Por motivos de programação (adoro dizer isto, recorda-me as locutoras de continuidade da RTP nos anos 80) não foi possível publicar mais atempadamente o artigo do Hoje Macau da quinta-feira da semana passada, cujo "link" para a edição electrónica do jornal não ficou disponível. Amanhã já vai sair outro, quentinho e fresquinho (nunca entendi como é que o pão pode ser "quentinho" e ao mesmo tempo "fresquinho", mas não entendo nada de geometria descritiva), mas por enquanto aqui fica este, já mais duro, e se quiserem podem fazer açorda com ele. Para quem não gosta de ditaduras ou não tem dentes para dita-duras, dou-vos "A dita-mole". Espero que gostem.
Quando tinha os meus seis ou sete anos acusava aquela espécie de dislexia própria da idade, que me fazia tropeçar em políssilabos menos utilizados pelas crianças da minha idade, ou confundia certas palavras com sons e sílabas idênticas, casos de “ameixa” e “ameijôa”,”Mamede” e “mamute”, ou “dentadura” e “ditadura”. Aqui por dentadura entenda-se aquela dentição postiça que muita gente mais velha usava (e penso que ainda há sobreviventes), um mal necessários nos tempos em que a medicina odontológica não estava ao alcance de todos, e os dentistas eram ainda antigos agentes da PIDE/DGS que depois da extinção desta tiveram que fazer pela vida. Esta dentadura, um antepassado pobres dos implantes dentários, era deixada durante a noite num copo com água, uma imagem que atira para um cenário da Família Adams, ou de um filme de Tim Burton. Os mais novos podem achar isto estranho, mas nem era sequer a pior relíquia dos tempos dos nossos avós. Peçam-lhes que vos expliquem o que era um “clister”, e vão ficar a saber a importância de uma dieta rica em fibras.
Quando me sentava em frente aos noticiários ou outro tipo de programação que não era propriamente indicada para um pequenote como eu (pela complexidade dos conteúdos, entenda-se) via pessoas referirem-se a “ditadura” com um ar grave, alterado, agitado até, e associava aquela irritabilidade ao facto de não lhes ser possível ingerir alimentos sólidos devido a uma “ditadura” defeituosa – não seria por falta de uma, pois não tinham boca de chuchu e falavam uma linguagem inteligível. Apetecia-lhes um bitoque com batatas fritas e estavam fartos de carne picada com puré de batata, em suma. Nunca deixei de relacionar a “dentadura” com a “ditadura”, mas claro que me percebi um dia que “ditadura” era o sistema autocrático e autoritário, onde todo o poder estava concentrado apenas num orgão, colocando-se assim na extremidade oposta da “democracia”. Como todos sabem, “democracia” é uma palavra derivada do grego “demos”, ou “povo”, e “kratia”, que é “poder” – é portanto o “poder do povo”, ou o “governo pelo povo”. Se isto não é novidade para ninguém, aposto que pouca gente se deteve durante um minuto que seja a analisar o significado real desta ideia, do povo no poder. Afinal parece que as togas e as barbas compridas ostentadas pelas elites pensadoras da antiguidade clássica eram mesmo um sintoma de loucura, e o “Ateneu” era na realidade o nome de um manicómio. Deliravam, coitados, e devia ser da febre do feno-grego.
Mas nem tudo se coloca nestes termos: ou ditadura, ou democracia. Existe um meio termo, vários até, e mesmo dentro das ditaduras há as mais “soft” e as “hardcore”, e as democracias nem sempre são sinónimo de ordem, justiça social e governação competente. Das democracias que conhecemos melhor, olhemos para o caso de Portugal, que não sendo uma democracia fracassada, fica muito aquém das expectativas – pode-se dizer que é uma “democracia pindérica”. Já no que a ditaduras diz respeito, temos logo aqui ao lado o exemplo da China. É um sistema autoritário, autocrático, com todo o poder concentrado num único orgão, neste caso o Partido Comunista, correspondendo portanto à descrição de uma ditadura, e neste caso particular, uma “ditadura do proletariado”, que usa como designação oficial do seu sistema político de matriz socialista. Este “proletariado” é em teoria o indivíduo que nada mais tem de seu que a roupa que traz no corpo, e a força do seu trabalho, as suas aptidões, de que depende para sobreviver. Hoje em dia este “proletariado” chinês tem muito mais do que isso, e nalguns casos na roupa que traz no corpo lê-se “Armani”, ou “Pierre Cardin”, que não soam nada a nomes de heróis revolucionários ou educadores da classe operária. E agora a pergunta sacramental: e Macau, o que é?
Macau, em tempos um território ultramarino português, não herdou dos seus antigos senhorios uma tradição democrática por excelência – facto muitas vezes realçado por quem perante as evidências declara que Macau “não é uma democracia”. Por outro lado, sendo uma região administrativa especial sob a alçada da R.P. China, a tal “ditadura do proletariado”, não é uma ditadura em si, longe disso, e apesar de reunir algumas condições para tal, dá-lhe uma pintura em tons mais vivos, mais alegres: é uma dita-mole, assim hifenizado e tudo, para transmitir a ideia de forma mais esclarecedora. Numa ditadura impõem-se as directivas pela força, numa dita-mole pede-se amavelmente, não propondo qualquer outra alternativa; numa ditadura usa-se a opressão, numa dita-mole o desencorajamento; numa ditadura obriga-se à participação em actos públicos, numa dita mole mandam-se convites irrecusáveis; numa ditadura não há eleições, numa dita-mole há mas é o mesmo que se não houvessem; numa ditadura cultiva-se a censura e o medo, numa dita-mole arranjam-se distrações. Como se pode ver, a dita-mole é o melhor dos sistemas maus, e ao mesmo tempo o pior dos bons.
Enquanto na ditadura temos um ditador, na dita-mole não há exactamente uma figura de proa, puxando todos para o mesmo lado, que é o da moleza. Na dita-mole não existe estagnação, mas sim estabilidade. Não se fala de inércia, mas sim de continuidade. Clientelismo e corrupção não, está a confundir com amizade e incentivo. Falta de alternância democrática? Olhem para os resultados, e digam quem é vamos substituir e deixar triste num mundo de gente contente? Variedade para quê, se estão todos contentes com o que temos? Sei, sei, a canção nº 1 do top é a “Harmonia”, porquê, não gosta? Gosta pois, vamos lá cantar, vá, sei que sabe a letra de cor e salteado. Qual é o seu problema mesmo, que lhe arranjamos já um subsídio e isso passa. Quer ir embora? Tem a certeza, veja lá...
Com tanta gentileza, como vamos recusar o amável convite desta dita-mole, que é mole mas não se parte, e para apreciá-la nem é preciso uma dentadura. As democracias nem sabem o que estão a perder, ali entregues ao Deus-dará, cada um livre de fazer o que muito bem lhe apetecer. Nós pelo menos temos “molengões” que garantem que continuamos parados no mesmo sítio, mas pelo menos estamos sentados e para trás é que não vamos, com toda a certeza. É dita-mole, mas é a nossa dita-mole.
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