Hoje estou numa de audiovisuais, e este vídeo que apresento agora "roubei" da página do YouTube do Canal Macau da TDM, e desde já com a devida vénia. E mais do que uma vénia merece a autora da reportagem, Sandra Azevedo, que não conheço pessoalmente, mas sou fã do seu trabalho - tem sangue na guelra, a gaiata - e está prestes a dar o nó com o Rui Cid! O Rui, também ele jornalista, é um rapaz alto, que vi crescer com os meus olhos, coitadinho! Meu rico menino! Estou a brincar, mas na verdade conheci-o quando ele tinha os seus (os dele, portanto) 18 anos, e eu já andava aí pelos 25, e já nessa altura o Rui ficava a saber antes de mim quando começava a chover. Mais uma união entre dois jovens puros sangue lusitano, esbeltos, de faces rubras e olhos sempre muito abertos, sorriso Pepsodente, a transbordar de saúde, e que se mexem muito. Estou mesmo a ficar velho, porra. Salvo seja, que estou a falar de barriga cheia, mas já lá vamos.
Portanto, feitos os agradecimentos, especialmente à Sandra Azevedo que foi bastante perspicaz e fez aqui uma boa pescaria, passemos ao vídeo. Intitulado "Depois dos 80", a reportagem de pouco mais de 15 minutos (que recomendo que vejam na íntegra) aborda a temática do "envelhecimento agudo" - se chegar aos 65 anos, idade em que oficialmente se entra na terceira idade, é chegar ao "cinturão preto" da vida, ir além dos 80 ou até dos 90 é chegar aos quarto ou quintos "dan" (Yodan e Godan, respectivamente, só por curiosidade). Ficamos a saber no início da reportagem que em Macau existem quase 12 mil pessoas com mais de 80 anos em cerca de 600 mil habitantes - uma percentagem de aproxidamente 5%, o que ainda se pode considerar pouco, mas este é um segmento etário que tem crescido, e tem tendência a continuar a crescer. Em termos de envelhicemento da população, o que é considerado um "problema" não tanto porque se vive mais, mas porque se nasce menos, estamos ainda longe da situação do Japão, onde quase um quarto da população tem mais de 65 anos. Macau não tem preocupações quanto à "renovação" da sua força laboral activa, pois os novos residentes são provavelmente em maior número vindos de fora do que nascidos no território. Também é bom saber que apesar de tudo a RAEM situa-se num honroso 18º lugar na lista da OMS dos países com maior esperança média de vida, com os homens a viverem em média 77 anos e mais uns pózinhos, e as mulheres a "arriscarem" chegar aos 83 e mais além.
O progresso, e refiro-me ao seu todo, no geral, é o responsável por este acentuar da curva etária nos países desenvolvidos; vive-se mais tempo e vive-se melhor, com mais qualidade, e o planeamento familiar é um dado adquirido. Os nossos avós tinham cinco ou seis filhos, os nossos pais dois ou três, e as novas gerações optam por ter no máximo dois, a maioria fica-se pelo filho único, e há quem case e opte por não ter filhos - ou não case, essa é outra instituição em decadência (sem desfazer, Sandra e Rui). Os números da natalidade e da esperança de vida são isso mesmo, números e gráficos, e cada um sabe das linhas com que se cose. Excesso de individualismo? Egoísmo? Desprendimento dos valores tradicionais que colocavam a fertilidade num patamar quase divino, e defendiam que "uma família numerosa é uma família feliz"? Tudo bem, e quem paga as contas? Não culpem os casais, e vão antes perguntar a Wall Street e à restante banca, aos conspiradores zionistas e aos demais tentáculos desse polvo com cifrões no lugar dos olhos onde estão os bebés. Sim, porque os não-sei-quantos milhares de dólares que custa alimentar, vestir e educar um filho até este atingir os vinte e tal anos, que é visto como uma "curiosidade gira", daquelas que recebemos por e-mail e nos dirige a um daqueles "sites" que contam todos as mesmas piadas, sofrem um aumento na ordem dos 100% na eventualidade de um segundo filho. E ainda acham que cinco ou seis pontos percentuais na taxa de inflação são preocupantes?
Podia aproveitar agora para lançar a lebre de que a este ritmo em 200 anos deixará de existir a sociedade ocidental como a conhecemos, mas voltemos ao tema da velhice. Estatísticas à parte, o que é ter 80 ou 90 anos, quando se dá o acaso de lá chegar antes de ser obliterado por uma das inúmeras doenças urbanas e industriais que vitimam ainda a maioria dos seres humanos? Quando somos jovens, achamos que viver muitos anos deve ser uma coisa bestial, mas à medida que o corpo vai cedendo, e passamos a funcionar em "flight mode", sem acesso às coisas boas, começa a ser um enfado. Penso sempre como reage alguém com oitenta e tal anos quando lhe falam de qualquer coisa que está para acontecer daqui a dois, três ou dez anos. Imaginem uma situação destas: atribui-se a organização de um evento especial a um certo país - os Jogos Olímpicos, por exemplo. Um adolescente chega ao pé do seu avô, quase nonagenário, e atira-lhe com qualquer coisa do tipo: "Avô, daqui a sete anos organizamos as Olimpíadas! Vai ser o máximo, não acha?". O que pode o velho responder? E que tal: "Já não tenho idade para te dar um tabefe, mas um dia destes deito o meu laxante na tua sopa e vais levar a sanita contigo para ver a tocha olímpica a passar". É um facto: chegamos a um ponto onde ficamos fartos de viver, e já nada interessa. É por isso que os velhos são rabugentos, chatos e senis. Se morressem amanhã e mesmo assim pudessem rir, riam-se na nossa cara. Por enquanto é difícil entender isto, mas a cada dia que passa vai-se tornando mais fácil. É só esperar o número suficiente de "dias", acreditem.
Curiosamente a reportagem de Sandra Azevedo tem o mérito de escolher três residentes de Macau que encaram a velhice com uma placidez que me deixa quase estático. Três cidadãos séniores, e não três velhos. Sabedoria e experiência, em vez de esclerose e demência. E logo pessoas que conheço pessoalmente, umas melhores que as outras, e que considero encantadoras. São o tipo de pessoas que se ainda andam por cá pela Terra, é porque ainda nos fazem falta, e ainda temos de aprender qualquer coisa com eles. Para garantir que o seu trabalho se pautasse pela consistência e não ficasse preso a problemas de comunicação, a repórter escolheu elementos da comunidade portuguesa de Macau, três ansiãos com uma história repleta de ensinamentos, viagens e experiências de que vale a pena ouvir contar, e que passa pelo Inverno da sua existência com a graciosidade de quem recebe um novo dia como "mais um dia", sem a atitude derrotista de quem está sentado em cima de uma bomba relógio, e receia o amanhã: para eles "o amanhã logo se vê". A variedade étnico-cultural mas sempre com raízes na lusofonia foi também uma opção acertada, pois permite analisar as vivências de prismas diferentes. Os três respeitáveis decanos deste pequeno filme são Luiz Oliveira Dias, Aida de Jesus e José Colaço.
Luiz Oliveira Dias, que estimo e admiro bastante, foi meu professor assistente da área do Direito, é de uma classe rara nos dias que correm. Um cavalheiro. Sim, tem o seu passado um tanto ou quanto atribulado, passível de observações nos mais variados sentidos, mas é mesmo isso que sucede quando se atravessa grande parte de um século repleto de acontecimentos tão extremos e tão apaixonantes como foi o século XX. Não me identifico com o meu querido mestre na vertente ideológica, política ou religiosa, quem sabe mesmo se estamos em campos opostos da moral ou da ética, mas digo isto falando dele como diria se o meu avô tivesse sido o braço-direito de Benito Mussolini. Continuaria a adorá-lo, a sentar-me à mesa com ele, a levá-lo ao café, comprar o jornal ou dar milho aos pombos, e não me cansaria de escutar as suas aventuras. Teria sempre qualquer lição nova para retirar, com toda a certeza. Não cometo o desplante nem a arrogância de o classificar como "peça de museu", e achar que "teve azar" de não poder usufruir na plenitude desta viagem louca na auto-estrada da informação, perdido o comboio da modernidade ou qualquer outro desses clichés que as novas gerações usam para irritar os velhos. Se há algo de que tenho pena, é que não tivessemos deixado na sua eventual partida um mundo melhor do que aquele pelo qual ele batalhou - e penso que nem o bom professor vivendo 300 anos ia partir tranquilo nesse particular. No que à reportagem da TDM diz respeito, não tenho nada a apontar. É sempre um prazer vê-lo e ouvi-lo, mestre.
Nascida em Macau e passando a vida num autêntico caleidoscópio de "Macaus" que as marés da História trouxeram e levaram, está dona Aida de Jesus, conhecida de praticamente todas as comunidades do território e exemplo de resiliência. Apesar de cumprimentá-la e trocar algumas palavras com ela sempre que vou ao seu "quartel-general", o Restaurante Riquexó, tenho a certeza que ela não sabe sequer como me chamo, ou de que pedra rastejei até chegar à sua magnânime presença. E porque haveria de saber? Nos seus 98 anos de vida, pasme-se, deve ter visto muitos "balões de ar quente" como eu a levantar do chão, a ganhar altitude e finalmente rebentar de tanto "inchaço". Aida de Jesus, que está prestes a olhar para trás de um século de existência, foi durante a maior parte da sua vida uma mulher. E digo uma mulher como aquelas que não existem, mas a que dedicamos um dia qualquer em Maio, no primeiro ou segundo Domingo, dependendo da Geografia. Foi menina, senhorita, casou e foi esposa, fez-se mãe e dedicou-se à família, como as pessoas antigas, nos tempos em que o homem era o garante da economia doméstica. Depois de ter cumprido a sua missão de esposa, e só o facto de estar ainda entre nós prova que o fez voluntária e apaixonadamente, foi viver para si, transmitindo o que foi aprendendo durante décadas em que humildemente observou, escutou, e por isso aprendeu. A culinária macaense, a vocação primária das senhoras honradas de um Macau que faz parte de um distante passado, tornaram a dona Aida uma celebridade - mais do que isso, a guardiã de um segredo que teima em não revelar, e lá terá as suas razões: a receita do melhor Porco Balichão Tamarinho do mundo. A dona Aida é a Madame Curie da cozinha maquista, e o Porco Balichão Tamarinho é o seu "rádio". Com ela aprendi e continuo a aprender uma coisa muito importante: a idade passa como capricho do tempo, e para quê lamentarmo-nos daquilo cuja marcha nunca conseguiremos deter?
Finalmente José Colaço, que os mais desatentos pensarão ser natural de Goa, da antiga India Portuguesa, uma das nossas ex-províncias ultramarinas, mas na realidade nasceu e viveu até à idade adulta em Damão, apesar de mais tarde ter trabalhado em Goa, nos Serviços de Economia. A tomada dessa cidade e das restantes do império português na região pelo exército da União Indiana fizeram-no passar por Portugal, o berço da sua alma. José Colaço é português desde que se conhece, e será português até ao fim, mas quem respira desde quem veio ao mundo a brisa das monções, é eventualmente chamado de volta pelos seus ventos, e acabou por se fixar em Macau, onde permanece vai para cinquenta anos no ano que vem, sempre na companhia da sua simpática esposa, a também damanense Henriqueta. Já aposentado, se não me engano das Obras Públicas, cheguei a privar com ele durante os meus primeiros tempos de Macau, devido à articulação entre os nossos serviços - estava eu a começar a jornada, estava ele prestes a dar início ao descanso reservado aos guerreiros. O seu coração lusitano expressa-se através da música, do dedilhar da guitarra e das vozes ora festivas, ora delicodoces do ser português, e assim fundou no território o Grupo de Danças e Cantares de Goa, Damão e Diu, que se mantém activo. Agora o mais fascinante: este homem que vêem ali na reportagem de Sandra Azevedo tem 82 anos. Sim, eu sei, e o meu queixo continua caído ao nível da faringe. Tiro-lhe o chapéu, meu caro senhor, e não fico ofendido de todo com a sua juventude, em comparação com o meu espírito de velho relho.
São estas lições que devemos apreender enquanto ainda nos consideramos aptos para "dar umas voltas", e são estas pessoas em quem devemos pôr olhos em cima quando nos dão aqueles chiliques de "prima-donna", quando ficamos cansados depois de andar meia-hora a pé, quando nos aparece mais um cabelo branco, ou quando mais alguns dos seus capilares irmãos caem em combate da ameia do escalpe, quando nos irritamos com os miúdos por dizerem disparates (isto é mais difícil de ultrapassar, dadas as evidências), e finalmente deixamos de sorrir porque nos sobressaem as rugas. Estes três longos caminheiros da estrada do tempo, que trocam impressões connosco sorrindo, tendo atingido o "karma" da humildade que os leva a quem olhem de cima para nós (e bem podiam), estão em paz com o seu ser, e isso é algo que me deixa feliz. Gosto quando olho para alguém que tem já pouco caminho pela frente, mas isso nada importa, pois o caminho que deixou para trás deixou-o realizado, e olhando para os seus tem a sensação de que a bem ou a mal, fica com a sensação do dever cumprido. Não lhes peçam para nos explicar, ou ensinar como se chega a uma idade destas debaixo do brilho da claridade - esta é a estrada que cada um tem que percorrer, e encontrar a saída. E não vale ajudar. Bom trabalho, o da Sandra Azevedo, que frente a frente com estes "gigantes" deve ter também tirado as suas próprias conclusões. Use-as bem, e pode começar pelo Rui, com quem vai a partir de agora de mãos dadas pela tal estrada. E cuidado com as distrações...
Sem comentários:
Enviar um comentário