segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O segundo sistema existe?


O conceito de "segundo sistema", idealizado pelo antigo líder chinês Deng Xiaoping para facilitar a integração dos territórios de Hong Kong e Macau na R.P. China, foi simplesmente genial. Um golpe de mestre, idealizar o princípio constitucional de "um país, dois sitemas", inédito, e ainda por cima secondado pelas melhores das intenções. Todos os actores envolvidos na génese do tal "segundo sistema", que permitia que dentro do maior país comunista do mundo existisse a prática de um sistema liberal, capitalista e "democrático" dentro do possível, com liberdade de expressão, associação e culto, deram o seu melhor para dar forma ao conceito. Com um ou outro "mas" aqui e ali, temos hoje duas regiões administrativas especiais da China onde os seus residentes usufruem de garantias que no resto do país estão ainda na sua forma embrionária.

O segundo sistema não agrada a todos, tal como qualquer outro sistema, onde há os que estão dentro, os que esto fora, e os que estão contra, ou seja, são anti-sistema. Os que estão contra o segundo sistema são, obviamente, os que pertencem ao primeiro sistema, ou que teriam mais benefícios com a imposição deste no lugar do anterior. No caso de Macau há ainda os que se estão nas tintas para os dois, mas já que é o primeiro que manda, dizem-se fiéis a ele, e se aqui se pratica o segundo - que emana do primeiro e por isso não é completamente autónomo, é preciso não esquecer - cumprem-no na íntegra, e até lhe tecem os maiores elogios. Mas isto com um "twist": há quem se aproveite do segundo sistema para realizar tudo o que o primeiro não lhe permite, mas que mesmo assim garanta a pés juntos fidelidade eternal ao poder central. São os prospectores do segundo sistema.

Houve sempre quem torcesse o nariz a este tão apregoado segundo sistema. Para começar, a própria designação foi cunhada numa altura em que a China recuperava de décadas de atraso em relação ao Ocidente, e quando o Japão era o princípio e o fim da conversa quando se falava em mercados asiáticos. Conceitos como "liberdade de expressão", "eleições livres" ou "democracia" não eram compatíveis com a ideia que se tinha da China. Mesmo em Macau, tudo o que chegava do outro lado das Portas do Cerco era sinistro, e de nada ajudou que a meio da elaboração dos princípios do segundo sistema se desse o massacre de Tiananmen, a 4 de Junho de 1989. Este acontecimento chegou para convencer os que tinham dúvidas, e levantou dúvidas entre os que duvidavam das boas atenções. À medida que o milénio se aproximava do fim, e a data da entrada do segundo sistema se aproximava, o Dragão asiático tinha despertado do seu sono, e os mais bens informados sobre as eventuais virtudes da nova ordem já contavam os minutos.

No papel, o segundo sistema é perfeito, mas passado para a prática, "depende" dos ventos e das marés. Economia liberal? Claro, porque não, desde que seja para especular no imobiliário, gerar lucros criminosos com as Obras Públicas e manter o secretismo sobre os rendimentos dos altos quadros e dde empresários com ligações à cúpula do poder. Eleições directas? Pois sim, desde que fique garantido que tanto a o Chefe do Executivo com a maioria dos assentos do orgão legislativo sejam decididos "inter pares", e não interfiram com a predominância das famílias tradicionais e das elites, e os pressupostos do primeiro sistema. Liberdade de associação? Claro, desde que as associações se insiram no círculo do poder, e sirvam para eleger o Chefe do Executivo que melhor serve os interesses desse círculo. Liberdade de expressão? Tudo bem, mas com cuidadinho, olhem lá. Ninguém vos vai meter "no fresco" por dizerem ou escreverem o que pensam, mas tenham em conta a vossa empregabilidade e a dos vossos familiares mais próximos. Liberdade de culto? Pfff...estejam à vontade. Ainda acreditam em milagres?

O segundo sistema, que em teoria devia contribuir para a participação da sociedade e a melhoria da qualidade de vida da população, mas tanto a sociedade, composta pela tal população, está-se nas tintas para os delírios dos que chamaram a si as virtudes desse sistema. Mesmo alguns atropelos à Lei Básica, a mini-constituição onde ficaram expressas preto no branco as liberdades e garantias advindas do segundo sistema, são recebidos com um encolher de ombros. Só é grave o que afecta directamente o bolso e produz manifestações de mais de um milhar de residentes, e é preciso que sejam de etnia chinesa e sem relação directa com o sector pró-democrata para que o Executivo lhes dê ouvidos. Até em algo tão pífio como o futebol de Macau se trata a Lei Básica como uma "brincadeira", uns dez mandamentos anunciados por um velho louco e barbudo que devemos cumprir, mas se não o fizermos, não faz mal. Descriminar residentes permanentes e não-permanentes? Deixem lá que isso é só lá na bola. Não interessa.

A Lei Básica e o princípio do segundo sistema deviam vir com uma lista de "dos" e "donts". O artigo 23, esse, claro que é preciso legislar, minha nossa, que o padrinho fica zangado e já não manda cá mais os primos para lavarem o dinheirinho nos casinos. Lei da greve? O que é isso? Não vos apetece trabalhar, é? Lei laboral? Salário mínimo? Sei, sei, isso está tudo ali de uma maneira ou outra, mas qual é a pressa? Aliás, qual é a pressa para seja o que for? A própria eleição directa para o Chefe do Executivo, inserida na democratização gradual que foi um dos aliciantes do segundo sistema continua na gaveta. Parece que já não vai ser em 2019, e já agora em 2024 também não, que o tipo que foi para lá em 2019 tem feito um trabalho brilhante. E para quê em 2029, se depois já só faltam vinte anos para o fim do segundo sistema? Com uma economia dependente do jogo, cujo grosso das receitas nos chega do primeiro sistema, existe realmente um segundo?

Se calhar existe mesmo um segundo sistema, nós é que não vemos. Existe sim, pode existir, desde que não atrapalhe o primeiro ou lhe cause embaraços. Nisso temos sido excelentes, em não atrapalhar, e basta recordar a tal lei de segurança interna que impede a entrada de cidadãos considerados "problemáticos" no território ou a detenção de manifestantes que nada mais fizeram do que exercer um direito consagrado no tal segundo sistema. Em ambas as situações, são usados critérios que não vêm nem no primeiro nem no segundo sistema; é o "sistema-e-meio". Em Macau o segundo sistema é como o pneu sobresselente do jipe: vai na viagem mas não toca na estrada. É como aquele miúdo que anda sempre a pedir para jogar à bola com outros maiores que ele e dão-lhe o lugar de apanha-bolas para ver se ele se cala. É uma versão da queca dos coelhos, mas sem a queca. É como o cometa Halley a passar pela Terra. Ai não viram? Agora paciência.

Quem pagou para ver as partes mais "picantes" do segundo sistema a serem aplicadas, deu o seu tempo e dinheiro por mal gastos. A única esperança daqueles que não querem ver o primeiro sistema a entrar por aí logo que o calendário marque 19 de Dezembro de 2049, é que o próprio primeiro sistema mude, e permita a Macau o mesmo grau de autonomia de sempre. Porque o segundo sistema propriamente dito, lá existir existe, mas é mais ou menos nestes moldes:

- Olha lá, e o segundo sistema?
- Está bem, está lá na minha casa, em cima do armário da sala.
- E posso vê-lo?
- Para quê?
- Já agora gostava de ver, esse famoso segundo sistema.
- Porquê? Não acreditas que ele está lá na minha casa? Achas que estou a mentir?
- Não é isso, é que...
- É que o quê?
- Nada, deixa para lá.

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