segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O palácio da intriga


Nós, os portugueses, tivemos desde sempre uma relação atribulada com o patronato. A imagem do patrão nunca foi propriamente venerada, e depois do 25 de Abril, com a obtenção de regalias por parte dos trabalhadores e a proliferação dos sindicatos, pior ficou. O patrão pode ser o melhor tipo do mundo, um indivíduo honesto, solidário e compreensivo, que vai haver sempre alguém que o considere um pulha da pior espécie, um sacana escalavagista, um tarado que abusa da secretária, e pior que tudo, um "fascista". E de facto torna-se difícil agradar a todos, pois para cada patrão existem por vezes 20, 30 ou mais subordinados, e por vezes é impossível gerir todas as sensibilidades de modo a obter um equilíbrio perfeito e atingir a "harmonia", esse ponto de rebuçado que todos ambicionam. Se em alguns casos o patrão é mesmo um tipo com maus fígados mas é ao mesmo tempo o dono da empresa (ou o filho deste), para muitos não resta senão engolir de vez em quando uns sapos vivos, se quiserem mesmo depender do dinheiro para viver, e que no fim de contas sai do bolso daquele gajo de quem dizem cobras e lagartos - mas às escondidas, claro. No caso dos funcionários públicos, tudo muda de figura, e ai do patrão, neste caso do "chefe" que se lembre de ser mauzinho para o seu pessoal. É comido vivo!

Nós, os funcionários públicos - e agora falo também por eu próprio - temos a plena consciência de que não temos o que se pode considerar uma entidade patronal em sensu stricto; tanto eu, como o meu chefe, o motorista ou a senhora da limpeza trabalhamos para a mesma entidade abstracta: o Governo. Claro que devemos respeito a toda a gente, e no caso de um superior hierárquico há ainda que ter em conta a sua eventual gestão e liderança, e é preciso não esquecer que também é ele quem deve dar a cara pela equipa que lidera, para o melhor e para o pior - o que nem sempre acontece. No caso do indivíuo, senhor ou senhora que conhecemos por "chefe", e que tratamos por "senhor doutor", "senhor engenheiro", "mister" ou seja lá o que for, ter um problema connosco, nunca se pode substituir ao Governo na função de nos dispensar, despedir, suspender ou tomar outra acção no sentido de nos prejudicar. Estamos protegidos por um mecanismo que nos garante que uma decisão desse tipo será sempre tomada por um colectivo que se sobrepõe ao nosso próprio dirigente. Mas do que eu queria falar era do caso de Macau, mais concretamente do caso actual, o da RAEM. Como é que se encara esta relação entre chefe e subordinado? E no meio de tudo isto, como fica a relação entre os próprios colegas? Como é? Vamos espremer esta fruta, que tem muito sumo para dar, certamente.

Analisando o panorama de Macau, ficamos com a percepção de que é bastante diferente daquele que temos em Portugal ou em muitos outros países ocidentais. Enquanto que lá longe no "saiong" vigora um permamente estado de PREC, com as chefias a temer mais os subordinados do que o oposto, aqui temos um cenário digno daquelas novelas das oito do canal chinês que falam de reis, princesas, criadas, eunucos e todos os restantes personagens que habitam o palácio imperial. Sim, sem mais meias palavras, a função pública em Macau é uma enorme intriga palaciana, com os que mandam e tentam consolidar o poder, outros que querem ficar nas boas graças do poder, muitas vezes no lugar daqueles que ocupam a cadeira ao lado direito do trono, e há ainda os que querem apenas sobreviver. Dê por onde der, é impossível ficar indiferente a tudo isto, querer ir até ao serviço, fazer o que nos compete e depois ir para casa tratar da vidinha. Mesmo que sejamos apenas o tipo que vai lá cuidar do jardim, os "palacianos" arranjam sempre uma forma de nos incluír na sua rede de intrigas. Optar por uma posição neutral é ser do contra, é ser anti-poder. Ou se está com o rei e os seus predilectos, ou se está contra eles.

É possível passar pelo fogo cruzado da intriga palaciana sem ser atingido por alguma bala perdida, ou de ricochete, mas para isso é preciso abdicar de quaisquer ambições, quer a uma promoção, aumento ou outra vantagem. Pode-se ainda optar por mandar "tirinhos" contra os dois lados da barricada, armar-se em engraçadinho, mas para esse efeito é melhor adquirir algum estatuto de indispensável, estar dotado de elavada empregabilidade, ou não se importar de ser "metido na prateleira". Quem quiser apenas limitar-se a cumprir com as suas funções de modo profissional, sem querer puxar a lustro às pratas de ninguém e manter uma relação "apenas" cordial com todos, precisa de uma vontade de ferro, uma carapace dura onde resvalem as provocações, e especialmente um "jogo de cintura" que o permita desviar-se das armadilhas. É um campo minado, e não vão faltar ocasiões em que o confrontam com uma situação, pedem uma opinião ou pedem-lhe para tomar um decisão que implique renunciar à tão estimada neutralidade. Às vezes sem saber vê o seu nome envolvido numa conspiração absurda, e se reagir, aí está, quebrou, tomou uma posição. Bem-vindo ao palácio.

Para estes subordinados as boas graças da chefia são o princípio, o meio e o fim de tudo. Quando são ignorados ou ostracizados pelo dirigente, choram, lamentam-se, dormem mal, não comem ou comem demasiado, perdendo ou ganhando peso, têm pensamentos suicidas, fazem-se de coitadinhos. Se estão nas boas graças do "rei", comportam-se como a própria realeza, falam em nome do dirigente, e sobretudo não se inibem de demonstrar que "quem se mete com eles, leva". Daqueles que estão "na fossa", como ele estava antes, dizem que "só se sabem queixar", e que "só querem prejudicar o serviço". Gostam pouco de fazer mas não se importam de mandar fazer, e se alguém questiona a sua autoridade - que normalmente não é nenhuma, pelo menos oficialmente - acusam-nos de "querer arruinar a sua magnífica gestão". Os que "entram no jogo" sorriem-lhe, demonstram simpatia, mas nas suas costas dizem as coisas mais horríveis que se possa imaginar. Se o dia "cair do trono", são os primeiros a pisarem-lhe em cima.

E as chefias? Bem, cada caso é um caso: há que não foram feitos para mandar, os que não sabem mandar, e os que confundem firmeza e liderança com tirania e autoritarismo. Mas nem sempre os maus chefes são assim porque nasceram "tortos", e são precisos dois para dançar o tango. Há chefes tolerantes e permissivos que são tidos como "frouxos" e sofrem abusos dos subordinados, e há ainda outros que na tentativa de mostrar quem manda comportam-se como verdadeiros ditadores. Isto depende tudo da qualidade do pessoal que se está a dirigir. A regra de ouro dos que querem "meter ordem na casa" é "dividir para poder reinar". A Administração até facilita as coisas, pois é praticamente impossível ganhar um recurso hierárquico que se faça contra um superior (a não ser que seja extramamente flagrante, e mesmo assim...), e existe o sistema da classificação do desempenho, que premeia com dez dias de férias ou metade do vencimento mensal os funcionários que obtenham "Excelente" na avaliação desse ano. Basta atribuir esta classificação a quem tenha méritos duvidosos e não a outro que se tenha efectivamente esforçado para andarem os dois "à estalada". E às vezes nem é preciso recorrer a artilharia tão pesada; basta elogiar um e não o outro, insistir nalgum tipo de injustiça (distribuição desigual de tarefas, dualidade de critérios na punição de faltas ou erros, etc) e já é suficiente para ter os colegas desavindos. É como pescar trutas num barril.

Claro que tudo isto depende do tamanho ou da natureza do departamento, a qualidade humana do pessoal, o género (quanto mais mulheres pior; e desculpem, mas é mesmo verdade), da categoria, da verticalidade, ou falta, mas nunca do vínculo, pois nisto de chegar ao beija-anel ao rei não há cá definitivos, precários ou além-quadro: mordem-se, pisam-se, esfolam-se uns aos outros na mesma. Curiosamente nos tempos da Administração Portuguesa alguns dos que hoje andam caladinhos eram uns tipos muito valentes, pá. Às vezes o chefe tuga estava aqui a cumprir a comissãozinha dele, a ganhar o seu dinheirinho, e não queria arranjar chatices com ninguém, e vinham vocês chatear o gajo com berraria, abaixo-assinados, palavrões feios e até ameaças, e com estes piam fininho porque...e ouçam isto: "agora 'eles' é que mandam". Eles? Que "eles" é este? Os lobos? "Eles" andam aí? Aparentemente "eles" aqui são os chineses, aqueles que todos temiam antes de 99. Eu sempre achei que era preferível mandarem os chineses, que sempre cá estiveram, do que os visigodos, os alavos ou os suevos, ou outros de que não conhecemos. O problema é que estes novos senhorios não estão aqui em comissão, e se quiserem "chatices" com eles, eles estão cá para vos fazer a vontade - e querem ter a última palavra.

É pena que assim seja. A função pública é um palácio imperial, uma corte complete, com rei, rainha, príncipes e princesas, aias, cavaleiros, eunucos, clero, escravos, concubinas, jograis, e não falam sequer os bobos da corte. Todos numa luta constante para chegar à sala do trono, ou evitar cair nas masmorras e ficar a arrastar as correntes. E para quem não quiser nem uma coisa, nem outra? E quem quiser apenas fazer a sua vida e ficar alheio às intrigas palacianas? Ui, esses são os piores. Têm uma agenda escondida. Querem ser uma "terceira via", julgam-se espertos ao ponto de querer tomar o poder sozinhos. Ambicionam ao papel de místico da corte, de Rasputine. Esses são sempre os mais perigosos, e atenção a eles.

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