Há dias em que começar a manhã lendo o editorial do Jornal Tribuna de Macau, assinado pelo seu mui estimado, reverendíssimo, sábio, e porque não fazer esta presunção, viril director José Rocha Dinis, é o mesmo que tomar o pequeno-almoço no varandim da "suite royal" do Le Mirador Kempinski de Montreux-Vevey, numa fresca manhã de Maio, com a melhor vista que existe para o lago Genéve. Hoje foi um desses dias: quando penso que já vi tudo e que nada mais me surpreende, eis que Rocha Dinis demonstra mais uma vez que aquilo que eu sei, já há muito ele esqueceu. Os programas e os "scripts" que uso e considero de vanguarda, já ele fez "delete" e esvaziou do "recycle bin". A entrada directa para nº 1 do meu "top" esta semana já nem consta do top-40 dele. Perto deste monstro sagrado dos media em língua portuguesa sou um nada - ele escreve da sua sede no Tronco Velho, e eu do canto da sala num T2 da Rolha de Cortiça Nova. Bem haja, ó farol que indica o porto seguro nas águas revoltas do Mar da China. Saravá, luz que ilumina as nossas vidas.
(Ainda) Há quem pense que existe algo pessoal que me move contra o director do JTM, mas aí está: foi a pensar que morreu o jumento. Considero o dr. José Rocha Dinis uma pessoa inteligente, educada, que além do seu carácter pluralista é ainda um cavalheiro. Já quanto aos seus pontos de vista e à forma, género, número, escala, frequência, "soundbyte" e temperatura com que os exprime na sua rubrica "En Passant" (très charmant, et sans oublier, chic). Para mim ele é aquela pessoa boa, que procura servir o bem, fazendo-o igualmente bem, mas que defende os valores que eu considero um tanto..."marginais", chamemos-lhe assim - e reparem como dou destaque a este "que considero", uma vez que para mim o dia em que o director do JTM ou outra pessoa não tiver o direito à sua opinião, seja ela em que sentido, é o dia em que não valerá mais a pena escrever sequer a lista de compras do supermercado. Não sou nem tento ser um Jean-François Champollion de uma nova figura de estilo criada pelo autor, que contém elementos da perífrase e da metonímia, com uma certa de dose de ironia, mesmo que flagrante, e salpicada de alguma metáfora. É aquilo que os linguistas modernos baptizariam exactamente por "Rochadinismo", de tão específico que é na sua essência. Posto isto, vamos à análise do editorial "per si".
Tive muita pena, mas mesmo tanta pena que a minha pobre esposa chegava a acordar em sobressalto durante a noite pensando que estava deitada ao lado de uma avestruz, que Rocha Dinis estivesse ausente do território durante alguns dos momentos mais "picantes" deste que tem sido o Verão da revolução em Macau - quem diria, n'est pas? É verdade que a agitação neste "pocinho" onde moramos é consequência das vagas gigantes que têm afectado a navegação aqui ao lado, no imenso mar de Hong Kong, e comparar as situações é o mesmo que comparar a versão americana da série "The Office" com a original - é semelhante mas não é a mesma coisa - mas isso não retira legitimidade à contestação, pelo menos no seu essencial, ou seja, a motivação base. Podemos não concordar com o estilo ou com a abordagem, mas já lá vamos. Primeiro permita-me, e com a devida vénia, reproduzir a primeira parte do editorial da sua autoria.
Um destes dias na Assembleia Legislativa ao continuar a sua cruzada contra a reeleição do Chefe do Executivo (cruzada recente porque há uns meses considerava-a como boa) um deputado argumentou que a falta de interesse da população sobre a reeleição estava no facto de haver um único candidato.
Aqui está, o "slight return" de Rocha Dinis à sua fase "Padre António Vieira". Quem será este misterioso personagem que traíu os seus princípios e hoje está contra aquilo que antes considerava puro e bom? Fala-se ali de "cruzada", portanto será D. Afonso Henriques? Tancredo de Taranto? Vladislau da Boémia? Penso que se estaria a referir ao tempo presente e à realidade local, portanto, quem terá "virado o bico ao prego" nestes últimos tempos aqui em Macau? Já sei, Gabriel Tong! Não, esperem, esse corresponde à descrição, mas no reverso da medalha. Ah, bem, depois de muito pensar no assunto (dois segundos, para mais exacto), decifrei a charada. O culpado não é o mordomo, mas sim Ng Kwok Cheong, líder histórico da ala democrática no território, e que há uns meses declarou que via com bons olhos a recondução de Chui Sai On para um segundo mandato como Chefe do Executivo.
Ora bem, vir afirmar que Ng Kwok Cheong tem uma agenda com vista a sabotar a eleição de Chui Sai On quando antes a "apoiava" é mais que uma desonestidade intelectual: é batota. Pegar nas declarações de alguém e usá-las literalmente (nem digo "interpretá-las", que não é aqui o caso) sem atender às circunstâncias e ao "background" de quem as proferiu é próprio dos velhacos, grupo onde não se inclui o meu caro Rocha Dinis - pelo menos para mim. Quanto ao método com o qual Ng Kwok Cheong procura evitar a reeleição do actual CE quando este é o único candidato e a decisão cabe a um colégio eleitoral onde a esmagadora maioria dos membros anda à procura do lacinho mais bonito para enfeitar o voto nesse candidato, é um mistério. Bem, mistério não será concerteza, mas é a "one million dollar question", o ponto fulcral de todo este debate em torno de coisas sem importância, e revelar agora o porquê seria estragar o resto do filme, e como não sou de mandar "spoilers", guardo a resposta para mais tarde. Já bastou quando um amigo que ia ver o "The Sixth Sense" um dia depois de mim me perguntou "se gostei", e eu respondi que "gostei, especialmente quando se descobre no fim que o personagem do Bruce Willis é também um fantasma". Abordemos antes esta questão do "candidato único", que Rocha Dinis desenvolve logo a seguir.
É um interessante tema para reflexão. Muitos são os que pensam, na realidade, que a existência de mais do que um candidato seria um factor de animação para este final de Verão.
Reparem como aqui encontramos uma das características mais acentuadas do "rochadinismo": a desdramatização, o niilismo quase surrealista a que submete os grandes temas. Noutras palavras ficaria algo como "Deixem lá isso da pluralidade e do debate de ideias; para quê alternativas se isto não é um exame de resposta múltipla? Além do mais é Agosto, está calor, e por isso toca a ignorar a eleição do dirigente máximo da RAEM para os próximos cinco anos e vamos antes para a piscina, onde em vez de programas políticos há gajas de biquini". Epá, já lá estou, mas o problema não é assim tão simples. Vejamos até onde vai o raciocínio de Rocha Dinis.
Ora no que concerne à eleição de Chefe do Executivo da RAEM, a existência de um único candidato tem sido a prática. Só na primeira eleição, apareceu o bancário Stanley Au a disputar o acto com Edmund Ho e não me recordo que o interesse da população fora dos círculos políticos tenha sido por aí além.
Pois é, "tem sido a prática", mas não devia ser. O que seria dos movimentos populares se toda gente pensasse desta forma? Será que iamos ter a Revolução Francesa se a mole insatisfeita se tivesse resignado a comer ratos e a dormir no chão enquanto a realeza se atufalhava de "filet-mignon" e dormia em palácios na sua cama de dossel? Afinal "era a prática". Para que se foram incomodar Benjamin Franklin, James Wyatt ou Thomas Edison, se "era prática" raparmos um frio até aos ossos durante o inverno, andarmos a pé e vivermos à escuras? A "prática" muda-se, consoante a evolução das mentalidades e a passagem do tempo. Permita-me filosofar, mesmo que de forma amadora: porque acabamos por morrer, se o facto de estarmos vivos "tinha sido a prática"?
Mas não nos afastemos do essencial. A primeira eleição para Chefe do Executivo não foi uma excepção; foi um logro. Não sei se o meu caro Rocha Dinis lê este blogue, e mesmo que eu duvide que o faça deixo sempre uma porta aberta à incerteza, mas neste artigo de 22 de Julho deixei claro o que pensava sobre esse tema: "Era importante que houvesse uma corrida a dois, quer para testar a eficácia do método, quer para lhe conferir alguma credibilidade, mas nunca subsistiram dúvidas de que Edmund Ho sairia vencedor". Acho que este sistema de eleição do CE até é o ideal para Macau, uma vez que não se trata de um estado soberano, nem sequer um território diversificado e heterogéneo - é uma cidade e duas ilhas onde as pessoas não são assim tão diferentes entre uma extremidade e a outra. O pior foi a execução da ideia, pois criou-se um sistema tão elitista e tão rígido que concorrer contra um eventual favorito seria considerado um atrevimento, uma ousadia, e visto como "fracturante" desse princípio da "harmonia" tantas vezes empolado.
Os "círculos políticos" a que se refere, e que você por lapso involuntário coloca no plural, pois trata-se de um único "círculo", foi ficando cada vez mais fechado, reduzido aos mesmos, desencorajando qualquer iniciativa que pudesse resultar numa força de reacção. Este círculo, a que eu chamo a "nomenclatura", foi-se desgastando, aproveitou o factor de prosperidade para que pouco ou nada contribuíu (a não ser talvez com o papel meramente burocrático) para se ir acomodando, ao mesmo tempo que acentuava o distanciamento, esgotou as alternativas: "nós é que sabemos, em vez de nós o caos, e depois de nós mais nada". E o mais grave é que não se deu sequer um bom uso a esta estratégia já por si pouco ortodoxa - ficou só o vazio. Alguém com o mínimo de capacidade e ainda alguma juventude que quisesse entrar na política e não pertencesse aos clãs e à oligarquia estava condenado ao fracasso, senão mesmo ao desterro. Opôr-se a este estado de coisas, algo sempre tido como pouco recomendável, passou a ser um exclusivo desse tal Ng Kwok Cheong, que sabendo não ter o aval do poder central para concorrer ao cargo máximo, quem mais queria que ele dissesse que apoiava? Ninguém? Penso que com aquele "apoio" que expressou há meses, o deputado democrata dizia nas entrelinhas qualquer coisa como: "sim, esse, que ainda temos contas a ajustar". Mas passemos ao essencial do artigo.
A verdade é que a “menorização” política de um acto eleitoral, pelo facto de existir um único candidato remete-nos para caminhos perversos. O normal em Macau é as Associações, sejam cívicas, profissionais ou empresariais, viverem à conta de “listas únicas” e nunca a sua credibilidade foi posta em causa. Se agora isso serve de argumento para crítica, muita gente será atingida.
E aí está onde queremos chegar: as associações, que durante anos e anos foram passando constantemente atestados de inapetência à população de Macau, isto para não lhe chamar de burrice, quando se calhar ficaria mais fácil e até mais útil aproximá-la dos centros de decisão, mas não seria com toda a certeza o mais conveniente. À custa de tanta conveniência chegamos agora ao extremo oposto do desprezo: o referendo civil, ou apenas "referendo", ou a consulta pública ou o nome que lhe quiserem dar é a chave do enigma lançado por Rocha Dinis no primeiro trecho deste seu editorial. Chui Sai On nunca correria o risco de não ser reeleito, pelas razões expostas anteriormente e por outras que ficarão certamente para outras calendas, mas Pequim poderá entender o referendo como um cartão vermelho da população de Macau ao Executivo, e repensar o apoio ao actual elenco - no limite, poderá designar um substituto temporário, ou até definitivo. Assim, o referendo que tem deixado a nomenclatura em "tilt" poderá ser entendido como Pequim um fracasso dos dirigentes a quem sempre foi dada "carta branca" para conduzir os destinos da RAEM. Perante um cenário em que o actual do Chefe do Executivo, elemento da mesma elite do anterior, não conseguiu enfrentar os desafios, que já eram duros quando ali chegou em 2009, como ainda pecou por ausência na altura em que se agravaram, o que pensar do sistema no seu todo? O que dizer então de um método de eleição, que por muita benção tenha do poder central e esteja agarrado de pedra a cal aos pressupostos da Lei Básica, transmite a ideia de que o desempenho do Executivo foi tão imaculado que não há ninguém que lhes faça frente?
É aqui que o trunfo do referendo civil entra, e é um autêntico xeque-mate aos que persistiram no erro e substimaram aqueles que supostamente deveriam servir, mas foram-se servindo a eles, deixando apenas as migalhas. Não pense que estou contente com uma eventual "tempestade política" que poderá sair desta polémica do referendo. Preferia até que nem se tivesse colocado a questão, mas qual era a solução para resolver os problemas que se vão cada vez mais acentuando, e de que a população começa a ficar farta? O actual elenco teve todo o tempo do mundo para decidir, ponderar e agir com a calma necessária. Abusaram da boa-fé, e agora sentem-se perdidos, podiam ter colhido os frutos, mas a ociosidade permitiu que estes começassem a cair de podres. Nunca pensaram que o cão lhes morderia a mão que lhes dá de comer, mesmo que lhes vá dando cada vez menos. A culpa do escândalo Ao Man Long não pode ser nunca imputada aos democratas, e não são estes que têm a culpa da bolha causada pela especulação imobiliária, da inflação galopante, dos problemas do trânsito ou do atraso do metro ligeiro. Que eu saiba não são "forças de bloqueio" que se intrometem no caminho das reformas jurídica e administrativa, nem têm sequer a capacidade de interferir em decisões dessa natureza. Não vejo qualquer cordão humano a impedir as máquinas de chegar ao terreno onde se vai construír o tão necessário e eternamente adiado segundo hospital - e a propósito, onde fica esse terreno, afinal? Mas no entanto...
Ou como aconselha um ditado português: “não convém cuspir para o ar”. Para além de feio…“pode cair-te em cima”.
Em jeito de conclusão, Rocha Dinis junta-se ao grupo dos profetas da desgraça, dos que defendem que o actual sistema, ou este estado de coisas que "tem sido a prática", só pode ter como solução fim do segundo sistema, e a imposição por Pequim de um controlo total de tudo o que se faz em Macau, desde a economia à política, passando com um rolo compressor por cima das liberdades expressas na Lei Básica, que como primeira medida vai parar ao cesto do lixo, e na passada os democratas vão sentir na pele o mesmo que aqueles que refilam no primeiro sistema. Entendo que o director do JTM esteja preocupado com um vendaval que arranque as espigas do milheiral. Mas calma, calma, sou eu agora que lhe digo. Encoste-se ao sofá e assista ao programa. O referendo é assim tão mau que a única forma de não trazer consequências nefastas ao sistema é que não se realize? E quem fica a perder, somos nós? Olhe que não, olhe que não. Pior do que cuspir para o ar e acabar com uma verdusca na testa, é andar cuspir constantemente, julgando-se impermeável, e no fim levar em cima com a chuva da nuvem que andou a crescer por cima da sua cabeça. Vá pensando nisso, e bom fim-de-semana. Um grande abraço para si, homem.
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