Foi num tom mais intimista que escrevi o último
artigo de quinta-feira do Hoje Macau, com que vos deixo com os desejos da continuação de um bom fim-de-semana e de boas férias para que teve mais sorte. Não percam amanhã mais novidades no Bairro do Oriente, e obrigado pela companhia.
Há alguns anos conversava com um colega nascido em Macau e com muitos anos de serviço público sobre as diferenças de trabalhar para a antiga administração portuguesa e para actual. Fez na altura uma comparação curiosa, que nunca mais esqueci: “Antes éramos como os sete anões, cantando e rindo na ida e no regresso da mina onde escavámos os diamantes, hoje somos como Lu Xun”. Para quem não sabe, Lu Xun era um escritor, ensaísta, poeta e tradutor chinês que foi obrigado a trabalhar até ao fim dos seus dias para pagar as dívidas da família e ainda lhe sobrar o suficiente para sustentar os seus. Morreu aos 55 anos de tuberculose, pobre, e reza-se que escrevia até à exaustão, chegando a tossir sangue, mas recusando-se a parar enquanto não terminasse o seu trabalho. Uma comparação com o seu quê de exagero, pois nem tudo foi assim tão bom, nem nada é hoje tão mau quanto aparenta ser – há dias e dias.
De facto tivemos dias de vinho e rosas, já lá vão uns bons vinte ou mais anos. Caminhávamos para o trabalho por um longo jardim, a escutar os passarinhos e a cheirar as flores, e ninguém se importava se chegávamos cinco, dez ou vinte minutos mais tarde, se demorávamos mais meia-hora a almoçar, ou se íamos ao café da esquina beber uma bica e passar os olhos pelo jornal de vez em quando. Estávamos lá na hora da verdade, quando era preciso, e ficava o trabalho feito – encaminhar papelada não é o mesmo que fazer um “bypass” triplo,e um carimbo de “urgente” não é um sinistrado a esvair-se em sangue. Claro que se cometiam abusos, e havia quem não soubesse interpretar esta delicodoce combinação entre o ser e o dever, e abusasse da candura do sistema; entre os que não davam um ar da sua graça durante semanas mas tinham sempre o ponto “picado”, e os outros que se aproveitavam da ambiguidade dos prazos para receber “luvas” de quem tinha a vida para resolver mais depressa, passou-se para fora a imagem do amanuense preguiçoso, acomodado e prepotente.
Com o virar de página, com a mudança de administração, existiu uma preocupação com a imagem, a tal ponto de passar a ser o princípio, meio e fim de todas as coisas, Ficou certa a frase de um certo alto dirigente: “não importa tanto que o trabalho fique bem ou mal feito, desde que os funcionários andem na linha”. E andar “na linha” não significa necessariamente ser cumpridor e agir rigorosamente de acordo com a lei. Para quem opta por pisar o risco, a lei está lá para o pôr na ordem, mas onde a lei não existe, atrapalha mais do que ajuda ou colide com alguns egos, há as “ordens de serviço”, que por vezes se sobrepõem sobre a lei, sem que ninguém faça muito caso disso. A vontade de acabar com os vícios deu origem a outros vícios, mas “mou man tai”, porque agora todos chegam a horas, não há gazeta nem pandemónio, e ai daquele que se lembrar de fazer a tal pausa para beber a bica e ler o jornal no café da esquina.
Considero que se deve trabalhar para viver, e não viver para trabalhar. Entre os primeiros há que se distinguem pelo sentido de missão, bons profissionais, leais e que fiéis aos princípios da ética, e os outros que chegam mudos e saem calados, tentam não dar muito nas vistas, e vão estrategicamente tentando fazer passar as horas, e depois o dia, as semanas, os meses e os anos, sem que ninguém sequer se tenha apercebido deles. Dos que vivem para trabalhar há dois grupos: os devotos, que sacrificam a vida pelos princípios e pelas causas, e desses consigo pensar em Salazar e poucos mais, e os infelizes. Entre estes há alguns que conhecemos bem, e somos obrigados a aturar durante aquele intervalo para o trabalho que nos separa da vida. Gente infeliz, mas sem lágrimas, de cara tapada com sorrisos de plástico, calculistas sempre à procura do louvor, da promoção, da oportunidade para mostrar a sua autoridade mesquinha que confunde com “profissionalismo”. São os engraxadores, os queixinhas, os “yes man” e todos os que eventualmente acabam sós, pois nem a própria profissão onde preferem sempre competir em vez de tentarem ser felizes os quer lá para sempre.
Hoje acordo ao som do camartelo. Há sempre uma obra qualquer aqui ao pé de casa, ou lá em baixo na rua, ou no pátio ou lado, ou um pouco mais abaixo, onde o terreno que estava rodeado por um tapume vai finalmente dar lugar a mais um prédio, e todos os dias há prédios a nascer e a crescerem em Macau. O tal jardim por onde passava para cheirar as flores e ouvir os pássaros deram lugar ao betão, e entre a selva a pedra há gente que corre para não perder a hora, e pelo meio muitos carros, muitas motos, muita confusão, velhos e turistas que por alguma razão já saíram da cama. E é Agosto, e está um calor que não é brincadeira, e isto quando não chove. Faça sol ou faça chuva, neste mundo de “secos e molhados”, acabamos sempre molhados e a cuspir sangue, tal como o pobre Lu Xun.
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