Macau vive neste momento a maior crise política da sua ainda curta vida como Região Administrativa Especial da R.P. China. Cidade pacata, conhecido no exterior pela "Las Vegas do Oriente", a RAEM foi notícia em tudo o mundo depois do último fim-de-semana, e não pelos motivos habituais. Em vez de mais um recorde de receitas geradas pelos casinos, foram os direitos contemplados na Lei Básica, a mini-constituição elaborada à luz do princípio "um país, dois sistemas" a fazer eco na imprensa internacional: um grupo de jovens activistas do campo da pan-democracia, comuns em Macau e Hong Kong ao abrigo das liberdades de expressão e de associação, inexistentes na China Popular, foram detidos pelas autoridades enquanto realizavam na rua uma consulta popular. Para os menos atentos à actualidade ou desconhecedores da realidade de Macau, tratou-se de mais um episódio da longa novela do activismo pró-democracia, "etiqueta" que a opinião pública está habituada a ver colada em qualquer notícia sobre a China, que esteja remotamente relacionada com a política ou os direitos humanos. Mas esta não foi uma consulta qualquer, e nestas questões em que se envolve o nome da China e dos activistas que se opõe ao regime totalitário de partido único com sede em Pequim, existem normalmente dois desfechos: ou fica tudo como está, ou acaba muito mal. Não é Macau das luzes dos casinos e dos centros de diversão nocturna, dos monumentos, da traça arquitectónica portuguesa, da diáspora macaense ou do célebre Grande Prémio em Novembro, o Macau antigo, descrito pela poesia de Adé dos Santos Ferreira ou pela prosa de Henrique de Senna Fernandes, a Macau cristã, pequenina, acolhedora, tolerante, que outrora mais fazia lembrar um oásis à beira da buliçosa e agreste Hong Kong, não é nada disto que está aqui em causa. O que se decide daqui a menos de uma semana é o futuro da RAEM e do segundo sistema, que rumo levará. Um dos caminhos possíveis não tem saída. É o precipício. É o fim.
Estes são alguns dos elementos responsáveis pela consulta que levou à detenção de alguns deles - cinco, para ser mais exacto. As três associações a que pertencem são a Juventude Dinâmica de Macau, a Consciência Macau e a Sociedade Aberta de Macau, todas elas saídas da mesma "alma-mater", a Associação Novo Macau (ANM), a autoridade máxima do activismo e da retórica anti-sistema no território com ligações quase embriónicas ao campo da pró-democracia de Hong Kong. Reparem que com excepção de dois ou três aparentam ser todos bastante jovens. E de facto há ali mesmo alguns que nem 20 anos completaram ainda. Podiam ser os nossos filhos. Quem são afinal? O que pretendem, e o que os leva a colocarem-se à beira do abismo, a chegarem ao ponto sem retorno? Que trunfos têm eles na manga que possam usar contra um adversário indiscutivelmente mais bem apetrechado que eles, e ainda com o apoio do Governo Central, a quem pouco ou nada agradam estas manifestações de rebeldia?
Para entender melhor os porquês desta "bomba" que está prestes a rebentar-nos nas mãos, recuemos até 25 de Maio. Era uma tarde quente de Domingo, e um grupo de associações onde se incluíam os democratas e outros grupos tradicionalmente desalinhados do Governo organizam uma manifestação para protestar contra uma proposta de lei que se preparava para ser aprovada na especialidade dias depois na Assembleia Legislativa. O diploma em causa, designado por "Regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos a aguardar posse, em efectividade e após cessação de funções", que explicado em poucas palavras, previa que os detentores de altos cargos públicos gozassem de regalias e privilégios que para muitos analistas eram considerados "exagerados". O artigo mais controverso do diploma tinha a ver com imunidade do Chefe do Executivo, que segundo o texto da lei não precisaria de responder em qualquer processo judicial em que fosse arguido, com efeitos retroactivos à tomada de posse do 1º mandato, a 20 de Dezembro de 1999. A popularidade do Executivo estava em baixa e tudo isto parecia suspeito, e assim 10 mil pessoas saíram à rua nesse Domingo, na manifestação mais concorrida de sempre.
A adesão à manifestação foi vista como uma surpresa, mas nem isso demoveu o Executivo de votar a lei dois dias depois, na terça-feira - parecia haver pressa da parte do Governo, o que levantou ainda mais suspeitas. As redes sociais, de onde já tinha partido a convocatória para a manifestação de dia 25, intensificam a campanha para que a lei fosse retirada. A próxima paragem seria a Assembleia Legislativa.
Terça-feira, dia 27. Depois do sismo dois dias antes, dá-se uma réplica mesmo em frente à sede do orgão legislativo da RAEM, com cinco mil manifestantes a exigirem que se retirasse a lei, incondicionalmente. Pouco habituado a ousadias deste tipo, a AL recua, e anuncia a suspensão da votação da lei. O desconforto começava a ser evidente, e dias antes da votação o vice-presidente do hemiciclo, Lam Heong Sang reage mal a uma questão posta por um jornalista em relação à lei. O nervosismo começava a tomar conta da nomenclatura.
O dia seguinte, quarta-feira, dia 28. Chui Sai On faz uma das suas raras aparições fora de agenda, e acompanhado da Secretária para a Administração e Justiça Florinda Chan, e o porta-voz do Conselho do Executivo Leong Heng Teng, anuncia o adiamento
sine diem da votação do polémico Regime de Garantias. Os sorrisos e a calma são apenas superficiais, e notava-se já o nervoso miudinho. Apesar da diplomacia e do aparente bom humor, a China começava a ficar a atenta às cogitações dos dias anteriores. O Governo não quebrou, mas torceu, e se a manifestação do dia 25 tinha sido uma advertência, este foi já o cartão amarelo.
Chegamos a Junho, e no dia 4 assinalam-se os 25 anos do massacre de Tiananmen. Como já era habitual, o IACM havia reservado o Largo do Senado para actividades relacionadas com o Dia da Criança, uma estratégia usada para evitar que a vigília pelos estudantes que perderam a vida durante o esmagamento do movimento estudantil em 1989 se realizasse no centro da cidade. Com os ânimos ainda exaltados devido aos acontecimentos da semana anterior, não se recomendava mais uma "crise", e o IACM decide cancelar a actividade, e acontece aquilo que já não acontecia há 19 anos: a vigília ocupa a principal praça de Macau, com uma participação de de dois milhares de pessoas.
Se a polémica ficou fora do Senado, mas não das Universidades. Durante a cerimónia de graduação da Universidade de Macau, já no novo campus da Ilha da Montanha, uma estudante de nome To Weng Kei, membro do grupo pró-democrata, segura um cartaz onde pede para que "parassem as perseguições aos académicos" naquela instituição de ensino. Em causa estava mais precisamente Bill Chou, professor de Ciência Política alegadamente suspenso devido à sua filiação com ANM. A UMAC resolve mal a situação, obrigando a aluna a deixar a sala onde decorria a cerimónia, ao mesmo tempo que Choi Chi Chio, um repórter da Macau Concealers, publicação ligada aos democratas, é agredido pelos seguranças. Para piorar as coisas, no dia seguinte morre o panda San San, uma das metades do casal que o Governo Central ofereceu à RAEM por alturas do 10º aniversário do retorno à Pátria - Chui Sai On e seus pares andavam a precisar de ir à bruxa.
Ainda se cumpria o período de luto oficial por San San, e andava a UMAC a pensar como explicar o incidente do dia 22, e já noutra instituição de ensino da RAEM se dava mais um caso: Eric Sautedé, também ele professor de Ciência Política, recebe a notícia de que não vai ter o seu contrato renovado como docente na Universidade de S. José. O portador da má nova é o Padre Peter Stillwell, reitor da USJ, e passa-se a uma troca de acusações com reprecussões na imprensa local e estrangeira, que deixam sérias dúvidas sobre a situação da RAEM em matéria de liberdade académica. Quer Sautedé, que Bill Chou seriam despedidos, e apesar do Executivo, através do próprio Chui Sai On, garantir que "as liberdades estão asseguradas", o presidente do Gabinete de Apoio ao Ensino Superior, Sou Chio Fai, remete-se a um silêncio confrangedor.
Na semana seguinte ao incidente na UMAC, Sulu Sou Ka Hou torna-se no presidente mais jovem de sempre da Associação Novo Macau. Candidato às eleições para a AL em Setembro de 2013, o activista de apenas 24 anos esteve em grande destaque nas manifestações de 25 e 27 de Maio, e foi um dos mais inflamados oradores do 4 de Junho no Largo do Senado. Natural na arte de segurar o megafone, peixe na água entre as multidões, Sulu Sou tem um sonho: trazer a democracia para Macau, sem que seja necessária que a China tome a iniciativa. Entretanto a 29 de Junho decorria a eleição dos membros do Colégio Eleitoral que iriam por sua vez eleger o quarto Chefe do Executivo, dois meses depois. O novo presidente do ANM faz desta eleição o seu primeiro cavalo de batalha: porque não pode a população votar também para o Chefe do Executivo? Isto era o prenúncio do que estava para vir.
A 1 de Julho realiza-se a maior manifestação da história da RAE de Hong Kong, com meio de milhão de participantes a demostrar o seu descontentamento pelo Executivo liderado por C.Y. Leung. Mas deste lado o Governo preparava-se para ter o seu próprio problema para resolver: na segunda semana de Julho os democratas anunciam a realização de um referendo sobre o sufrágio directo e universal para a eleição do Chefe do Executivo. O mentor deste referendo, uma consulta pública onde se pedia à população que votasse duas moções: se queria eleger em 2019 o Chefe do Executivo, e se confiava no candidato Chui Sai On para ocupar essa posição. Era evidente que se tratava de uma provocação, e o "timing" era também perfeito. O referendo civil ia-se realizar entre 24 e 31 de Agosto - este o mesmo dia da eleição para o Chefe do Executivo propriamente dita. Jason Chao promete anunciar os números da participação e o resultado da moção nº 1 no dia 31, e o resultado da 2ª moção no dia 2, após o anúncio do vencedor da eleição para Chefe do Executivo. Isto é explosivo, e já vamos ver porquê.
Este novo facto deixou o Executivo e restante nomenclatura em "tilt". Entre opiniões que davam o referendo como "ilegal", por não estar previsto na Lei Básica, outras mais pragmáticas viam na iniciativa uma simples consulta. Com efeitos devastadores para a imagem de Chui Sai On e do Executivo, a China não iria gostar com toda a certeza, mas apenas uma consulta que não produziria efeitos jurídicos, e por isso não poderia ser considerada "legal", nem "ilegal". Apreciada a situação pelo Tribunal Judicial de Base, este absteve de se pronunciar, devolvendo a "batata quente" ao Executivo. Como não havia forma de demover os democratas da sua intenção, recorreram-se a todos os expedientes possíveis para atribuir carácter de ilegalidade ao referendo civil. Enquanto tentavam sabotar o referendo e ameaçar os seus organizadores, a aproximação à população era mais suave, apelando a que não participassem. Os últimos cartuchos foram disparados no dia 22 , dois dias antes do início da participação da população no referendo civil, e o móbil foi o Gabinete de Protecção dos Dados Pessoais (GPDP), que interpretou a lei dos dados pessoais de modo a que fosse considerado ilegal recolher o número do BIR dos residentes de Macau, e no caso de persistirem, acusadores os organizadores de "desobediência".
Chega 24 de Agosto, o dia "D" do referendo civil. A partir da meia-noite começa a ser possível votar pela internet, e devido à proibição do IACM em organizar o referendo na rua pela via clássica, através das urnas, os democratas saem de "tablets" na mão para apelar ao voto dos residentes. Scott Chiang (à direita) e os restantes na imagem são detidos na Rua da Praia do Manduco, com base na "adaptação" feita à pressa da lei dos dados pessoais, e levados para a esquadra da PSP na Calçada de Santo Agostinho, onde ficam todo o dia. Por volta da hora de almoço, Jason Chao anuncia que vão abandonar a acção de rua, e o referendo passará a realizar-se apenas "online". Isto não impede que seja também detido, enquanto ia à casa-de-banho (?) junto à Rua do Campo, e é levado para a esquadra da PJ no COTAI, onde segundo o próprio "lhe foi pedida a base de dados", que se recusou a entregar. Durante todo o dia de Domingo a polícia patrulhou as ruas, ora acompanhada do GPDP, quer de outras entidades públicas, numa verdadeira "caça aos democratas". Na segunda-feira Jason Chao é apresentado ao Ministério Público, acusado de desobediência agravada, e fica com termo de identidade e residência, a medida de coacção mais leve de todas - isto demonstra a falta de coordenação entre as partes, e ninguém parece querer sujar as mãos subvertendo as leis com o único de fim de proibir algo que nunca foi proibido. O desespero é evidente, pois não só o referendo civil foi para a frente, como o pior ainda está para vir.
Neste vídeo uma repórter de um canal estrangeiro (aparentemente da BBC) pergunta a Vong Hin Fai, mandatário da campanha de Chui Sai On sobre as detenções de Domingo, e o advogado e deputado foge às perguntas, limitando-se a dizer que a campanha decorre com normalidade. Demasiada normalidade, e de facto fala-se de campanha em Macau, mas perante as notícias que chegam lá fora, Vong Hin Fai está a acenar com um fósforo aceso, quando atrás de si está um prédio de 20 andares em chamas. A própria Amnistia Internacional veio manifestar a sua preocupação com aquilo que chama "grave violação do direito à liberdade de expressão". Sulu Sou, presidente do ANM, marcou para hoje um encontro com Chui Sai On, mas o candidato mandou Vong Hin Fai no seu lugar. Parece tudo calmo entre a classe dirigente, que parece ignorar o referendo civil na aparência, mas na prática soltou-lhe os cães. E não é difícil perceber as razões.
Estes são os números da participação no referendo. Depois de 3335 votos expressos no primeiro dia, ao fim do terceiro já tinham participado quase 7 mil residentes, e é muito possível que o número ultrapasse os 10 mil. Estes números, assim como o resultado da primeira moção, são divulgados no dia em que decorrerá a eleição do Chefe do Executivo, no Macau Dome. Enquanto um colégio de 400 elementos vai votar numa eleição a que concorre um único candidato, Jason Chao vai mostrar que uma maioria entre 10 mil residentes concordam com o sufrágio universal para a eleição do Chefe do Executivo. Neste particular tenho algumas dúvidas, pois não acredito que a diferença entre o "Sim" e o "Não" seja tão evidente. O "Sim" ganhará, quase de certeza, mas há muita gente que ainda duvida da capacidade do eleitorado de Macau em tomar uma decisão desta importância, devido à falta de cultura cívica. Isto acreditando que os eleitores recenseados que estão a participar nesta consulta são pessoas com o mínimo de educação e consciência, e sabem que de um mero inquérito "online" não vão surgir consequências legais. O pior vai mesmo ser na terça-feira, dia 2. No dia seguinte ao mais que provável anúncio de Chui Sai On como 4º Chefe do Executivo pela Comissão Eleitoral, Jason Chao vai apresentar o resultado da 2ª moção, onde tudo indica que a maior parte dos 10 mil participantes do referendo civil diga que não confia na pessoa que acabou de ser eleita para o cargo mais alto da hierarquia política da RAEM para os próximos cinco anos. E aqui, meus amigos, não é onde a porca torce o rabo: é onde porca fica entalada e é depois despedaçada aos bocadinhos, com sangue e tripas pela parede e pelo tecto. Aconteça o que acontecer, no dia 3 de Setembro, após passar o vendaval, vai alguém andar a apanhar os destroços. Quem, não sei. Será que a China tem a última palavra?
1 comentário:
É Macau, 5841 associações, mas claro isso é muita falta de democracia, não há partidos, mas que pena, fazem tanta falta não fazem, é que a democracia é um formato, e se esse formato, que tem que ser único a bem da democracia, não existe, que chatice, não há democracia, MACAU precisa tanto de ser uma democracia formatada igual aos formatos das democracias do Ocidente, é que desta forma, como MACAU é, não existe a possibilidade dos residentes reunirem, se expressarem, nem liberdade de opinião e imprensa, essas coisas que tem que ser formatadas como no Ocidente, senão não é democracia. Haja paciência
Enviar um comentário