quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Venha ver o que isto é


Aqui estou eu, de volta às lides bloguísticas, depois de dois dias a pôr os sonos em dia. E quem bem que sabe, afinal, apesar das dores nas costas que resultam de dez horas seguidas de papo para o ar. A idade não perdoa. Bem, e estamos em plena semana dourada, ou semanas douradas, não se percebe muito bem onde começam e acabam, e o que mais salta a vista são as multidões, os turistas que chegam do continente e arredores, e a dificuldade em circular em certas zonas de Macau, especialmente perto do centro da cidade. Ora como no meio é que está a virtude, vivo próximo do centro. Ou pelo menos passo mesmo pela zona crítica todos os dias, na ida e no regresso do trabalho. E que comentário tenho eu a fazer?

Primeiro cheguei à conclusão que um dia destes vai ser impossível andar na rua. Já sei, isto parece um daqueles lugares-comuns, como quando as donas de casa comentam o aumento do preço de algum bem de consumo de primeira necessidade e exclamam "assim é impossível!" e depois acabam por pagar na mesma (que remédio...). Mas não, quando digo que "vai ser impossível andar na rua", falo em termos de logística. Portanto, temos em algumas áreas pedonais cinco ou seis cidadãos a ocupar um metro quadrado destinado a passeio ao longo de vários metros. Sendo assim, há alguns que se vêem obrigados a andar na estrada, ora porque não cabem, querem passar mas não conseguem "furar" pelo meio dos restantes peões, ou são simplesmente empurrados para o asfalto, onde circulam os automóveis. Estes, com problemas que lhes cheguem, apitam, com esperança que o peão infractor - mesmo que involuntariamente - começe a levitar, de modo a deixar a estrada mais livre (ou menos ocupada). Soluções? Assim à vista o ideal seria que se acabasse com o trânsito e andássemos todos a pé, ou vice-versa. Se nem o Wong Wan sabe o que fazer, porque havia eu de saber?

Mas melhor do que comentar nas redes sociais ou falar por falar, o melhor mesmo é ir sentir Macau, ou melhor, as zonas de Macau onde ouvimos dizer que é "impossível andar". Assim, nestes últimos quatro dias passei pela infame Rua da Palha pela hora de almoço, um período do dia especialmente crítico. Como já é hábito, o "estrangulamento" da via dá-se entre a barraca de gelados dos rapazes turcos e a Loja de Carnes Assadas Fong Seng, onde está uma senhora à porta com uma tira de carne assada e uma tesoura a gritar "KELEKELEKELEKELE!". Quando tudo o que a lógica indica é que as pessoas fujam desta arara, dá-se o efeito oposto, e as pessoas ficam curiosas em provar esta carne "gritada". Os turcos continuam a puxar bolas daqueles gelados pegajosos recorrendo-se de um número de circo, onde fingem que deixam cair o cone, causando um pequeno acesso de pânico ao freguês. Isto é tão popular que ficam ali turistas a assistir, a filmar, a rir, ou seja, tornou-se uma atracção turística mais concorrida que o Museu de Macau, situado uns metros mais à frente, junto da Fortaleza do Monte. Passado este ponto hiper-sensível, prosseguimos a caminho da Rua Pedro Nolasco da Silva.

Ontem tive o vagar e o cuidado de observar quem-é-quem neste mar de gente, misturar-me nesta mole anónima, olhar a besta no meio dos olhos, tentar perceber a sua linguagem. Atravessei a Rua da Palha a partir do BCM até à esquina da Rua Pedro Nolasco da Silva, onde está a Bodyshop. E quem vejo eu? Extra-terrestres. Sim, só podem ser criaturas de outro planeta. Primeiro estão a olhar à volta da Rua da Palha, atenção, DA RUA DA PALHA, com a mesma expressão de quem contempla pela primeira vez a Torre Eiffel ou o Taj Mahal. Para onde é que estes gajos estão a olhar, porra! Ou será um defeito da sua anatomia alienígena que não conseguem simplesmente olhar na direcção para onde vão? Levam malas com rodinhas que nos batem nas pernas, tiram fotografias, filmam!!!, pasme-se, e de quando em vez apontam em direcção a alguma parede fascinante, como o grumete que avista terra firme depois de meses no mar. Ia tendo a cabeça atravessada de um ouvido ou outro umas duas ou três vezes em menos de cinco minutos.

A atitude dos nossos residentes habituais continua a mesma. É fácil distingui-los dos "invasores", dessas criaturas de outro planeta: são aqueles que apresentam um aspecto remotamente humano. Mas dividindo a via pública por 10 outros transeuntes ou por 10 mil é a mesma coisa. Mandam mensagens no telemóvel, vão em passo de procissão em hora de ponta, e aos pares, ocupando o passeio inteiro, o conceito de "isto é muito meu, só meu" em todo o seu esplendor. Nessa tal Aventura de ontem pela Rua da Palha, passaram três deles, provavelmente trabalhadores de uma loja de roupa qualquer, que vinham a trazer uma espécie de jaula (aquelas onde as lojas enfiam as meias a t-shirts "leve 3 por 100") em cor azul. Vinham passando com o volumoso objecto, indiferentes a quem apanham pela frente, e a fazer uma cara de como quem diz: "por amor de Deus, estes gajos não vêm que vamos aqui a levar uma jaula azul com rodas?". Estes conhecem bem o código dos peões vigente: "tem prioridade quem levar uma jaula de uma loja de roupas, especialmente se for de cor azul e tiver rodas".

Os meus favoritos nem são esses. Tenho a maior admiração pelos residentes fazem fila durante dias à porta dos infantários para garantir uma vaga para os netos, dos que ficam desde madrugada, tantas vezes à chuva ou ao frio, à porta dos bancos ou dos Correios, para apanhar a leva de selos, notas ou moedas comemorativas, e aqueles que sabendo que podem precisar de aguardar horas, mas não se importam se fazer fila junto das paragens daqueles autocarros gratuitos, mesmo com 200 pessoas à sua frente. Sorrio sempre que vou num elevador a abarrotar de gente, mas há sempre um que vai a corer e "espreme-se" lá para dentro, e se toca o alarme, saem na mesma, mas procuram por alguém mais gordo que ele entre os restantes, para lhe atribuir as culpas "telepaticamente". Os condutores de automóveis não lhes ficam atrás, e onde há uma confusão, um congestionamento ou o trânsito está especialmente engarrafado, "enfiam" lá o nariz da viatura, para ajudar à festa. São os Duques de Hazzard, mas ao contrário. Como se pode constatar, mais visitantes podem fazer a diferença em termos de quantidade, mas em qualidade, as coisas ficam mais ou menos na mesma.

O que eu gostava era que o nosso Chefe do Executivo, que se diz tão preocupado com a qualidade de vida da população, viesse atestar em primeira mão, ao vivo e a cores o que custa andar na rua em Macau. Dispa-se da capa de "tutti-copi", dispense por um dia o carro-preto, os guarda-costas, os batedores, e vá como cidadão anónimo misturar-se com a população e os turistas no centro. "Be one with the streets". Sei que é difícil ocultar a sua distinta e volumosa figura e passar despercebido, mas recomendo que se disfarçe como aquele senhor anafado na capa do almanaque Borda D'Água: de casacão, polainas, cartola e monóculo, fumando um cigarro com a ajuda de uma boquilha. É isso mesmo, sr. Chui Sai On. Venha ver o que isto é. Depois diga-nos mais qualquer coisa sobre isso da "qualidade de vida".

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