio de si, recomenda para "quem não entendeu à primeira, que leia mais uma vez, porque está de mais". Pois, pois, nós entendemos, não se preocupe. Entendemos até bem "de mais".

A origem deste texto e de outros semelhantes remonta quase aos primórdios da internet, mais precisamente aos tempos do mIRC, que para os que ainda se lembram, era um programa de conversação muito popular entre 1995 e os primeiros anos do novo milénio (eu usei regularmente até 2009). Os maiores aficionados do mIRC chegavam a falar com tanta gente ao mesmo tempo que começaram a adoptar um sistema de abreviaturas para não deixar os amigos a "secar" do outro lado. Assim nasceram os "pq" (porquê), "qd" (quando), "dd tc" (de onde teclas), os "ch" abreviam-se para "x", etc, etc. Com a banalização desta espécie de estenografia informática, vieram logo os inteligentes dizer que daqui a dez anos andava toda a gente a escrever assim, blá, blá, blá, entretanto as pessoas fartaram-se do mIRC e eles calaram-se, para depois acontecer o mesmo com as mensagens de telemóvel e blá, blá, blá outra vez. Espero sinceramente que ninguém seja pago para emitir estas opiniões parvas no sentido de quem escreve assim na internet ou no telemóvel vai como que por reflexo fazer o mesmo nos testes escolares.

Como sei que aquela tal composição é falsa, e que não foi escrita por aluno nenhum de escola nenhuma de ano nenhum? Porque uso uma coisa com que todos nascemos mas nem sempre todos usam: senso comum. Quem queria fazer passar isto por uma coisa séria, dar-lhe um ar de credibilidade, podia evitar ter dado erros em 90% das palavras - quer dizer, nem tem cabimento nenhum, e qualquer um percebe que é uma paródia. Na eventualidade de existir algum aluno assim tão iletrado não seria capaz de produzir um texto tão comprido - e nem se atrevia a tal coisa. Caso fosse mesmo o produto de um sistema educativo decadente, se calhar só precisava de uns safanões para atinar com os factos, que até chega a expôr, só que baralhados. E dando algum crédito a quem está mesmo convencido da veracidade da composição: e depois? Não seria a primeira vez nem será a última que um aluno do ensino público escreve asneiras. Já no tempo do pai dele se escreviam asneiras, no tempo do avô, e antes disso sabem o que mais? A taxa de analfabetismo em Portugal era da ordem dos 70%. Tomem lá que já almoçaram!

Existe uma certa..como lhe chamar...ah sim, conversa da treta, que defende que "um diploma da antiga quarta classe vale mais que muitos cursos superiores". Claro, claro, e a tubercolose é preferível a um simples resfriado. Muitos dos nossos avós, e até em alguns casos os nossos pais, que viviam no tempo "da outra senhora" completavam a quarta classe e iam trabalhar com 12 ou 13 anos. O tipo de trabalho era normalmente braçal, e entre os que mais tarde se valorizaram e regressaram aos bancos da escola e tiraram de noite pelo menos o 9º ano ganharam alguma "bagagem", foram muitos os que nunca mais ligaram aos estudos, e que aos 40 ou 50 anos se tornaram praticamente analfabetos. Entre um analfabeto que usa "atão" e "pipol" e outro que escreve "otoclismo" e "nalgas", prefiro o primeiro. Engraçados são os que defendem que o pseudo-declínio do ensino em Portugal se deu "com o 25 de Abril" - qualquer dia culpam o 25 de Abril pela derrota em Alcacer-Quibir. Estes vão ainda mais longe e afirmam que "Salazar podia ter muitos defeitos" - sim, bastantes de facto - mas "preocupava-se com a educação". Por acaso tenho à minha frente um livro de textos da 3ª classe dos tempos do Estado Novo, do qual vou reproduzir algumas passagens, sem comentários:

"Se estamos doentes, devemos consultar o médico, porque só ele tem o saber necessário para averiguar a causa dos nossos sofrimentos e para nos curar. Evitemos, pois, os curandeiros que por toda a parte existem, sustentados pelos ingénuos que se deixam iludir com as suas palavras enganadoras".

Minha Mãe é pobrezinha
Não tem nada p’ra me dar
Dá-me beijos coitadinha
E depois põe-se a chorar


(Na contra-página de uma onde se vê uma efígie de Salazar, em tudo semelhante à de Júlio César nos sestércios de prata, lê-se o seguinte no último parágrafo):
É função do presidente do conselho orientar superiormente todos os trabalhos do Governo e presidir às suas reuniões e conselhos. Todos os portugueses devem obediência ao Governo da Nação.


QUESTIONÁRIO (pag. 189):
P: - Para que veio à Terra o Filho de Deus?
R: - O Filho de Deus veio à Terra para nos salvar do pecado e nos ganhar o Céu.
P: - De quem nasceu o Menino Jesus?
R: - O Menino Jesus nasceu da Virgem puríssima Santa Maria, na cidade de Belém.
P: - Qual é a maior dignidade da Virgem Maria?
R: - A maior dignidade da Virgem Maria é ser Mãe de Deus.


E podia ficar aqui a noite toda a exemplificar o quanto se ficava a saber apenas com a quarta classe. Os cotas tavam todes tipe...duhhh...Deus e Salazaradas, o velhadas, duhhh....

Portanto, toda a gente erra, meus meninos. Reparem como aquela deputada "chuchalista" cometeu três "gaffes" num comentário de quatro linhas e toda a gente lhe caíu em cima, quais abutres à carniça. Chegaria ela a deputada se isto fosse habitual? Já tinham reparado, com toda a certeza, como o fizeram logo à primeira escorregadela - todos temos o direito a um dia mau, e só não erra quem não faz. Dá-nos mais gozo quando alguém que supostamente deveria ser um exemplo para os restantes comete um erro, mas isto não mostra que somos mais inteligentes, ou que o sistema está podre de raíz: mostra apenas a nossa pequenez.

Portanto se quiserem acreditar que a piadola que é o texto em cima é o verdadeiro estado da educação em Portugal, e de vez em quando retirar do congelador estas chalaças tão vistas que já nem têm sal (eu nem li o texto todo, sinceramente), então boa sorte. Mas tenham cuidado se o chefe vos apanha, e levam com um raspanete: "é para isto que eu vos pago, ó mandriões?".

2 comentários:

FTC disse...

Adoro os teus textos, mas... estavas num dia mau???...

Pedro Coimbra disse...

Sexta-feira vou publicar algo muito semelhante :)))