sábado, 4 de janeiro de 2014

Os loucos


De vez em quando aparece lá pela repartição uma senhora que é louca. Quando digo "louca", não quero dizer que é alguma megalomania com a mania das grandezas, ou alguma pobre pateta armada em espertalhona, ou ainda uma jovem apoiante dos vários grupos activistas da pró-democracia de Macau. Nada disso. É louca no sentido clínico da palavra. Fundiram-se-lhe os fusíveis, faltam-lhe cartas no baralho, está a uma onda do naufrágio completo, a um número apenas de encher o cartão e fazer bingo. Em suma, é louca, coitada. Passou para o lado de lá, toma o chá das cinco à meia-noite, e convém mantê-la afastada de crèches, lugares altos, armas de fogo e objectos contundentes.

A senhora em questão andará pela casa dos sessenta anos, e visita amiúde alguns organismos governamentais, onde mal chega, começa a berrar, a insultar funcionários e a dizer obscenidades, enquanto acena com recortes de jornal e pretensos documentos. Alega que lhe roubaram as propriedades da família, que a filha assinou um contrato qualquer sob a influência de drogas que lhe misturaram na bebida, algo assim do género - e isto a confiar na tradução dos meus simpáticos colegas. Depois de dois ou três minutos a apontar para o pessoal da linha da frente e insultá-los mais as respectivas mães, é convidada pelos seguranças a retirar-se, o que faz sem oferecer muita resistência, mas enquanto sai vai bradando mais alguns palavrões. Nos piores dias ainda volta atrás e ofende a cidadania de mais algum agente público que tenha escapado à razia.

Recebemos a visita da senhora duas vezes no último mês e meio, pelo menos que eu tenha dado por isso. Às vezes fica sentada sossegadinha com os restantes utentes que esperam para ser atendidos, murmurando qualquer coisa, falando sozinha, mas é uma questão de minutos até soltar as feras e largar os fogos de artifício. Um dos sinais exteriores da sua loucura, além do cabelo desgrenhado e a roupa que deve ter adquirido no último saldo do Crazies'r'us é um adesivo que ostenta debaixo do olho direito, que aparenta ser o mesmo. Nunca estive a uma distância dela que desse para perceber se emana algum odor desagradável, mas a julgar pela sua aparência prefiro continuar na ignorância. Especialmente se for perto da hora de almoço, pois não estou de dieta neste momento.

Não sei se as suas alegações são válidas, se é mesmo verdade que lhe roubaram a casa, comeram-lhe a pinha ou eu sei lá, mas perde toda e qualquer razão que possa eventualmente ter com a conduta que adopta. Quem é enganado, trapaceado, vítima de fraude ou de alguma ilegalidade, não vai a uma repartição pública e desata aos berros. Se tem um caso sólido, recorre às instâncias judiciais, e se tiver provas concretas ou as costas muito quentes, tem fortes possibilidades de ganhar. Ajuda se tiver um daqueles advogados de topo, que ainda o desafio não começou e já estão a ganhar um a zero. Não vai ser a berrar e a bater o pé que lá chega, com toda a certeza. Não sei se já alguém se atreveu a escutar o que tem para dizer, ou a verificar a legitimidade das "provas" que diz ter das maldades que lhe fizeram, mas para que isso acontecesse devia pelo menos adoptar uma postura menos tresloucada. Eu pessoalmente teria medo que ela me mordesse, se me atrevesse a chegar perto.

Não faltam casos destes por aí, de gente que afirma que perdeu as propriedades que pertenciam à família, ora porque os pais foram enganados, ora porque a mãe é viúva e foi vítima de uma esquema montado por maladrins sem escrúpulos, ou porque "o Governo os roubou". Com o actual valor a que está a habitação e o metro quadrado, não me surpreende que se multiplique o número de potenciais lesados. Há quem chegue ao ponto de afirmar que alguns dos maiores marcos do território deviam ser seus, por direito, e o Teatro D. Pedro V é apenas um de muitos exemplos. Destas pessoas há os que são maluquinhos e demonstram-no, como no caso desta senhora que vos falei, outros que não batem bem e disfarçam mal, outros que ainda conseguem levar alguém na cantiga, e outros que até são capazes de ter a razão do seu lado, mas que nada conseguem provar ou que são impotentes para reaver o seu património. Desses não nos resta mais do que sentir pena deles. Paciência, é a vida. "Better luck next time".

Agora uma notícia que não tem nada, mas mesmo nada a ver com este caso da senhora louca e dos usurpadores do património alheio. O deputado Pereira Coutinho e o seu colega de bancada Leong Veng Chai apresentaram na Assembleia Legislativa um projecto que visava regular os aumentos das rendas dos imóveis e dos espaços comerciais, o Regime da Actualização das Rendas dos Bens Imóveis. A proposta foi votada na última quinta-feira e chumbada pela segunda vez, com apenas sete dos 31 deputados a votarem a favor, e foram os suspeitos do costume; além do próprio Coutinho e camarada, os democratas Ng Kwok Cheong e Au Kam San, o deputado dos "kai-fong", Ho Ion Sang, e as representantes das associações de operários, Kwan Tsui Hang e Ella Lei. Esta última foi a única entre os deputados eleitos pela via indirecta ou nomeados a aprovar a proposta.

Dos que votaram contra, nada de novo. O "gangue" do costume, composto pelos representantes dos sectores económicos e empresariais, e dos deputados eleitos pela via directa destacam-se os nomes de Mak Soi Kun, Zheng Anting e Si Ka Lon. A ligação dos dois primeiros ao sector da construção civil e do imobiliário não terá tido certamente alguma influência no seu sentido de voto, assim como esta notícia não tem nada a ver com a tal senhora que é louca, coitada. Além dos sete votos a favor e dos 17 (!) contra, há ainda a registar cinco abstenções e duas ausências. Curiosamente Wong Cheng Kit, a tal que não gosta de enfermeiros portugueses, não seguiu o sentido de voto do seu colega de bancada Ho Ion Sang, que votou a favor. A malta de Fujian dispersou-se ainda mais, com Chan Meng Kam a abster-se e Song Pek Kei, a "caçula" do hemiciclo que se celebrizou recentemente pelas suas afirmações xenófobas a respeito dos trabalhadores não-residentes, estava ausente do plenário na hora da votação. Leonel Alves nem foi ao hemiciclo nesse dia. Para quê? Se calhar já sabia no que aquilo ia dar. É advogado, e se calhar um daqueles que já sabe qual vai ser o resultado ainda antes do início do jogo, e que referi há pouco.

Mas agora vamos lá a ver: porque diabo os srs. deputados AL, o orgão legislador da RAEM, com a função de fiscalizar a acção do Executivo, e representar a população e zelar pelos seus melhores interesses, votam contra uma proposta desta natureza? Pôr um ponto de ordem nessa tropa-fandanga que tem sido o aumento desmesurado do preço das rendas, que tem efeitos directos na economia das famílias e vem arruinando o comércio tradicional é de todo o interesse para a população. Mas o que é que querem? O Mercado "é livre", e o Governo "não deve interferer" como afirmou o próprio Chefe do Executivo. De facto dá muito jeito que na cleptocracia que Macau se tem vindo a tornar a roubalheira seja praticada com a cobertura da lei. Porque é que os senhorios vão poder continuar a praticar os aumentos absurdos das rendas, pedindo às vezes o dobro ou o triplo, como tem sucedido com as lojas, sem que nada o justifique? Porque podem. "Yes they can".

É no mínimo irónico que poucos dias depois de Chui Sai On ter dito na sua mensagem de Ano Novo que "está atento à qualidade de vida da população", o seu irmão Chui Sai Cheong e o seu primo Chui Sai Peng, ambos deputados, vão votar contra uma proposta que podia contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população. Mas porque é que estou a trazer para aqui os laços familiares, se afinal os três pensam pela própria cabecinha? A única coisa que têm em comum além do apelido derivado do parentesco são as participações nas empresas "offshores" registadas nas Ilhas Virgens Britânicas e a sociedade naquela Associação de Beneficência em proveito próprio, e que leva o nome de um tal hospital. Se calhar o louco sou eu, e não a senhora da outra história que não tem nadicas de népia a ver com este caso. E no fundo "de poeta e de louco, temos todos um pouco", e já que me socorro deste provérbio, reparo que em Macau se tem feito pouca ou nenhuma poesia. E pronto, agora se não se importam, vou dormir, pois amanhã vou almoçar com o Pai Natal e o Coelho da Páscoa na tasca dos sete anões, onde se comem umas asas de leitão assado de chorar por mais. O pior são as espinhas. Boa noite!

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