Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Caetano Veloso, "Construção"
Macau é uma cidade em permanente crescimento, para cima, para baixo, e para os lados - é como o Universo, só com mais barulho. Penso que não será possível dar uma volta a pé pela cidade entre a Praia Grande e o Av. Horta e Costa, algo que chegou a ser possível fazer em menos de 20 minutos, sem deparar com uma obra, quer de construção, quer de renovação, quer de qualquer-razão-para-fazer buracos no chão e além do incómodo para o trânsito, não deixar os pedestres andar à vontade. Esta imagem que recolhi de uma escavação urbana aqui perto de casa (praticamente à porta), tem-me dificultado aquele luxo que não está ao acesso de muitos em Macau, que é o de "chegar a casa". Desde há um mês, quando estas essenciais reparações não sei do quê tiveram início (e tenho-me esquecido de rezar diariamente uma novena pela atenção dispensada) tem sido cada vez mais difícil andar pelo passeio - parvoíce a minha, pois ninguém disse que isto de ter a exclusividade de andar pelo passeio sem pagar um tostão, ao contário dos pobres diabos que andam a pagar as letras dos BMWs ou a litigar por um táxi que aceite levá-los a casa pela "módica quantia" de dez vezes mais a tarifa normal.
Deve ser por isso que quando salto nos bicos dos pés de cratera em cratera que é aberta na estrada e na calçada (aulas de "ballet" e tudo, vejam só, e ainda me estou a queixar), ou sou obrigado a caminhar pelo meio da estrada, ocasionalmente saudado pela buzina de um veículo como quem diz "bom dia, cansado de viver, é isso?" devia era estar grato. As escavadoras, as empilhadoras, os martelos pneumáticos, os laboriosos operários e as cercas que os rodeiam e onde interpretam uma rapsódia de picareta e martelada estão ali a trabalhar para mim de sol a sol, em prol do progresso comum. "Comum" quer dizer todos nós, onde também me incluo, é lógico. Só o facto de ser um ignorante justifica o meu melindre cada vez que estão dois artistas da escultura no asfalto em pleno "jamming" de britadeira no estreito caminho que dá acesso à porta das traseiras do meu edifício. Não é à toa que me fazem uma cara feia, pensando que devia ser legal deixar-me estendido no chão com as tripas de fora, e ainda serem recompensados por isso. Afinal estou ali a interromper o processo criativo, quando devia antes estar a apreciá-lo de perto, o suficiente para inalar o cheiro do "musk" que acompanha a sinfonia, algo reservado apenas aos machos que suam o dia todo e usam a mesma roupa toda a semana.
Mas também que me manda fazer diariamente o percurso desde a Rua do Padre António, passando pela Rua de S. Lourenço e pela Rua Central, ou em alternativa descer a Travessa do Bom Jesus e percorrer a Praia Grande até à Almeida Ribeiro e após atravessar os semáforos em frente ao BNU e percorrer alguns metros até à Rua do Campo, e depois de mais um par de divertidos semáforos, andar os últimos metros até ao emprego? Podia optar por sair pela porta da frente direito à Travessa do Mata-Tigre, e através da Rua George Chinnery fazer a ligação à Rua do Seminário, seguida da Rua da Alfândega, Rua dos Cules, e antes de um piscar de olhos estou no Largo do Senado, e depois o resto são cantigas. Demora-se quase o dobro do tempo, é provável que evite as obras ao pé de casa mas não outras durante o percurso, mas pronto, quem é que me mandou não arranjar um emprego lá para os lados da Barra, ou ainda melhor, trabalhar em casa? Mas deixemo-nos de merdas: quem é que mandou nascer, se era para ter este mau feitio e achar-se no direito de poder circular na via pública sem precisar de se preocupar em cair numa vala, ser atropelado com camião de carga ou ficar debaixo de toneladas de entulho?
Quando cheguei a Macau em 1993, e existia menos de um quinto dos prédios com mais de 10 andares que existe hoje, fiquei a conhecer uma realidade assustadora: os bate-estacas. Sim, talvez eu fosse um pouco rústico, e no Montijo onde vivia o prédio mais alto tinha quinze andares e as obras decorriam sem grande estardalhaço, nunca estivesse escutado a baque seco, estridente e decidido daquela máquina que coloca as fundações do progresso, as bases da nossa sustenção, as sementes de um futuro quanto mais vertical, melhor. Afinal eu era apenas um menino, que nada sabia da vida, e cada vez que descia o bate-estacas, era mais um pedaço do hímen da minha inocência que se rompia. Ali vai nascer um edifício, onde um dia vão viver famílias, todas com um passado e histórias para contar. Da estrutura erguem-se os andares que vão ser dividos em unidades onde se vai fazer amor, podendo ser ou não consentido, e daí virão bebés (desde que seja um relacionamento heterossexual), e quem sabe se entre eles os "talentos" que nos vão guiar um dia pela estrada do sucesso? É inevitável estabelecer um paralelo entre os bate-estacas e o livro da Genesis: "E ao segundo dia e mais alguns depois desse, ficaram fixas as fundações que sustentariam a obra maior. Palavra do senhor capataz. Amen".
Sinto-me um verme quando me afasto incomodado das betoneiras quase em cima do passeio a misturar o cimento que cola o tijolo social, ou quando protesto cada vez que quase fico debaixo de uma carrinha conduzida por estes verdadeiros heróis, que levantam as cidades com as próprias mãos, o que explica a pressa que os leva a acelerar nas passadeiras para peões, ou buzinam cada vez que alguém se atreve a correr quando eles ainda se encontram uma distância considerável. Eles que trabalham tantas vezes sem capacete em zonas de carga e descarga de materiais, manuseiam os cabos eléctricos sem luvas, operam maquinaria ruidosa sem protectores auriculares, penduram-se nos andaimes presos por cintos podres, rindo na cara do perigo. E quantos morreram para que pudessemos atravessar o rio, passar por debaixo do viaduto, ou estacionar numa daquelas caves todas iguais a cheirar a bafio e urina? Eu próprio sinto-me na pele de um estegossauro que se recusa a ser caçado e comido por um homem das cavernas, que depois de barriga cheia tomava a iniciativa de sair da gruta e fundar o primeiro povoado. Ah, e pelo caminho inventava a roda e descobria o fogo, também.
É que estes laborosos operários são os verdadeiros heróis da RAEM, do seu crescimento. Na maioria vindos da China, procuram honrar o nome dos seus antepassados, que desconhecem, mas que levantaram a grande muralha. Acabam de esburacar aqui, vai esburacar acolá, e se faltam lugares para esburacar, arranjam-se, que não falte trabalho a estes homens e orçamentos inflacionados aos seus geneorosos patrões - afinal é só acrescentar uns zeros, e o zero representa o nada, não conta. Estes cavaleiros do betão armado em parvo, que todos os dias pelas 7:59:59 estão na grelha de partida para fazer nascer a obra, num concerto de metais pesados que dura até às 18:59:59, e se o projecto tiver carácter de urgência (leia-se "casino", onde um dia a mais é prejuízo) ficam toda a noite a fazer trabalho de interiores. E não é só da lei do ruído de onde espreita o perigo, pois de toda a parte pode surgir o inimigo, bem como alguns bons samaritanos, como aquele rapaz da DSAL que avisa sempre que há inspecção, e os indocumentados são fechados num contentor por duas horas - depois compensam durante três e meia ou quarto. Como para cada formigueiro existe uma cigarra fanfarrona, os operários são enxovalhados por uma classe distinta do seu reino: os trabalhadores locais, cuja letargia só alimenta a sua força, e o som do protesto confere-lhe a energia para trabalhar o dobro e com redução no salário - sim, que sendo ilegais já é quase um favor, uma honra até, servir gente tão distinta.
Conta a lenda que um operário que trabalhava na construção de uma conhecida ponte em Macau, viu-lhe cair sobre o peito uma viga de aço de três toneladas e meia de peso, ficando com os ossos das costelas despadaçadas, e atravessadas nos pulmões e outros orgãos vitais como espias que prendem as pontas de uma tenda de campismo na areia do pinhal. Enquanto o responsável da obra combinava com os outros levar o corpo até à área da jurisdição da R.P. China, para facilitar os trâmites legais e não ficar o pobrezinho a apodrecer pelo facto de se encontrar na condição de ilegal, o moribundo usou o seu último sopro de vida para produzir um leve estertor: "acabem...a ponte...por mim!". Ouvindo estas palavras, o mestre pensou em enterrá-lo logo ali debaixo da estrutura inacabada da ponte, no fundo do mar, mas mais tarde podia dar-se o caso da Nam Vam ir lá retirar areia, aparecia o esqueleto e alguém tinha que perder horas de trabalho em explicações. Durante algum tempo, à medida que mais operários em situação idêntica iam perecendo na construção da ponte, recusando essas panaleirices da segurança que saem mais caras do que os seus salários, pensaram em chamar-lhe "Ponte do jovens mártires da casa dos 20 anos que deixaram noivas por casar, filhos pequenos por criar e famílias à espera do cheque no fim do mês", mas a filha do construtor preferiu chamar-lhe "Flor de Lótus", porque "era mais fofinho". E assim nasceu a Ponte da Flor de Lótus, e dizem os antigos (os trabalhadores ilegais que tiveram a sorte de chegar aos 40) que de noite ainda é possível escutar os lamentos das almas dos jovens que deram a vida pela obra pública de interesse estratégico. Mas na verdade trata-se apenas dos tipos da Nam Van a extraírem as areias, já que depois das onze não há fiscalização e a Polícia Marítima finge que não vê.
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