segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Só se morre uma vez


Uma das impressões com que se fica quando se volta da China é aquilo a que ontem chamei "um saudável desprezo pela vida humana", e que hoje gostava de desenvolver. Já tinha falado no Hoje Macau, no artigo Desumanização, de Outubro de 2013, de uma certa indiferença pelo outro, de uma frieza perante a desgraça alheia que nos aflige a nós, ocidentais, que temos na assistência ao próximo um valor que consideramos essencial na escala humanista, indispensável se nos quisermos considerar minimamente "humanos". No tal artigo mencionei as reticências que alguns cidadãos na China têm na hora de ajudar alguém em perigo, ferido ou visivelmente a necessitar de assistência urgente. Mencionei também que isto se deve muitas vezes ao facto de algumas dessas "vítimas" serem gente sem escrúpulos, planeando extorquir o amável benemérito, acusando-o de ser responsável por algum dano físico ou material de que tenha incorrido na altura do seu "acidente". A desconfiança a que levou esta mesquinhez chega ao ponto de fazer com que as pessoas hesitem em chamar as autoridades caso encontrem um cadáver na rua, pois temem ser acusados de lhe ter causado a morte - nunca se sabe. Para ajudar à festa, a própria emergência médica chega a recusar transportar um ferido sem que este ou alguém pague as despesas hospitalares antecipadamente. Soa um bocado a um filme de terror, do tipo "The Invasion of the Body Snatchers", mas é a realidade.

Não quer isto dizer que os chineses são um povo sádico, dotados de uma frieza que os faz bocejar caso estejam a assistir a uma violação seguida de desmembramento e completa com um acto de canibalismo, nada disso. Tal como toda a gente, choram os seus mortos, sentem a perda de alguém que lhes é próximo, sofrem quando os pais sofrem, querem o melhor para os filhos, temem se os irmãos ou os amigos correm perigo, e sentem saudade, também. A única coisa que lhes falta conquistar é a solidariedade, o amor ao próximo, desinteressado e com o fim de fazer o bem sem olhar a quem. Faltam noções que mais do que características dos Ocidentais são comuns à espécie humana, mas apenas precisam de ser estimuladas, soltas das muralhas do orgulho. Têm a noção de crueldade, e são capazes de se afastar ou demonstrar repúdio se vêem alguém na rua a maltratar um animal ou uma criança, mas não são capazes de interferir, censurar o autor dos maus-tratos ou sequer chamar as autoridades. Se lhes perguntamos porque não, respondem "porque não é nada comigo", e até são capazes dizer isto com uma expressão de firmeza que nos leva a entender que são uns palermas, mas para os seus, foi uma atitude inteligente, e a única a tomar neste caso.

Esta interpretação alternativa do respeito pelos limites do espaço de cada um são uma das coisas que nos fazem confusão a nós ocidentais. Talvez por isso quando viajamos na China nos seja permitida uma certa ousadia que caso os locais observassem num compatriota seu, imediatemente assumiriam tratar-se de um acesso de loucura. Isto é comum a todos os chineses, não apenas os do continente; em Macau não é normal que um homem abra a porta a uma senhora que não conhece, a não ser que ela venha atrás de si e deixe-a entrar primeiro. Ajudar uma senhora, especialmente uma idosa, a carregar as compras é aceitável se for feito por um vizinho ou um conhecido, mas impensável se a gentileza partir de um estranho. Uma jovem minimanente atraente que caia estatelada no meio do passeio prefere lá ficar do que ser ajudada a levantar-se por um desconhecido, especialmente se for um estrangeiro. O contacto físico entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que se conheçam mal, é tolerado, mas se um homem tocar numa mulher com quem não tem uma relação íntima reconhecida e assumida, é considerado um "prevertido" - com alguma sorte passa por "brincalhão", dependendo do caso. Claro que para os familiares abre-se uma excepção, mas mesmo aqui há limites; entre primos, nem pensar, e não fica nada bem a um pai manifestar fisicamente a sua afeição por uma filha.

Isto levou-nos a ter problemas durante a nossa vivência de quatro séculos por estas paragens do sul da China, nomeadamente com a questão dos beijinhos, a forma como habitualmente os homens e as mulheres, mesmo sem relação um com ou outro, se cumprimentam em Portugal e outras paragens mais "quentes" do Ocidente. Na China continental, onde o contacto com outras culturas é escasso, o "beijinho" seria entendido como uma tentativa de violação - passo o eventual exagero - mas aqui em Macau os locais até se habituaram, e alguns acham graça e aderem ao que consideram "um costume importado". Os que não gostam mas não querem passar por deselegantes ou pouco sofisticados usam o pretexto da higiene: "é uma coisa suja". Por acaso estes preceitos higiénicos levam a situações curiosas; eu próprio tenho um hábito, terrível, admito, que herdei da minha avó paterna: molhar o dedo com a língua para virar folhas de papel, especialmente se estiver a contá-las. Vou já deixar claro que não acontece sempre, depende do papel, e nunca faço isto com notas de dinheiro. Alguns colegas dizem-me que este hábito "é sujo", mas estes são os mesmos que às vezes lavam a boca com a água que bebem, cortam as unhas no escritório durante uma pausa do trabalho, e por vezes se estão mais absortos em algum pensamento "pescam" um burrié do nariz. Conheço um que cava cera dos ouvidos e come.

Mas a isto a gente até se vai habituando, mas o mais difícil mesmo é a adaptação a certas formas de entender as relações humanas, profissionais e a própria vida em sociedade. Fico por vezes abismado com a passividade que demonstram perante as injustiças, e em contrapartida a rigidez com que seguem certas directivas, ou normas que não têm qualquer valor prático (por vezes até atrapalham). Há casos em que insistem em cumprir uma lei quando talvez contorná-la fosse mais indicado, e outros em que se expõe ao risco ignorando o cumprimento de outras, apenas "porque toda a gente faz", ou "fulano disse-lhe que era assim" (normalmente um superior ou alguém de indiscutível autoridade). No primeiro caso dizem com orgulho e um ar sério que estão a "cumprir escrupulosamente a lei", no outro chamam-lhe "flexibilidade", que até soa a algo assim de muito moderno e progressista, e fazem-no com uma descontração de como quem nos diz que estão a "ter iniciativa", e que nós "não queremos progredir". Se no fim se lixam, ninguém foi, ninguém viu, ninguém soube. Paciência, melhor sorte da próxima vez, se houver uma próxima vez. Pode parecer um lugar comum, mas quem acerta 99 vezes e erra uma é lembrado pela vez que errou, mesmo que não tinha sido grave. Isto leva a que tenham medo de errar, naturalmente, e de assumir qualquer responsabilidade que não seja estritamente do seu âmbito. Se têm dúvidas numa resposta a dar ao público e pedem-me para os esclarecer, faço-o sempre com muito gosto, claro. De seguida viram-se para o utente e respondem começando com: "o meu colega disse que...". Acho isto engraçado. Quer dizer, "engraçado".

Nas relações de trabalho vigora um sistema hierárquico palaciano que é aceite como "normal", e para quem tira benefícios disso, é o sistema mais indicado, enquanto os "outros" comem e calam - e é muito difícil ficar numa posição de neutralidade. Aqui dizer que se tem dois pesos e duas medidas é o mesmo que dizer que se come com a boca e se anda com os pés; cada um trata o outro conforme a relação de confiança que tem com ele, e são capazes de suportar calados toda e qualquer humilhação vinda de cima. Se chegam um dia ao mesmo nível o agressor inibe-se e o outrora agredido mantém com ele uma relação de harmonia, apenas até ao dia em que fica por cima, e aí vinga-se com juros. E isto é aceite com uma naturalidade assustadora. Quem sabe que ficará sempre por baixo de outrém, faz o possível para não o irritar, andando em bicos de pés se for possível. Nem é preciso dizer que existe a cultura do "yes man", e que outra podia existir, se as chefias não vêem com bons olhos o incumprimento rigoroso das suas directivas, o que imediatamente olham como sendo "rebeldia", sem querer saber os porquês? Discordar também é perigoso, e mesmo uma sugestão convém ser dada com muita diplomacia. Começar com "eu penso que..." é desastroso, e eu próprio (e cada vez mais me estou nas tintas) opto por um "posso dar uma opinião/sugestão?". Numa sala cheia de subordinados, um chefe pode propôr o maior disparate que com toda a certeza trará prejuízo à empresa e aos seus funcionários, que dificilmente alguém abre a boca, ou faz sequer uma careta.

Assisti a um caso em que certa pessoa ficou como suplente num concurso para progressão na carreira, e alguns meses depois, ainda dentro do prazo de validade desse concurso, um colega seu morreu, deixando aberta a tão aguardada vaga. O que fez esta pessoa ao saber do infortúnio do outro? Festejou com os amigos a sua promoção! Passou o dia inteiro a sorrir, a telefonar a familiares e conhecidos relatando o sucedido com toda naturalidade do mundo. Claro que não há nada de ilegal aqui, e os mais pragmáticos podem até explicar isto pelo facto de ambos não se conhecerem bem, ou não terem trabalhado muito tempo juntos. Só que para mim isto é a mais pura das filhas-da-putice. Lógico que eu não renunciaria à promoção, até porque o segundo suplente não se faria rogado e agarrava logo o lugar. Talvez esteja a ser pacóvio ou simplório, ou quem sabe inocente, mas eu optaria pela discrição, atendendo a que desgraça alheia foi a razão da minha promoção, e não o mérito próprio por inteiro. Tive uma ajudinha das forças do mal, que não pedi, e o melhor mesmo é não pensar muito nisso e demonstrar que pelo menos sou merecedor daquilo que o azar de outro me reservou de bom. Ao festejar tornava-me suspeito de um pacto com Lúcifer, e o preço a pagar seria alto.

Tenho uma teoria para estas diferenças de comportamento: na China nunca houve uma tradição cristã, ou seja, nunca se incutiram certos valores como a compaixão, o perdão, a misericórdia, o auxílio mútuo, o voluntarismo, e tantos que associamos normalmente à moral e aos ensinamentos da doutrina cristã. Posso não ser católico, ou sequer religioso, mas tiro da religião aquilo que considero válido, e que posso usar para mim, no meu dia-a-dia, e nas relações com os outros, pois cresci rodeado destas valências. A moral para os chineses resume-se à tradição, à honra, e o núcleo mais duro é o da família, que não trocariam por nada, nem que fossem do piorio. A compaixão é muitas vezes entendida como um sinal de fraqueza, e a misericórdia e o auxílio eles deixam a cargo das instituições competentes; quando olhamos para um indivíduo sem uma perna e sem um braço ou uma mulher com um bebé ao colo que pedem esmola, é apenas isso que vemos, mas eles visualizam o esquema lucrativo engendrado pelos patifes que exploram essas pessoas. Nós acreditamos na reabilitação, de que é possível mudar alguém para melhor, enquanto para eles quem roubou uma vez, e não importa o motivo, será sempre "um ladrão". Pode-nos chocar que torturem, esfolem, assem e comam um cão, que entendemos como um companheiro, ou um animal doméstico. Se a sua atitude para nós é reprovável, para eles o nosso julgamento causa estranheza: pode ser que ali vejamos um amigo de quatro patas, e eles vêem apenas comida, mesmo que este aspecto esteja gradualmente a mudar para melhor.

Para um povo que esteve cinco milénios constantemente em guerra, passou por fome, invasões, agressões externas, tragédias naturais da dimensão do grande país que são, submissão a potências estrangeiras, à corrupção dos seus costumes, à miséria do seu povo, ora por raz­ões externas, ora às mãos de um regime feudalista que perdurou até bem dentro do século XX, o actual regime pode ser autoritário, totalitarista, inflexível e por vezes até cruel, mas a história ensinou-os que a sua civilização não se coaduna com certos princípios de que nós nunca em situação alguma iriamos abdicar. Os chineses que valorizam a Pátria, a sua bandeira e o hino, que vibram com as vitórias dos seus ginastas ou dos mergulhadores nas competições de saltos para a água nos jogos olímpicos, e que se colocam sempre do lado do seu país e dos seus dirigentes, mesmo quando isso não faz sentido para nós, estão gratos pela paz e estabilidade que o partido único lhes vai garantido, mesmo que tenha por vezes que impôr a ordem e prevenir a sedição com recurso ao uso da força. É um misto de pai tirano e uma versão muito oriental de "pax romana", onde a filosofia confucionista da "obediência sem reservas" assenta que nem uma luva - mesmo que o partido não seja muito dado a outra retórica que não a sua. Será que lhes devemos impingir o nosso estilo ocidental de democracia, com eleições e tudo mais? Será mesmo que eles não anseiam por democracia apenas porque são oprimidos e silenciados, ou devemos considerar por um instante que não estão interessados? Se vamos tentar impôr em vez de propôr, o mais natural é que o outro lado imponha com mais força, e resista ainda com mais determinação.

Os chineses não são "maus", como algumas pessoas julgam, especialmente os que não tiveram contacto com esta civilização ou conhecem-na mal, ou apenas o que se sabe através dos media, da forma como os direitos humanos são aplicados, ou neste caso não são aplicados na China. Aplicar aquilo que entendemos por direitos humanos ou civis em "strictum sensum" na China é estar a querer encaixar um triângulo numa forma ciruclar - aqui é uma cultura que mesmo fazendo todo o esforço possível para entendê-la, nunca vamos entendê-la por completo. Podemos exigir-lhes que se tentem equiparar a nós se quiserem usufruír das coisas que nós temos e eles também gostam, ou se nos quiserem honrar com a sua visita, e em contrapartida devemos fazer um esforço no mesmo sentido, mesmo que isto implique renunciar a alguns dos "nossos valores". Posso ficar um pouco sobressaltado quando ando na rua e de repente um carro ou um motociclo resolve cortar caminho através do passeio, ou considerar negligente que se transportem cinco ou seis pessoas numa moto, entre elas crianças, mas tudo bem, é assim, e resta-me exercer cautelas redobradas. É que atendendo a algumas especificidades que referi acima nesta longa dissertação, a vida pode ter um valor relativo num país onde tantas são obrigadas a ficar unidas. Se valorizamos a nossa vida, porque só se vive uma vez, quem sabe se eles optaram por fatalismo positivista: "só se morre uma vez, e depois acabou". E assim cada um entende da maneira que quiser - ou o copo está meio cheio, ou meio vazio.

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