Os habitantes de Hong Kong têm andado estes dias ocupados com um dos seus passatempos predilectos: "malhar no turista" - do continente, é claro. Todos os anos são aos milhares os chineses do continente que visitam as regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, e aqui ao lado na RAEHK é da fronteira de Shenzhen que chega o grosso dos "mainlanders", muitos deles que só agora no Ano Novo Lunar gozam o seu período de férias. É de esperar em qualquer sítio que os turistas sejam bem recebidos: afinal trazem receitas para o comércio, e estes têm uma tendência a fazer despesa sem olhar a custos, nesta altura do ano, mas em Hong Kong dá-se exactamente o caso oposto, com os visitantes a serem enxovalhados, insultados, e em alguns casos agredidos. Desde a última sexta-feira, a menos de uma semana da entrada no Ano da Cabra, são frequentes os episódios de turistas mal tratados, e entre os muitos impropérios que se escutam e lêem nos cartazes que alguns fazem questão de ostentar, estão frases do género "vão para casa", "não vos queremos cá", e "porcalhões" - e muito pior. Esta situação tem-se agravado nos últimos anos, e os residentes da RAE demonstram um grande desgaste com o impacto que tantos visitantes têm na sua qualidade de vida; lojas e restaurantes cheios, ruas onde é impossível circular, escassez de alguns produtos mais procurados pelos turistas, como o leite em pó, e claro está, o comportamento de alguns destes visitantes, que entra em "choque" com os hábitos locais, mais refinados.
Isto é algo que vai muito para lá do que conseguimos ver com os nossos olhos redondos de ocidentais. Muitos poderão considerar esta animosidade como um simples caso de "bairrismo", como tantos outros casos em outros países onde os habitantes de uma região têm um "ódio de estimação" pelos de outra qualquer. Mas peguem na rivalidade Lisboa-Porto, por exemplo, e imaginem cem vezes pior do que isso. Milhões de "tripeiros" a irem a Lisboa fazer compras, ou milhões de "alfaces" a irem ao Dragão ver a bola, algo deste tipo. Parece impossível conceber tal ideia, de facto, mas no caso deste desaguisado entre os chineses de cá e os do outro lado do cerco, há a vertente cultural, e até regional e linguística, se quiserem, que os separa, claro. Mas há também a vertente política, e esta faz esquecer os miúdos que fazem xixi na sarjeta ou os tipos que cospem para o chão da rua: os honconguenses não se sentem "chineses patriotas" - e é preciso deixar bem especificado isto dos "patriotas". Chineses sim, são, lógico, ainda mais quando estamos a falar de uma cultura etnocentrista, para quem um chinês será sempre um chinês, e um não-chinês nunca chegará a ser chinês. Já no que toca às mentalidades, distância, muita distância, é só o que eles pedem. Mesmo os naturais de Macau de terceira geração olham com algum desdém para os de segunda geração, e dizem conseguir identificar com precisão as diferenças entre eles e outro natural de Macau, mas cujos pais tenham ambos nascido no continente. Tudo bem, até aqui nada de delirante, mas afinal, qual é o problema?
Não é segredo para ninguém que a política da China quanto às RAE tem sido a de paciente distanciamento, ao mesmo tempo que se faz uma lenta integração dos antigos territórios administrados por estrangeiros no seio do continente. Aqui assistimos com placidez à chegada de novos residentes oriundos da China continental, que se foram fixando no território através da política dos do investimento - isto falando do expediente mais transparente, entenda-se. O mesmo foi feito no Tibete pela China de Mao, e até depois dele: mandava-se famílias inteiras de Han para se irem "mesclando", e décadas depois temos os chineses em praticamente todas as principais funcionalidades daquela província tida para muitos como "ocupada ilegalmente". Em Hong Kong não existe uma reencarnação do Buda para agitar as hostes, e em vez disso temos o Partido Democrático, o "monstro de Frankenstein" deixado pelos antigos senhorios britânicos para colocar a China na ordem - imaginem que até se agitaram bandeiras da antiga colónia britânica e tudo. O quê, não? Ai, sim, sim, ó aí:
E não se pense que o sentimento não é recíproco, pois li nas redes sociais em várias mensagens de cibernautas do continente cujas reacções iam da simples indignação a sugestões de "cortar a água e o transporte de alimentos para Hong Kong", e lá está, não faltaram ainda os que caem no ridículo das mensagens cheias de fulgor patriótico - são os tais que ainda acreditam no Pai Natal, coitados. Mais uma vez, e como em outras situações, dá-se um extremar de posições. Isto já começa a ser hábito, e é caso para pensar que para esta gente a definição de "meio termo" passa por "qualquer coisa que anda pelo meio das pernas". É claro que não é toda a população de Hong Kong que despreza os "mainlanders", e não devemos generalizar, mas não é menos verdade que "apenas" 2,159,181 dos 10 mihões de portugueses votaram no Passos Coelhos, mas olha o que temos aí. E sim, é entre as grandes multidões que é mais comum encontrar os que mandam umas "bocas" ao regime, mas este põe-se a jeito, pois a única forma que têm de reagir ao descontentamento é através da opressão e da censura. O que há aqui não é tanto uma relação de amor no sentido fraternal do termo, mas uma obrigação em se aturar uns aos outros.
O que a população de Hong Kong ou de Macau (apesar destes últimos mostrarem menos) sente sobre a maior aproximação com o continente é um assunto que para nós que somos de fora é complicado para entender e ter uma opinião concreta. Há diferenças entre o primeiro sistema além daquelas que todos sabemos, e algumas delas que apenas são detectáveis a quem conhece certas especificidades de uma lado e do outro, até mesmo ao nível do carácter, e por isso custa-nos por vezes aceitar certos tipos de julgamentos para os quais não temos a apetência inata de fazer. Eu por mim adoro o Ano Novo Lunar, especialmente os feriados, e desde que há tolerância de ponto sempre é uma semaninha de papo pró ar, e o resto é conversa. Quanto ao festival propriamente dito, vai ser o quarto ano seguido (pelo menos) em que vou optar por ficar em casa e deixar a maré passar. Mas se formos por aí, não me resta senão concordar com a malta de Hong Kong - no género, nunca na forma, é claro. Não me incomoda tanto que cuspam ou tussam, desde que não seja para cima de mim, e se são badalhocos e badalhocas isso é problema deles, mas que se metam no meio do caminho especados de boca aberta a olhar não sei para o quê e me atrapalhem a vida é que não pode ser nada. Macau não é só casinos para brincar e lojinhas para fazer compras, e quando sou eu a visitar-vos faço o que posso para não vos atrapalhar a vida. Tirando isto, até são eles os quem tem menos culpa, no fim de contas. Para bom entendedor...
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