domingo, 24 de agosto de 2014

O dia dos locustídeos


Locustídeos: Família de insectos ortópteros saltadores a que pertencem os gafanhotos

Hoje foi um dia triste para a liberdade em geral e para Macau em particular. Em nome do cumprimento da Lei Básica, cometeram-se vários atentados contra a mesma Lei Básica, ao mesmo tempo que a interpretação de outra legislação foi tão deturpada que chamar-lhe de "violação da lei" fica aquém de descrever o que passou. O que aconteceu foi uma violação em grupo com dupla e por vezes tripla penetração finalizada com bukakke - sem preservativo, e ainda mais grave atendendo ao facto que a vítima era menor de idade. A partir das zero horas de hoje, dia 24 de Agosto, tornou-se possível votar no referendo civil, uma espécie de consulta popular levada a cabo por 3 organizações do campo da pró-democracia, que desde o início tem causado sérias dores de cabeça ao Executivo, que se veio desdobrando em esforços para impedir a sua realização.


Como é possível observar através dos números apresentados por um dos elementos da organização, Kam Sut Leng, a participação até às 18 horas deste Domingo foi de 2698 eleitores, e de acordo com o Telejornal do Canal Macau da TDM que foi para o ar às 20:30, a participação tinha ultrapassado os três milhares. Jason Chao, um dos mentores e principal figura do referendo civil, havia dito a semana passada que "caso a participação ultrapassasse o número de elementos do Colégio Eleitoral (400) que elege o Chefe do Executivo, o referendo teria cumprido o seu objectivo principal. E aqui está ele cumprido, não por uma vez, mas quase por dez.

A tese da "ilegalidade" do referendo civil foi lançada quase imediatamente após a anúncio da sua realização um pouco à Lagardere, partindo inicialmente de elementos próximos do Executivo sem formação jurídica - se for para qualquer um decidir o que é legal e o que não é, mais vale fechar a barraca e ir para casa dormir, que não se ganha nada na mesma mas evita-se andar a trabalhar para aquecer, que com este calor não convém mesmo nada. Entretanto Vong Hin Fai, Gabriel Tong e mais recentemente Leonel Alves (apenas hoje, e limitou-se a defender a tese da "desobediência civil", sem especificar se considera o referendo ilegal), vieram a campo reiterar a ilegalidade do referendo, mas não conseguiram esclarecer exactamente que lei estaria a ser desobedecida. O "timing" escolhido pelas associações que organizam o referendo não podia ser o pior (para o Executivo) e ao mesmo tempo o melhor (para quem tiver dividendos a retirar, políticos ou quaisquer outros): a eleição do IV Chefe do Executivo da RAEM, que se realiza oficialmente no próximo dia 31, com um único candidato, Chui Sai On, que concorre a um segundo mandato. Não foi coincidência, claro, foi de propósito; mais do que isso, foi uma provocação. Mas onde termina a audácia e começa a ilegalidade? Recordemos aqui as declarações de Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), recolhidas pela imprensa em língua portuguesa a 15 de Julho:

O presidente da Associação dos Advogados, Jorge Neto Valente, considera que o referendo civil promovido por três associações do campo pró-democrático é inválido, mas não viola a Lei Básica.

“Não tem base legal nenhuma e não tem efeito nenhum jurídico. Não pode ter efeito jurídico, não está previsto como meio de decidir qualquer questão, não existe”, disse em declarações à TDM.

No entanto, ao contrário do que afirmou o chefe do gabinete do Chefe do Executivo, Alexis Tam, Neto Valente não considera que o referendo viole a Lei Básica ou a Constituição chinesa. “Creio que não. Creio que é uma perspectiva incorrecta. A Lei Básica fala daquilo que é, não fala daquilo que não é. Há muitas coisas que não estão na Lei Básica porque não têm de estar. O referendo não está lá porque não está previsto sequer como forma de actividade política ou de intervenção jurídico-política. Agora, que isto causa impacto, causa. É esse o objectivo”, afirmou.

Existe, ainda assim, o risco de ilegalidade se o referendo coincidir com a campanha eleitoral do Chefe do Executivo. “A questão que ponho é se é legítimo e é legal, durante uma campanha eleitoral que é assegurada pela lei, estar a fazer campanha de quem não é candidato e cujo único objectivo é confundir, interferir e baralhar a campanha alheia. Isso é que acho que não é legal”, comentou à TDM.

Como forma de solucionar este tipo de problemas, o presidente da Associação dos Advogados apela ao Governo que avance com legislação sobre referendos e sondagens.

Chamo a atenção para as partes em destaque a negrito nas declarações proferidas por Neto Valente na altura, e que considero as mais válidas por terem vindo de alguém independente e com vasta experiência e conhecimento na área jurídica, e residente no território há várias décadas - e isto vale para este argumento e para os todos os outros, e não estou aqui a ser cínico.

Portanto "não é ilegal e não viola a Lei Básica" - eis o fundamental. Atrapalha? O calor e a humidade também, e isto para não falar do trânsito e da dificuldade em andar na rua, tal é a quantidade de turistas muito acima da capacidade que Macau tem para receber visitantes, mas fazer o quê? Baralha? Numa terra cuja economia depende do jogo, isso não é mau pois não? Baralha-se e volta-se da dar, como no poker ou no "black-jack". Penso que "confundir" e "atrapalhar" não são crimes previstos no código penal, e se "não é legal", só se isso for entendido como um brasileirismo: "pô cara, isso não é legal, pôxa!". O Governo devia avançar com legislação que regulasse estes casos? Devia pois, mas não o fez, e como tal não existe no tempo presente uma lei que se possa usar como referência para justificar o incumprimento dos organizadores do referendo.



Em cima as declarações do académico Gabriel Tong, a 25 de Julho, afirmando que o referendo civil "não era ilegal", apesar de deixar a porta aberta a uma putativa parcial ilegalidade do acto, mas sem concretizar muito bem em que termos. Em baixo o mesmo Gabriel Tong, mas desta vez o deputado da Assembleia Legislativa nomeado pelo Chefe do Executivo vem dizer desta vez que o referendo "é ilegal" - estávamos a 14 de Agosto. Ele disse mesmo que é "ilegal"? Mais ou menos isso, depende da interpretação que se queira dar a afirmações como "a Lei Básica não permite que se recorra a um referendo" - não proíbe, e aliás a Lei Básica não é o Código Penal, e como disse Neto Valente, é "sobre o que é, não o que não é". Depois diz-se que "o promotor do chamado 'referendo civil' sabe muito bem que a lei não permite esta actividade" e que a sua intenção é "difundir junto dos residentes desconhecedores uma noção errada, isto é, 'o referendo não viola a lei', no sentido de criar um ambiente onde todos os assuntos políticos e públicos se sujeitem à decisão pública". A lei não permite? A lei não prevê, que são coisas distintas. Mas vamos supor que "não permite", será que proíbe? É isso que quer dizer "noção errada que o referendo não viola a lei"? No meio de tanta argumentação no sentido de que o referendo civil "ia lançar a confusão entre a população", quem está agora confuso sou eu - que pudor é este em declarar peremptoriamente que o referendo "é ilegal"? Ah, já sei, deve ser por não existir nenhuma lei que fundamente essa tese.


Mais do que vincar o pressuposto da ilegalidade do referendo, apelou-se à moderação, à ponderação, à reflexão, chegando mesmo a existir uma forte tendência para a misericórdia e para a pedinchice. Em suma, tentou fazer-se passar a ideia que o referendo civil "é uma sacanice". O pináculo desta lamentável ópera do desespero foi a divulgação do vídeo que vemos em cima, onde se apela à população para não participar do referendo civil. Aqui a diplomacia foi a estratégia adoptada, mais uma vez por culpa do vazio legal no que toca à realização do referendo, pois caso existisse uma lei que o proibísse expressamente, bastava acenar com ela, e poupava-se trabalhos e chatices. Incrível como depois de se ter passado um atestado de incompetência à população ao sugerir que iriam confundir o referendo com a eleição do Chefe do Executivo, ainda se adopta um tom paternal neste vídeo, que mais parece um conto infantil onde os democratas surgem como o "lobo mau" que quer devorar a "harmonia", aqui no papel de Capuchinho Vermelho, e que o "caçador" (o Governo) atende às dúvidas e questões da população, e com a benção da "avózinha" (Governo Central) viverão todos felizes para sempre. Muito triste.


Mas no campo de batalha, a estratégia era de ataque. Depois do IACM proibir a realização de actividades relativas ao referendo em espaços públicos, os organizadores do referendo anunciaram que iam usar "tablets" na abordagem à população para que pudessem submeter a sua opinião. Apelou-se então a algo mais dirimente das intenções dos democratas, e na sexta-feira, a dois dias do referendo, o Gabinete Para a Protecção dos Dados Pessoais (GPDP), emite uma nota de imprensa onde mais uma vez "estica" a legislação periférica à inexistente em relação à modalidade de consulta pública em causa, e emite recomendações num jeito dissuasor (eu diria ameaçador). A versão em português, apesar de se notarem alguns pontapés na gramática, dá a entender que a população "não tem direito ao referendo civil" (?), e que os organizadore "não podem tratar de dados pessoais com essa finalidade", acenando-lhes com a Lei da Protecção dos Dados Pessoais, nomeadamente com uma interpretação muito discutível do artº 5º (a que fiz referência aqui ontem). Se para os organizores agitavam com a "moca", aos residentes ofereciam docinhos: "considerem seriamente fornecer os dados pessoais, nomeadamente o número do BIR", que no fundo era tudo o que se pedia. Antes temos uma passagem onde se faz uma espécie de endeusamento do BIR, e de como dar os números que constam do cartão podia fazer com que "perdessemos a identidade", ou algo semelhante. Pena que quando elaboraram aquela lei, feita à medida para quem tinha algo a esconder e queria ver protegida a informação relativa ao seu património (outro típico exemplo de dissuasão), esqueceram-se de incluir o nº do BIR na definição de "dados sensíveis". E sendo estes "dados pessoais", e cabe ao GPDP monitorizar sobretudo o processamento, não há em parte alguma algo que me diga que estou "proibido" de divulgar os meus dados a quem muito bem me apetecer. Mas pronto, foi o que se pode arranjar.


Chega o dia do referendo, e a partir da meia-noite já era possível votar pela internet. Pelas nove da manhã, numa altura em que tinham participado mais de 300 pessoas, os voluntários da organização saem à rua com os "tablets", feitos ilegais "à pressa" pelo GPDP dois dias antes. A Polícia Judiciária é chamada aos locais onde decorria a iniciativa, e como se pode ver neste vídeo recolhido na zona do Jardim Triangular do Iao Hon, a táctica era a da dissuasão diplomática: "Vá lá, vão para casa. Não podem, não podem...sabem bem porquê". Pois é, sem uma lei forte que a sustente, a cabana treme por toda a parte.


No Manduco são detidos quatro elementos da organização do referendo, entre eles Scott Chiang, aqui à saída da esquadra da PSP em Santo Agostinho, acompanhado de três "camaradas" seus. Já pelas duas da tarde, e depois da organização ter abandonado a votação presencial, Jason Chao é detido e levado para a esquadra da PJ no COTAI. Segundo as autoridades, o caso será entregue ao Ministério Público amanhã, segunda-feira, mas Jason Chao, esse, foi para casa.


Entre as muitas imagens que iam surgindo nas redes sociais durante o dia de hoje, esta é uma das mais curiosas. Lei Kin Yuen, líder da Associação do Activismo para a Democracia, considerada uma rival do Novo Macau, "enterra o machado de guerra", e junta-se à promoção do referendo junto da população. Foi um Domingo igualmente agitado noutros quartéis, e além de elementos do GPDP (que adquiriu um estatuto de "polícia dos costumes") que procuravam focos de "ilegalidade", acompanhados da PSP, saíu ainda à rua uma pequena manifestação opondo-se ao referendo civil. Gente preocupada com a preservação da "harmonia", certamente.


As opiniões chegavam de toda a parte, e valeu a pena esperar até às três da manhã de segunda-feira pela "comunhão". O director do Jornal Tribuna de Macau, José Rocha Dinis, até não começa mal, se bem que comete uma imprecisão dizendo que Jason Chao "vai ser apresentado ao Ministério Público" - penso que vai pelo seu próprio pé, nada a que não esteja já habituado. De facto os resultados das últimas legislativas têm tudo a ver com este caso, mas vamos fingir que não é nada. Vejamos quais vão ser os resultados desta vez, e mais de 3000 participantes numa consulta que tem sido desde início tratada como tabu, marcada pela dissuasão e desencorajamento, e mais importante do que isso quando estamos a falar de participação cívica em Macau, que não dependeu de brindes, "lai-sis" e outras ofertas, eu diria que não é um mau começo. E ainda a procissão vai no adro.


É que mais do que a participação ou "show" que Jason Chao protagonizou em público (eu por acaso nunca o vi aos gritos ou a comportar-se como um tresloucado, mas devo andar a ver mal) há os ecos na imprensa internacional, onde (mais uma vez) Macau fica mal visto. Podia-se ter lidado com esta situação de uma forma mais discreta, e não penso que antes da chegada da polícia e de terem sido efectuadas as detenções os organizadores do referendo estivessem a causar distúrbios ou a incomodar seja quem for - isso da legalidade, dos dados pessoais e tudo mais discute-se à margem. Não se pense que sou adepto deste referendo, mas não tenho nada contra, pois como dizia o poeta "vemos, ouvimos e lemos", e aqui não vi, ouvi ou li nada que colocasse em perigo as instituições, ou fosse terreno fértil para se implantar a anarquia e perturbar a ordem pública, e irritou-me sobretudo que se tenha por capricho e comodismo manipulado o sistema e achincalhado a ordem jurídica em que não temos outro remédio senão confiar - e agora? Sentar-se à mesa e dialogar, pelo menos uma vez que fosse, produziria melhores resultados do que esta estratégia de "terra queimada", de levar tudo à frente, de "não, nunca, jamais, nem pensar", que nos mostrou um lado da governação que não queriamos ver, e levanta sérias dúvidas sobre certas boas intenções frequentemente reiteradas. Não creio que isto seja a tal "democratização" de que se fala, seja ao abrigo de que legislação ou com a cooperação de seja o que for. A teimosia aqui deitou tudo a perder. E é pena.


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