terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Cinco irmãos chineses


A ciência da Antropologia ensina-nos o princípio básico da aculturação, o conjunto da aquisição de conhecimentos e a diferença nos comportamentos entre indivíduos, conforme o meio onde obtêm essas valências. É consensual que dois irmãos gémeos que se separam à nascença, e vão viver para pólos diferentes do globo, revelem diferenças evidentes quanto aos comportamentos, à mentalidade e aos rituais. Uma prova cabal de que a aculturação é mais densa que a genética, que nos remete para o campo da Biologia, muito menos abstracto. Os exemplos mais utilizados da dialéctica ocidente-oriente são os Estados Unidos e a China, mas o mais interessante é que dentro da própria China existe uma diversidade étnica, cultural e linguística que leva a que pequenas distâncias revelem grandes diferenças, produto da milenar história do país do meio, e da apenas muito recente demlimitação de fronteiras.

Como portugueses, esqueçemo-nos por vezes da nossa insignificância à escala global. Um país com a área do estado norte-americano do Indiana e uma população inferior à de Guangzhou não nos dá a creditação para analisar uma realidade muito maior, que vai muito além do fenómeno cultural que designámos por "bairrismo". Do bairrismo podemos encontrar exemplos logo ao virar da esquina, mas na China, com uma população de 1200 milhões mais uma imensa diaspora espalhada pelos quatro cantos do globo, é preciso olhar para o quadro no seu todo, e não apenas para os detalhes. o conceito de "chinês" não está tão clarificado como o de português. Existem pelo menos cinco grandes grupos que chamam a si a identidade de chinês, e os pontos em comum não são assim tantos como isso. Assim temos os chineses do continente, os chineses de Macau, os chineses de Hong Kong, os chineses de Taiwan e os chineses ultramarinos - todos iguais, e o mesmo tempo tão diferentes.

Destes cinco grandes grupos, que se dividem em vários sub-grupos, o único ponto em comum é o da origem dos seus ancestrais: a grande China, a "nave-mãe". É dentro do país mais populoso do mundo e terceiro maior em dimensão que se encontram as maiores disparidades, diferenças que se observam a olho nu à medida que se viaja de província em província. Um chinês de Xangai não é igual a um chinês de Pequim, e os chineses do sul, nomeadamente da província de Cantão, nada tem a ver com um chinês do norte, do interior, das regiões do litoral ou das zonas montanhosas a Ocidente, próximas das fronteiras da Ásia Central. Apesar de partilhar a mesma etnia, a Han, que compõe mais de 90% da população total, um chinês de Fujian não se identifica com outro de Henan, Gansu ou Liaoning, nem estes reconhecem entre eles muitos pontos em comum. A diferença torna-se ainda mais acentuada quando falamos das regiões autómas ou as mais periféricas, como Xinjiang, onde predomina a etnia Uighur, o Tibete ou a Mongólia Interior. As restrições de natureza política ajudam a acentuar estas diferenças, pois enquanto é permitido a um açoreano viver em Lisboa, ou um minhoto se desloca ao Algarve de férias com facilidade, a migração dentro do continente chinês depende de autorização do estado. São muitos países dentro de um só.

Os exemplos de Macau e Hong Kong são fascinantes. Duas regiões do sul de Cantão, localizadas no delta do Rio das Pérolas e separadas por 60 km que se fazem numa hora de barco, permitem que cada um dos seus habitantes identifique facilmente o outro, apesar de parecerem completamente idênticos. Nunca consegui entender como é possível a um chinês de Macau identificar tão facilmente um "irmão" seu de Hong Kong, a não ser que esteja a tentar orientar-se por um mapa. Se juntarmos a estes os chineses de Zhuhai, do outro lado das Portas do Cerco, a dois passos de Macau, torna-se um fenómeno ainda mais fascinante. Um chinês de Macau consegue através da simples observação distinguir de entre três outros qual é o de Macau, o de Hong Kong e o de Zhuhai. Mesmo dentro do território os residentes conseguem fazer uma distinção entre moradores da zona norte e os restantes, e através de gestos e atitudes, quais os que foram nascidos em Macau ou os que são naturais do continente, mesmo que tenham chegado cá ainda pequenos. Mais: os bons observadores conseguem encontrar diferenças entre os que naturais de Macau de primeira, segunda ou Terceira geração! Isto é aquilo que eu gosto de chamar de "assuntos sínicos".

Taiwan é o exemplo mais recente de aculturação paralela entre os chineses, pois só se começaram a distinguir os chineses do continente dos chineses de Taiwan nos anos 50, quando os nacionalistas perderam a guerra civil, refugiando-se na ilha que os descobridores portugueses baptizaram de Formosa, ao largo de Fujian. Em termos de cáracter, existem semelhanças entre os chineses de Taiwan e os fuquinenses, mas essas ficam por aí. Os taiwaneses, considerados "rebeldes" pelo poder central, tiveram uma culturação assente no princípio de que são refugiados, e que uma eventual reunificação com o continente só será possível nos termos idealizados pelo fundador da República da China, Sun Yat-Sen, e do seu sucessor, o general Chiang Kai-Shek, derrotado pelos comunistas liderados por Mao Zedong e remetido para a ilha designada por "nacionalista". Os taiwanenses têm o Mandarim como língua oficial, tal como no continente, mas com uma ligeira diferença na pronúncia, mas recusam-se terminantemente a adoptar a escrita simplificada, mantendo-se fiéis aos caracteres clássicos - um ponto em comum com os "irmãos" de Macau e Hong Kong. Devido a uma tradição liberal tanto na economia como na política, são tidos como mais sofisticados que os chineses do continente, tanto por eles próprios como pela generalidade dos observadores estrangeiros.

Finalmente, os chineses da diáspora, que se encontram espalhados um pouco pelo mundo inteiro, onde quer que haja uma oportunidade para fazer negócio. Os chineses adaptam-se à cultura do país de integração com alguma facilidade, especialmente as gerações já ali nascidas. No entanto nunca se aculturam ao ponto de negar a sua origem, as suas tradições trazidas do local de origem dos seus ancestrais, produto de uma civilização com mais de cinco mil anos. Desde os que se quedam pelas regiões mais próximas, como a Tailândia, o Vietname, as Filipinas ou a Indonésia, até aos que estendem os horizontes do Dragão além-mar, até à Europa, às Américas,e agora também a África, a nova "paixão" do pragmatismo chinês, nenhum esquece as raízes dos seus ancestrais. Nem sequer os mais cosmopolitas, como os chineses da América, os ABC (American Born Chinese) rejeitam o parentesco com aqueles "irmãos" tão diferentes deles. Eles marcam o seu território, mas bem lá no fundo, amam-se uns aos outros.

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