Fim de mais um semana, fim de um mês, o segundo do ano. Assim como a mais fina areia do deserto se vai levantando e casando com os vendaváis, assim são os dias das nossas vidas. Enfim...bom, isto tudo a propósito do quê, mesmo? Ah, o
artigo de quinta-feira do Hoje Macau, um momento sempre alto deste pasquim electrónico. Continuação de um bom fim-de-semana!
Quando eu era um jovem imberbe e impoluto, ainda absorvia o cálcio, não me doíam as cruzes e quase tudo na vida era ainda uma curiosidade, adorava viajar. Não pelo destino em si, que podia ser um sítio qualquer, mas pela viagem propriamente dita, pelo tempo que demorava para chegar de um ponto ao outro. Não entendia as pessoas que dormiam durante uma viagem, por mais curta que fosse; até duas ou três paragens de metro era o suficiente para “passar pelas brasas”, como dizem esses aficionados da sesta em movimento. Eu usava esse tempo para outras coisas, como ler por exemplo. Orgulho-me de poder dizer que li “Os Maias” apenas durante as viagens de Lisboa para a Margem Sul e vice-versa (e depois reli, pois vale mesma a pena, perdoem-me o lugar comum). O que eu gostava mesmo era das viagens de carro, e quanto mais longas, melhor. Fazia as introspecções próprias da puberdade enquanto olhava pelo vidro da janela do banco de trás, e se fosse com passagem por zonas rurais (o que acontecia quase sempre) deleitava-me a observar o campo, as suas pessoas e as respectivas vaquinhas – e nesse caso era melhor mesmo manter a janela fechada, por razões óbvias.
Em Macau não dá para fazer longas viagens de carro, de barco ou seja do que for, por culpa da exiguidade do próprio território. E é pena, pois uma longa viagem de norte a sul ou de este a oeste e depois de regresso é uma experiência que ajuda a alargar os horizontes. Aqui dizer-se que a população tem “horizontes curtos” vai para além do sentido figurativo da expressão, pois se ouvem falar em “cinquenta quilómetros”, perguntam logo: “isso é como daqui até onde?”. Cinquenta, vinte ou mesmo dez quilómetros são conceitos alienígenas para os locais, que consideram “longe” qualquer local que fique dez minutos a pé daquele onde se encontram. Uma vez perguntaram-me qual era a distância entre Lisboa e Leiria, e sem saber como explicar, usei uma medida local, e disse que era “como ir a Coloane e voltar umas dez vezes”. Aí ficam mais ou menos esclarecidos, e claro que para eles isto é “muito longe”.
E por falar em Coloane, um dia destes fui até lá, e para o efeito apanhei um autocarro, o que faço sempre sem entusiasmo. O referido transporte vinha cheio, num Domingo à tarde, o que em tempos foi considerado “estranho”, mas hoje é só “sintomático”. E por isso, ou só por azar, vim de pé durante toda a viagem – não que me importe muito com isso, pois mesmo sentado não há vaquinhas para ver quando se olha pela janela. Já na ilha da Taipa, pouco antes de chegar à paragem do Posto Fronteiriço da Flôr de Lótus, o condutor faz uma travagem brusca que me apanha desprevenido, e mesmo agarrado a uma daquelas barras de ferro onde os tristes partilham bactérias foi por um triz que evitei esbardalhar-me no chão (O verbo “esbardalhar” existe mesmo, sabiam? Encontrei no dicionário). Foi aí que percebi que a vaquinha ali era eu, e que ao volante estava um indivíduo que transportava os passageiros com a mesma deferência de quem transporta gado vacum. São as bestas dos motoristas do autocarro mais os taxistas que são umas bestas, e mais as multidões de turistas, e mais as obras, o trânsito, a gripe, as burlas, é um Deus-nos-acuda que nunca mais acaba. Os tipos do tal instituto que elegeu Macau “a melhor cidade da China para se viver” devem ser loucos. Ou estão a gozar.
Dizem por aí que se comemorou um destes dias a chegada do Ano Novo Lunar. Ai sim? Não dei por nada, pois nem me atrevi a sair de casa. Mas isto ajuda a explicar as explosões que se ouviam, durante horas e horas, mesmo até para lá das horas das criancinhas irem fazer oó. Ainda bem que foi o “Ano Lunar”, pois cheguei a pensar que estava na Bósnia dos anos 90, ou de um Kosovo mais recente. A “semana dourada” , nome dado ao período de férias associado com o Ano Novo Lunar, ficou mais uma vez marcada pela visita dos nossos “pangyaos” do continente, que vêm aqui “fazer turismo” – sabe Deus porquê. Em Hong Kong a população já ficou farta de não poder deixar cair uma agulha sem acertar no pé de alguém, e um destes dias “descarregou” em cima dos tais turistas, demonstrando desagrado com a “invasão”, com reacções que chegaram a ter laivos de xenofobia.
Em Macau os costumes são mais brandos, e apesar de termos aqui o mesmo problema que em Hong Kong, nota-se uma maior tendência para o “cagandismo”, como quem lamenta e ao mesmo tempo aceita a inevitabilidade da morte. Mas os ventos são de mudança, e os senhores que para aqui mandam os turistas e que são os mesmos que aqui mandam, vêm agora tentar apaziguar os ânimos, prometendo que vão “estudar o assunto”, e tentar encontrar mecanismos que limitem o número de visitantes durante os feriados, ou para o efeito noutro período qualquer. Que bem que eles falam, e que bem que tantos ouvem – é a simbiose perfeita, como a língua na orelha dos namorados que ainda não estão fartos um do outro. Para mim esta viagem não leva a lado nenhum, não há vaquinhas para ver nem “Os Maias” para ler, e posto isto, mais do que apenas “passar pelas brasas”, vou entrar em coma induzido. Acordem-me quando lá chegarmos. Se chegarmos.
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