quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Uma cidade da China


Eis o artigo do Hoje Macau que gerou alguma celeuma nas redes sociais nos últimos dias. Foi escrito para sair na edição de dia 2 daquele diário, mas como foi feriado na imprensa, foi apenas publicado na última terça-feira.

Em primeiro lugar gostaria de deixar os votos de bom ano para os leitores do Hoje Macau e do Bairro do Oriente, e como não sou muito bom nesta espécie de magia branca que é desejar saúde, prosperidade e tudo mais, espero apenas que este ano que agora chega seja melhor que o anterior. Pensei em começar 2014 com uma nota de optimismo, mas prefiro uma dose de realismo puro e duro, que para falar bem já temos quem o faça, e este ano o Pai Natal não me deixou um par de óculos cor-de-rosa no sapatinho. Hoje é dia 2, a realidade de mais um ano morde-nos com mais força que um “rotweiller”, e quem ainda não acabou com a garrafa de champanhe vai achar os últimos goles um tanto ou quanto insípidos. Chegou a hora de guardar os sorrisos amarelos e as boas intenções na mesma caixa das bolas e das luzes de Natal até Dezembro, e olhem que parecendo que não, é um pulinho até lá. Por enquanto enfrentemos a besta pela frente, olhos nos olhos.

Durante os muitos feriados que a recta final de 2013 me deixou gozar, fui beber chá com uma amiga (digamos que foi chá, para manter o nível), que me confessou que fazia planos de deixar Macau este ano, de preferência antes do início do último trimestre. Quer ir estudar, mudar de ares, começar uma vida nova longe daqui, onde nasceu, cresceu e formou família, mas agora sem razões que a prendam ao território, quer sair deste filme. O filme até não começou mal, o “trailer” prometia, mas as audiências mais refinadas começam agora a sair a meio – o que começou por ser uma comédia romântica, descambou para um filme de terror da variante “slasher”. Podia chamar-se “Pesadelo em Macau Street”. A banda sonora original abre com as “Quatro Estações” de Vivaldi, mas a partir da terceira ou quarta faixa só se ouve “death metal”. Não esperava este desabafo da parte da minha amiga, mas fui eu o agente provocador. Quem me mandou começar a falar dessa gritante evidência que é a perda de qualidade de vida que afecta cada vez mais a população de Macau?

Todos os dias de manhã, depois de atravessar os poucos metros que me separam da tranquilidade do pátio onde vivo da rua ao lado deparo com um cenário de caos e devastação. Ainda com os tímpanos virgens da calma com que passei a noite, sem o som de um automóvel, de um motociclo, de um camião do lixo ou de uma mosca, sou violentado com o som das escavadoras, das britadeiras, dos operários que atiram as placas de metal para as camionetas com toda a calma do mundo, como se estivessem a produzir música maravilhosa, e os transeuntes vão passando, meio confusos, com um sorriso amarelo e um ar enjoado, mas fazer o quê? É o preço do progresso.

Macau cresceu muito nos últimos anos, mas cresceu mais em envergadura, não em altura, e muito menos em termos de maturidade. Faz lembrar um pouco aqueles casais que se desleixam depois do nascimento dos filhos; ela com as ancas flácidas da celulite, ele com uma pança de cerveja. A população cresceu também, em quantidade, não em qualidade. Os que vêm chegando ganham de imediato um lugar de destaque na orquestra da escarreta, na equipa titular do papel atirado para o chão, na selecção do empurrão e do encontrão. A cidade que passou de tão pacata e ordeira a um saco de gatos em dez anos não deve encher de orgulho os seus governantes, mas estes encolhem os ombros e acenam com os lucros, com a saúde financeira e a liquidez deste monstro que eles próprios ajudaram a criar. Pronto, tudo bem, sabemos que é mau, mas qual é a alternativa?

Macau tornou-se numa cidade da China, literalmente. Mas não no bom sentido; não combina a dimensão e o charme de Pequim, a áurea cosmopolita de Xangai e Hong Kong, ou sequer o encanto de Zhuhai, considerada uma das cidades mais românticas da China, e que ultrapassou Macau em matéria de qualidade de vida. E o que fazem os residentes de Macau, os de terceira ou quarta geração, ao assistir à violência que vem sendo cometida contra a sua cidade? Viram-lhe as costas, abandonam-na, e tal como Sodoma, pode ser que nem olhem para trás para a contemplar uma última vez. Foi bom enquanto durou.

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