domingo, 3 de agosto de 2014

A diferença está mesmo aqui ao lado


Como os leitores devem ter percebido, fui dar um pulinho aqui ao lado a Guangzhou, a maior cidade da província de Guangdong, uma das maiores e mais populosas da China, e certamente a mais cosmopolita do sul do continente chinês, a par de Hong Kong. Para nós em Macau, e apesar de uma certa arogância inata (não é culpa de ninguém, realmente, nem é de propósito), Guangzhou é um mundo. Se para nós portugueses, Macau é "pequeno" em comparação com Lisboa, perante esta cidade a duas horas e meio de autocarro sentimo-nos como formigas: só a população urbana de Guangzhou, com os seus 11 milhões de habitantes, é mais que a de Portugal continental e ilhas inteiras. A área é aproxidamente a mesma da grande Lisboa e da Margem Sul - um pouco maior, talvez - a primeira vez que lá fui, em 1999, fiquei supreendido quando me disseram "chegámos a Guangzhou", e ainda foi preciso esperar mais de uma hora para chegar à paragem onde acabarai por sair, perto do centro da cidade.

Sim, são umas nove ou dez pontes, 3800 km2, é grande, grande como a própria China, imensa e diversa em todos os aspectos. Quem diz que Macau está cada vez mais parecido com o continente não sabe do que fala. Se já há quem sinta a diferença quando atravessa as Portas do Cerco e vai até Zhuhai, essa diferença acentua-se quando se faz um "esticão" até Guangzhou. É verdade que é cada vez mais comum encontrar turistas da China em Macau, e estranhamos alguns dos seus comportamentos, que consideramos "incivilizados", mas só sabendo de onde vieram, e sobretudo entendendo essa origem, conseguimos dar-lhes um desconto. Para quem nasceu em Macau e tem hoje mais de 30 anos fica mais difícil aceitar este contraste, pois ficou sempre a cobro das duas realidades maiores que contribuíram para a génese deste território: a China e Portugal, onde existe uma maior heterogeneidade de gentes e costumes. Para quem viveu em Portugal até completar a idade adulta, e sentiu o choque ente o urbano e o rústico, sabe identificar as diferenças, e sem querer aqui estar a ser presunçoso, entende melhor uma realidade díspar daquela a que está habituado. E posto isto, já que nos apercebemos das diferenças, serão estas para pior ou para melhor? Nem uma coisa nem outra - são para...diferente, só isso.

Permitam-se pegar num ponto que para mim é essencial: a liberdade de imprensa e o acesso à informação. Para quem não se importa de uma dose de isolamento do mundo, passa um fim-de-semana, uma semana, duas ou um mês na China sem se preocupar com nada. Para quem se quer actualizar e andar a par do que se passa no mundo e não dispensa a consulta de meia dúzia dos seus sítios de internet preferidos, pode vir a sentir algum incómodo. Como é sabido, a Google está bloqueada na China, bem como todos os seus afiliados - e acreditem, são muitos. Quem quiser passar uns dias na RPC e não dispensa navegar na net, mas está habituado ao motor de busca da Google, convém mudá- para o Yahoo ou outro qualquer (de preferência os locais Sina ou Baidu). Blogger, Facebook, YouTube e outros (ficariam supreendidos quantos, e aparentemente inocentes) são inacessíveis, e e mesmo quem tenha a paciência de instalar os "crackers" lhes que dão acesso, a "Grande Muralha", o maior censor de internet da China, já identificou alguns e "deu-lhes com a moca". Para quem tem o serviço de "wi-fi" das redes globais, talvez ainda se safe, mas se andar a depender dos hotéis e afins, esqueça - o melhor mesmo é gozar a estadia.

Aos nossos olhos ocidentais, esta preocupação com o controlo da informação parece-nos algo "demodé", e pode-nos até deixar um sentimento de desconforto, pouco habituados que estamos a este tipo de constrangimento, mas os chineses estão habituados, e até são capazes de concordar com esta política de "rédea curta", pelo menos em parte. Ao contrário da Coreia do Norte, os chineses do continente viajam pelo estrangeiro, pelo resto da Ásia, pela Europa, América, e até pela África, e têm consciência das diferenças em matéria de vivências, quer em termos de liberdades, quer em termos de civilidade. Muitos destes turistas chineses mais viajados sabem perfeitamente que alguns dos seus comportamentos são censuráveis aos olhos da sociedade dos países que visitam - e depois? Eles pagam, evitam misturar-se com os locais, fazem o que bem lhes apetece, desde que não violem qualquer lei, e eventualmente regressam à China, prontos para outra, e estão bem assim. Pensam que eles dão importância áquilo que os estrangeiros pensam deles? As diferenças vão muito além do regime e da cultura, como vamos ver mais à frente.

Uma das primeiras grandes diferenças de quem passa de Macau, a Região Administrativa Especial onde vigora um sistema semelhante ao das democracias ocidentais, com a separação de poderes e garantias no que toca à liberdade de expressão, associação e imprensa, pelo menos no papel, e convemhamos que na prática estamos muito, mas muito acima da China: a burocracia. Começa logo pela obtenção dos vistos de entrada; mesmo para alguém que viaje com um passaporte estrangeiro (e uma vez que se entra com um documento chinês não há maneira de voltar atrás) existe uma distinção geográfica: quem quer viajar apenas para Zhuhai, obtém um tipo de visto, e para o resto da China, um outro diferente. Paga mais? Não, mas "é diferente". Na China existe uma política migratória conhecida por hukou (戶口簿), que limita a deslocação entre a província natal e outra. Consiste em mais o menos o mesmo que precisarmos de uma autorização oficial para ir do Minho a Trás-os-Montes, o que para nós fica um pouco difícil de imaginar. Esta imposição previne que as populações do interior ou as regiões mais isoladas e pobres do país migrem todas para o litoral e para as grandes cidades, o que resultaria em 1) a desertificação de vastas zonas do território, 2) a massiva concentração de mão-de-obra nas principais cidades e consequentemente 3) aumento do desemprego, da mendicidade, da criminalidade e finalmente 4) mais focos de instabilidade. Daí que seja necessário que se compreenda e aceite este "controlo", mesmo atendendo ao facto de para quem reside em Macau não interesse nada migrar para uma província da China através de um visto que lhe permita apenas ficar um dia ou dois em Zhuhai.

E alguns estarão a pensar: "mas isso é apenas justo, que as leis sejam cumpridas por todos sem distinção entre locais e estrangeiros". Sim, de facto a China deixa bem claro que os estrangeiros que visitem o país são compelidos a seguir as suas leis, e não pensem que caso cometam um delito grave podem escudar-se na sua nacionalidade e pedir a intervenção da sua embaixada ou consulado. Mas o sol não nasce brilhante para todos na China, nem a justiça é cega ou a lei se aplica da mesma forma a todos os chineses. Os tribunais são orgãos do estados e os juízes seus funcionários, e é nítido que os círculos mais próximos do poder do partido único gozam de uma maior imunidade que um simples camponês ou operário - isto apesar da retórica oficial inerente à ideologia socialista que sustenta o regime. E é isto que muitas vezes indigna o Ocidente, que faz uma leitura simplista desta realidade e aplica a sua lógica, que é totalmente inaplicável. Para chegar à elite não se requer talento, inteligência ou trabalho: depende das ligações, do "background" familiar e político, e da riqueza pessoal, claro. Quem ousar enriquecer na China sem a benção do partido, pode tirar o cavalinho da chuva. O sistema é um misto da oligarquia russa, e das castas indianas. Quem for filho de camponeses pobres, estude, trabalhe e consiga ascender na escala social não morre de fome, antes pelo contrário, mas dificilmente chega a um cargo próximo do poder.

Mas ainda quanto à burocracia, por vezes excessiva e até incómoda, é considerada um "mal necessário". Simplificar procedimentos, reduzir as etapas de modo a facilitar os processos e tudo mais são coisas do Ocidente. Na China a papelada, os departamentos e os cargos que à primeira vista parecem não ter razão de ser empregam muita gente, alguma dela que chega a não ter nada para fazer o dia todo, mas precisa de comer, e para isso ter um ordenado fixo. Mesmo a prostituição, ilegal em todo o país, é em geral tolerada, apesar das acções esporádicas que dão a entender o contrário. Se estas mulheres não optarem por esta via, e perante a escassez de emprego, vão fazer o quê? Roubar, matar, traficar droga? A caminho de Guangzhou e no regresso, o autocarro fez duas paragens para "controlo", onde entra um oficial, que olha para os passageiros como os estivesse a primeiro a contar e depois à procura de alguém em particular, e depois vai embora. As directivas são levadas muito a sério, e para quem não está habituado ou vem de uma realidade onde algumas regras são "dobradas" em nome da lógica e do senso comum, é capaz de ficar um pouco irritado com tanta intransigência, mas habitua-se. Eu próprio não gostei de ser tratado como um ígnaro, e no meu entender considero a censura dos media um atestado de burrice passado ao povo pelos que se dizem servidores do povo - mas quem sou eu para contrariar algo com quem a maioria dos 1200 milhões que ali vivem acha bem?

Fiquei num hotel na Avenida Jiangtu, não longe da estação ferroviária sul de Guangzhou, relativamente longe do centro. As ruas à volta faziam-me lembrar Lisboa do início dos anos 80 - até os candeeiros públicos eram iguais. O sentimento com que fico ao circular pela cidade é estranho; além da habitual atenção que me é reservada pelo facto de ser estrangeiro, tenho aquela sensação de insegurança, de perigo constante, como se algo pudesse de repente cair-me em cima da cabeça e "apagar a luz" de uma vez por todas. Fico com aquela impressão de que existe uma "saudável indiferença" pela vida humana. Claro que ninguém quer matar ninguém intencionalmente, mas dá a entender que não seria uma "tragédia", na forma como entendemos algo desse género. Quer pela forma como se conduzem os veículos, irrompendo pelo passeio como se fosse uma coisa normal, como os peões atravessam fora da passadeira, os operários ignoram as regras mais elementares de segurança, parece que não se valoriza a própria vida, quanto mais de outros milhões que no fim de contas nem fariam uma grande diferença se deixassem de contar na hora de dividir o arroz por todos. Em matéria de comportamentos incivilizados, digo apenas que em Macau ainda nos podemos dar por felizes com os tais "javalis" que tantos criticam. Aqui é pior, mas estranhamente parece existir uma maior "solidariedade" - pode-se atirar lixo para o chão, cuspir ou arrotar num transporte público e ninguém liga.

E falando em arroz, eu próprio sou uma pessoa que não se impressiona com aparências ou cheiros, indiferente a tabus ou relatos de crueldade por vezes até um pouco exagerados, mas na China exerço uma certa contenção. Em Kuala Lumpur cheguei a procurar o restaurante mais sujo do bairro indiano para almoçar, mas em Guangzhou desconfio até dos sítios mais caros. Isto porque não é nenhum mito que existem vários empresários da restauração que descuram a vertente da segurança alimentar ou da higiene pública em nome do lucro, e entre o que se "petisca", e não se rejeita logo de início, há sempre grandes reservas. E o apetite também depende dos estômagos; estava à porta de um centro comercial a beber um copo de café, e quando terminei não encontrei um cesto do lixo nas redondezas. Não me apetecendo ficar de copo na mão, reparei num buraco no chão perto da estrada, fui lá espreitar e confirmou-se o já suspeitava: estava cheio de lixo até acima. E não só: de vómito, ou pelo menos algo parecido. As idas à casa-de-banho também são algo a ter em conta: quanto menos público o lavabo, melhor. Penso que me fiz entender.

Mas apesar de todos estes defeitos, Guangzhou é uma cidade cosmopolita, de oferta diversificada, e quem conhece e tem bom gosto pode até retirar de lá apenas experiências positivas - o que é cada vez mais difícil de se fazer em Macau, por exemplo. A última vez que lá fui foi há sete anos, e antes disso tinha ficado outros tantos sem ir, e por isso as diferenças são sempre enormes, e para melhor. Quem lá vá uma vez por ano já se apercebe de uma evolução constante, e os problemas que persistem, ou os aspectos desagradáveis, são próprios de uma grande cidade num país que ainda há menos de 40 anos estava isolado do mundo, longe dos olhares dos forasteiros. As cidades chinesas teriam mais a ganhar imitando Istambul, por exemplo, capital da Turquia, resquício do antigo império Otomano, onde o complexo de inferioridade vigente faz com que os seus habitantes tentem tudo e mais alguma coisa para impressionar quem os visita, e tenta ser o mais agradável possível para os estrangeiros. Guangzhou está longe de ser Istambul, mas tem outras vantagens: é perto, é mais barato, e está na China - aprendemos mais sobre o meio que nos rodeia, e quem sabe voltamos de lá com a sensação que há em Macau coisas que não trocávamos por nada. E outras que gostariamos de ter, é claro.

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