domingo, 12 de janeiro de 2014

Da chocadeira


Descobri que nasci da chocadeira, de ovo de pata, perua ou galinha anónima. Não foi necessário fazer um daqueles testes de ADN caros para descobrir isto; bastou apenas fazer uma pequena reflexão interior, e descobrir que a minha marca de água genética nunca poderia vir da piscina turva a que vem sendo erradamente associada. Não vou conjecturar sobre quem é bom ou quem é mau, quem está certo ou está errado, é tudo apenas uma questão de incompatibilidades. Não adianta tentar encaixar um sólido triangular numa entrada circular. Não fosse tão complicado aceder à justiça portuguesa daqui de Macau e alterava a filiação para "desconhecidos", o no nome passava a constar apenas "Mateus", ou "João Baptista", como nos inominados abandonados à porta das igrejas.

Tenho defeitos, como toda a gente tem. Tenho imensos, e querem mesmo saber quais são? Eu abro o jogo: sou teimoso, refilão, guardo rancores desnecessários durante mais tempo do que devia, tenho cáries dentárias derivadas de um esmalte deficitário, sou um chato de manhã quando acordo, pelo menos até comer qualquer coisa ou/e beber um café, roo as unhas, procrastino por vezes o corte do cabelo, que chega a assemelhar-se a um ninho de pássaros, e sei lá, tantas outras coisas, algumas que descobri fazendo uma auto-crítica, outras que me foram ditas. Quando o mundo inteiro me diz que estou errado, dou o braço a torcer, e não o contrário. O primeiro defeito que apontei na lista foi "teimoso", é certo, mas só até certo ponto. E se posso ser tudo e mais alguma coisa que me queiram chamar, há algo de que tenho toda a certeza: não sou burro - apesar de insistirem em tentar me colocar as orelhas.

Há defeitos que apontamos aos outros que não são apenas mais que o seu feitio, pequenos caprichos da personalidade que por vezes nos recusamos a aceitar. Já me acusaram de dar a opinião "sem saber do que falo", o que só por si não faz lá muito sentido. Se é a nossa "opinião", não é preciso ser conhecedor de todos os aspectos técnicos sobre o tema que escolhemos para opinar. Posso achar que o bêbado residente de uma taberna deu uma opinião válida sobre o estado das finanças públicas, mas longe de mim recomendá-lo para Ministro das Finanças. O mais importante são as convicções, os princípios, e a forma como os defendemos, sustentado-os em bases sólidas, para que não sejam derrubados com o mais pequeno sopro do contraditório. Um dos provérbios mais acertados que conheço é: "quem tem telhados de vidro não atira pedras ao vizinho". Infelizmente há quem teime em ignorar a sapiência deste douto provérbio, e teime em atirar pedras mesmo não tendo telhado de espécie alguma.

Dizem os ingleses: "put your money where your mouth is", numa tradução literária, "não hesites em apostar naquilo que tens a certeza". Se temos a certeza de algo, não vamos mudar de opinião no dia, semana ou mês seguinte. Não sei se recordam o momento no filme "Manhattan", de Woody Allen, quando o personagem encarnado pelo mesmo pergunta ao melhor amigo depois deste ter resolvido reatar o relacionamento com a amante com o primeiro já tinha um caso: "Tens a certeza que é isto que queres? Vê lá se não mudas de opinião outra vez antes do almoço, para podermos continuar com as nossas vidas". Se fomos aconselhados a reflectir antes de afirmar a pés juntos e mesmo assim mantivemos a mesma convicção? Que bom para nós, mas de que são feitos os pilares que sustentam esta convicção, betão armado, ou areia da praia?

Falhas todos temos, mas tédicos remorsos são por mais indesejáveis, dizia um poeta do "rock'n'roll". Não há pachorra para quem tentámos abrir os olhos à força da tenás, e que mesmo assim não quer ver a luz, e ainda se acha dono da razão. Há quem se ache um malabarista, mesmo sendo evidente para os espectadores que deixa cair os pinos quase todos, mas que mesmo assim persista em pedir sempre mais um para equilibrar. Podia-se dar um desconto a essas pessoas, quer pela idade, quer pela escolaridade obtida de forma errónea e irregular, além do facto de ter apanhado o comboio da "joie de vivre" um pouco tarde demais para se considerar uma elite. Falando por mim, o melhor é manter-me afastado, não vá ficar afectado pelos miasmas da demência e da ileteracia. Quem não deve não teme, e além dos compromissos com as entidades bancárias, sempre assiduamente e provavelmente cumpridos, não devo e não temo. Como não pedi para nascer, congratulo-me de ter nascido da chocadeira, e por falar nisso, vou-me retirar, pois há muito que passou a hora de recolher aqui no aviário. Quac!

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