sábado, 11 de janeiro de 2014

Motivacional, etcetera e tal


Este vídeo tem andado a correr pela imprensa online e pelas redes sociais, e tem sido considerado um exemplo de "coragem" da parte da sua interveniente principal. Lizzie Velasquez tem 24 anos, e sofre de uma condição médica tão rara que não tem nome, e apenas mais duas pessoas no mundo inteiro têm o mesmo problema. Lizzie nasceu em Austin, no Texas, filha de imigrantes mexicanos. O seu nascimento foi prematuro em 4 semanas, e por isso os médicos não deram muita importância ao facto de ter nascido com 1,2 quilos de peso. O pior foi depois, quando começou a crescer e continuava sem ganhar peso, apesar de se alimentar normalmente. Aos quatro anos apareceu-lhe uma nébula no olho direito que a cegou completamente desse lado, e reduziu-lhe a visão do lado esquerdo. Nunca pesou mais de 29 quilos, e precisa de se alimentar de meia em meia hora para não desfalecer, e a sua dieta incluí frango, batatas fritas, "fast-food", refrigerantes e outras comidas com um elevado teor calórico.

A sua condição intrigou a comunidade médica, que identificou sintomas semelhantes ao da progeria, uma doença menos rara que provoca o envelhecimento precoce, e em última instância leva à morte do seu portador antes de completar 20 anos de idade. O que se especula é que é portadora de um tipo de síndroma progeróide diferente do mais comum, que lhe poupou os ossos, os orgãos, os cabelos e os dentes, e por isso não é fatal e permitem-lhe que possa viver uma vida normal - dentro que se pode considerar "normal" no caso dela, que é praticamente invisual completa e precisa de se alimentar duas ou três vezes por hora. Tem ovários desenvolvidos como qualquer mulher normal, e caso decida procriar, as crianças nascerão saudáveis, pois a doença não é hereditária e as probabilidades de acontecerem são de um em 2 mil milhões. Seria muita coincidência. Além do mais Lizzie tem um irmão e uma irmã mais novos, perfeitamente normais e saudáveis.

Além da doença que a apoquenta, e que é mais imporovável que aconteça a alguém do que ganhar o euromilhões, Lizzie tem que conviver com o preconceito que advém da sua aparência. Quem não está ao corrente da sua condição, pensa que se trata de um caso extremo de anorexia, e atribui-lhe as culpas, aos pais, às revistas de moda, às super-modelos, a tudo menos ao azar que a coitada teve em cair-lhe na sorte uma doença que a escolheu entre centenas de milhões de alminhas na Terra. E por falar em alminhas, Lizzie é católica praticante, como qualquer hispano-americano que se preze, e diz que Deus "a abençoou com a maior dádiva que podia ter: a sua doença". Bem, não preciso de explicar o que há de horrivelmente errado com esta afirmação, mas o que para muita gente seria uma mais que boa razão para saltar de um 30º andar ou dar um tiro nos miolos, Lizzie transformou numa oportunidade de carreira. Essa história de ser considerada "a mulher mais feia do mundo" só pode ser alguma brincadeira cruel da parte de alguém - ou um golpe publicitário da própria. É que não me recordo que quando se realizou esse concurso tão "sui generis".

Vamos ser francos: ninguém daria um emprego a alguém como Lizzie Velasquez, que além de ter uma aparência que poderia intimidar colegas, clientes, utentes, animais domésticos e de quinta, e até os peixinhos do aquário, precisa de fazer pausas frequentes no trabalho para se alimentar. Nem eu nem o leitor a queriamos na nossa empresa, pois além das razões acima enunciadas, nunca se sabe quando ou como a sua condição poderia evoluir para uma situação de emergência médica, ou que tipo de tarefas ou objectos com que teria contacto lhe poderiam ser prejudiciais - ainda mais sabendo-se to pouco sobre este síndroma, de tão raro que é. Então Lizzie, que não é burra nem atrasadinha mental, pois repito, a sua doença não afectou o funcionamento normal de nenhum dos seus orgãos, escreveu uma autobiografia em 2010, e um livro de auto-ajuda em 2012 a que deu o título "Be Beautiful - Be You": "Seja bonita(o) - seja você mesma(o)". Daí a tornar-se oradora em seminários do género foi um pequeno passo.

Todos nós gostamos de uma lutadora como Lizzie Veslasquez. Tivesse nascido há 500 anos e era queimada na fogueira como criação de Satanás, e há 100 anos viajaria num circo de fenómenos, onde ficaria confinada a uma jaula com uma tabuleta onde se lia "mulher-enguia". O seu discurso tem por objectivo motivar todos os que se sentem inferiores, fracos, diminuídos ou deprimidos, e o simples facto de alguém com a sua aparência poder continuar a encarar a vida de frente deixa qualquer pessoa válida a sorrir, sem dúvida. O princípio que se aplica aqui é o "do mal ou menos", e outro bom exemplo éo de Nick Vujicic, o australiano que nasceu sem braços e sem pernas: "se estes estão neste estado e fazem pela vida, do que me queixo eu, que estou inteiro e sou saudável?". Mais do que o sentimento enternecedor que fica de escutar as palavras de Lizzie, fica o consolo de saber que tira do seu azar algo de positivo do seu azar (além do dinheiro): pelo menos pode provar ao mundo que não é nenhum extra-terrestre.

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