terça-feira, 5 de agosto de 2014

O racismo não existe


Tinha um artigo mais ou menos preparado para concluir o alinhamento desta terça-feira, mas eis que cai do céu aos trambolhões um tópico mais interessante. Viva a auto-estrada da informação, viva a globalização. Henrique Raposo, jornalista do Expresso, assinou hoje o seu habitual editorial com um título sugestivo: "A minha Rosa Parks vive em Macau". Quem está em Macau e lê habitualmente a edição electrónica do Expresso (pelo menos os artigos gratuitos) ficou logo com as antenas no ar, e para quem sabe quem é Rosa Parks, começou a sentir um leve cheiro a esturro; o que tem aquela figura da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos a ver com Macau, e que relação faz Henrique Raposo entre uma coisa e outra? Não pode ser coisa boa...

E realmente não foi um momento muito feliz para Henrique Raposo, que faz ali uma associação um bocado esquisita entre algo tão triste que felizmente já faz parte do passado, e um mero aspecto cultural (aparentemente estes episódios com o seu quê de exotismo continuam a render lá pelo rectângulo). Não entendo como o facto de alguém não se querer sentar ao lado do amigo do autor no autocarro possa ser entendido como "racismo" - racismo seria fazê-lo ficar de pé, expulsá-lo, agredi-lo, humilhá-lo, ou nem sequer o deixar usar o transporte público. Depois de um ou dois pontos no "descubra as diferenças", Raposo deixa uma conclusão completamente alucinada sobre os perigos da ascensão da China, do clima de tensão na Ásia-Pacífico, e até fala da etnia Han como se fosse uma elite dominadora que subjuga as restantes da China - os "han" constituem mais de 90% da população chinesa, desde as altas esferas do Partido Comunista um simples varredor de rua, pobres, ricos, remediados, coxos, mancos, cegos e surdos. A população da China é composta pelos "han" e o resto são minorias.

O artigo do Expresso chegaria a Macau, e como seria de esperar foi recebido pelo maior parte da "inteligenzia" lusófona local com indignação. Reacção típica de quem conhece melhor esta realidade e identifica facilmente a concepção errada de alguém que provavelmente nunca aqui esteve, e que de um incidente (que nem chega a ser incidente) ocorrido num autocarro em Macau leva a tirar conclusões sobre o que seria caso a China assumisse o papel de moderador, ou de "polícia do mundo", cargo esse actualmente atribuído por inerência aos Estados Unidos. É de facto muito atrevimento. Se posso entender a indignação, já quanto à dose não posso concordar de todo. Para mim o Henrique Raposo pode escrever o que quiser sobre o quiser, mesmo que não saiba do que fala, ou não esteja a par da realidade. Vir a Macau uma semana habilita alguém a falar de Macau tanto como quem aqui vive há cinco, dez ou vinte anos, ou quem nunca cá esteve mas, como neste caso particular, alguém lhe contou algo que o levou a tirar as suas próprias conclusões, mesmo que esteja redondamente equivocado. Eu nunca estive no Brasil, mas falo daquilo que sei e do que interessa, dentro das minhas limitações. Não é preciso estar certo para se ter uma opinião, era o que faltava. Vedar este direito a alguém de fora só porque se tem o ângulo "in loco" só tem um nome: soberba.

E o que o amigo de Henrique Raposo lhe contou não é exactamente o que se possa chamar de uma mentira, ou um daqueles exageros em que os portugueses acreditam facilmente, como "todos os chineses comem cão". No painel de discussão da rede social onde foi divulgado o artigo, houve quem negasse o facto dos chineses recusarem sentar-se ao lado de um ocidental num trasporte público ou onde quer que seja, "mesmo que seja o único lugar vago", como refere o tal amigo de Henrique Raposo. Ora isto é completamente verídico: não se recusam a sentar-se, como quem despreza um leproso, mas evitam fazê-lo. Isto não obedece a nenhum mecanismo como num relógio, e depende de vários factores; uma senhora ou uma menina jovem terá pudor em sentar-se ao lado de um ocidental - mas não quer dizer que não o possa fazer. Uma idosa já não se inibirá tanto, e os homens muito menos. Se for uma mulher ocidental, o factor do pudor já não entra nas contas, e mais facilmente alguém se senta. Mesmo assim alguns homens mais conservadores ou com valores mais tradicionais podem evitar essa proximidade com receio de ser mal interpretados. Racismo é que não, nem pensar.

Os africanos, ou os negros, como refere o jornalista do Expresso não são "colocados no fundo da pirâmide" pelos chineses. O que pode acontecer é que se sintam mais melindrados, pois conhecem ainda menos a cultura africana do que a Ocidental - e ainda há o preconceito que liga a cor preta à má fortuna, mas não vamos por aí. Se os chineses podem ser acusados de alguma coisa, é de quererem "ficar na sua", e evitar "intercâmbios culturais" que possam resultar em mal-entendidos. O povo chinês é por natureza perfecionista na imagem que procura transmitir aos outros - a tal questão da "perda de face", que é a maior humilhação para um chinês. Por isso, ciente das suas limitações, especialmente o fraco domínio de línguas estrangeiras, evita o choque, e o risco de não se fazer entender, dando parte fraca, e com isso, lá está, "perder a face". Muitos ocidentais que fazem a sua vida aqui e na China certamente já devem ter reparado que o contacto parte quase sempre uma iniciativa nossa. Mesmo que um chinês queira, ou precise de nos abordar, fá-lo sempre com cautela, como quem nos dá o "toque", e depois nos deixa conduzir o resto da conversa. Mais uma vez: nada disto é pontual, automático ou mecanizado. Como tudo na vida existem excepções.

Para mim não existe racismo, apenas gente ignorante, ou simplesmente parva e teimosa. Vou contar um pequeno episódio que aconteceu comigo, teria eu 12/13 anos: fui assistir a uma partida de futebol na Medideira entre o Amora F.C. e o meu C.D. Montijo, entretanto já extinto. Fiquei de pé junto da vedação, a poucos metros do relvado, rodeado de amorenses, que de quando em vaz mandavam umas "bocas" desagradáveis aos jogadores visitantes de origem africana. Achei aquilo curioso, e a certo ponto, sem me denunciar, perguntei porque adoptavam aquele comportamento com os jogadores negros da equipa adversária, se eles próprios tinham tantos ou mais atletas de cor? E aí eles responderam: "sim, mas são nossos". Aí está, podemos descriminar uma pessoa - e "descriminar" nem sempre tem uma conotação negativa - pelos traços mais salientes que o distinguem sem que isso seja considerado "racismo". É racismo chamar alguém de "careca"? Chega lá o SOS Racismo e diz-nos que "os carecas também são gente", ou a pior dessas frases feitas de gente tontinha quem nem ela própria acredita no que está a dizer: "somos todos iguais"? Somos todos diferentes, e ainda bem, porra. Há por aí muita má rês com que eu não gostaria de ser tabelado como "igual". Quem se sentar ao lado de um indiano, daqueles do Punjab com um turbante de metro e meio de altura, uma jóia no meio e uma pena de pavão no topo, com um bigode de duas curvas e uma barba igual à do druida Panoramix, e alguém nos perguntar "o que estavas a fazer ao lado daquele monhé", ninguém diz: "olha...vê lá tu que nem dei pela diferença, de tão equalitário e tolerantezinho que sou". Tenham dó.

Eu nem sei como chegámos ao ponto de considerar certos comportamentos de "racismo" por toma lá desta palha. Deve ser por influência dos ingleses e dos americanos, os povos mais racistas à face da Terra, e que impõem um código de normas absurdo, que quase nos obriga a considerar um pigmeu da Polinésia nosso "irmão gémeo", sob a pena de sermos obrigados a carregar um cartaz na rua a dizer "sou racista, devia ser escorraçado do planeta". Os chineses não são racistas, não se expulsam de lado nenhum, nem nos impedem a entrada no seu país - e o contrário já não é bem verdade. O Henrique Raposo devia antes reflectir na forma como olhamos para os chineses, como "invasores", carrascos do pequeno comércio, malandros que gostam de vir para Portugal para trabalhar! Onde é que já se viu isto? O futurismo anda pelas ruas da amargura estes dias, que o digam os apologistas da chegada do Reich chinês após os jogos olímpicos de Pequim, mas caso se concretize a profecia do jornalista do Expresso, pode ser que o novo império dos mandarins nos poupe. E porque não nos anexariam também, ora essa? Porque não vale a pena.

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